• Nenhum resultado encontrado

economia urbana dos países subdesenvolvidos

No documento PORTCOM (páginas 63-68)

Ao discorrer sobre as redes de cidades, a chamada rede urbana nos estudos geográficos, Milton Santos critica as te- orias tradicionais e aponta limitações de sua aplicação nas pesquisas sobre a rede urbana de países em desenvolvimento. Na visão do autor, o principal problema das teorias clássicas, entre elas a das localidades centrais, desenvolvida pelo alemão Walter Christaller na década de 1930 e que explica a distribui- ção espacial das cidades como centros fornecedores de bens e serviços para uma região complementar, seria o fato de se aterem a uma análise descritiva, técnica e funcional. Elas não ofereceriam uma abordagem humanística capaz de explicar as razões das distintas configurações espaciais observadas nos países periféricos, dotados de particulares componentes histó- ricos: ausência de burguesia empreendedora e sua evasão para os grandes centros, distribuição desigual de recursos públicos, existência de cidades de diferentes dimensões desempenhan- do o mesmo papel, enfim, disparidades regionais gerando, com o tempo, não redes, mas dispersão urbana.

É preciso concluir que, para as massas pobres, não existe rede urbana, ou mesmo que ela não existe em nenhuma circunstância (à parte, é claro, a hierarquia administrati- va), porque não existem serviços acessíveis para além de um nível rudimentar, já que as relações demográficas não bastam para elaborar uma rede de trocas. Ou, então, que existe uma rede urbana imaginária, corolário do efeito de- monstração, que leva as pessoas a se dirigirem para a ci- dade, onde acreditam poder alcançar um nível superior de serviços; na verdade, na grande maioria dos casos, mesmo que o seu poder de compra se eleve, elas não podem che- gar a esse mundo diferente. O acesso a uma hierarquia de serviços seria um luxo reservado aos ricos: daí a debilidade das redes urbanas nos países subdesenvolvidos (SANTOS, 2008, p. 170-171).

Em outra oportunidade, Santos (2003, p. 126) já defen- dera que, por mais que a produção tenda a se concentrar em pontos específicos, “a seletividade social age como um freio [...] porque a capacidade de consumir varia qualitativa e quan-

Milton Santos: textos e conceitos para o estudo da mídia do interior titativamente através do espaço”. As disparidades geográficas e individuais, portanto, para Santos, são a chave para se com- preender o comportamento do espaço. E é ao elaborar seu ar- gumento sobre o espaço dividido, nos anos 1970, que ele nos oferece outros dois conceitos importantes para nos ajudar a pensar os espaços produtivos: são eles os conceitos de circuito superior e circuito inferior da economia.

O autor explica que o circuito superior originou-se dire- tamente da modernização tecnológica e seus elementos mais representativos hoje são os monopólios. O essencial de suas re- lações ocorre fora da cidade e da região que os abrigam e tem por cenário o país ou o exterior. O circuito inferior, formado de atividades de pequena dimensão e dirigido principalmente às populações pobres, é, ao contrário, bem enraizado e man- tém relações privilegiadas com sua região. Cada circuito cons- titui, em si mesmo, um sistema, ou, antes, um subsistema do sistema urbano (SANTOS, 2003; 2008).

Para o geógrafo, a área de influência das cidades correspon- de ao campo de ação desses dois circuitos, que podem fun- cionar concomitantemente em diversos casos e que, não raro, podem também interagir. Vide a função da atual classe média brasileira e seu potencial de consumo de bens e serviços desses dois circuitos da economia. Vale demarcar que, segundo essa perspectiva, “as cidades locais exercem a maior parte da sua in- fluência territorial através do circuito inferior [e que] o âmbito do circuito superior aumenta na medida em que se ascenda na escala urbana, da cidade local à metrópole”. (SANTOS, 2003, p. 132). Isso implica dizer, como o próprio autor explica, que o mercado urbano dos grandes centros muitas vezes já é suficien- te para sustentar certas formas de produção modernas, espe- cialmente sob o modelo de monopólio, mas os bens e serviços produzidos podem alcançar também áreas vastas, um país in- teiro. Já nos níveis inferiores da escala urbana, onde, em geral, impera a produção de bens e a oferta de serviços do circuito inferior, a abrangência do mercado tem que ser mais ampla de modo a sustentar mesmo mercadorias dessa natureza. Desse modo, “nas cidades locais o limiar das atividades do circuito superior nunca é atingido [...] [e a] possibilidade de produção ou de comercialização de certas mercadorias reverte para as cidades de níveis mais elevados”. (SANTOS, 2003, p. 132).

Jacqueline da Silva Deolindo

Para Santos, a região complementar poderia ser compreen- dida e analisada como a área de influência dos dois circuitos da economia, que tanto podem ser pensados em si mesmos como também enquanto subsistemas dentro das localidades centrais das mais diversas ordens.

No que se refere aos circuitos espaciais de produção, dis- tribuição e consumo, entre outros aspectos geográficos da co- municação, estes apenas mais recentemente vêm figurando de modo sistemático entre as preocupações dos estudos de mídia, inclusive no Brasil. Entretanto, o preenchimento de tal lacuna se faz necessário porque, como também já observou Santos (1997), o acesso e distribuição desigual da informação impede a formação do “cidadão integral”. Esse esforço, defendemos, passa pela desconcentração de propriedade e também pela desconcentração espacial, bandeira esta já empunhada por li- deranças comunitárias e acadêmicas que defendem políticas públicas definidas com a participação da sociedade, a quem caberia articular os mecanismos de regulação, regulamentação e fiscalização. A desconcentração espacial da produção de mí- dia, mais especificamente, a nosso ver, teria como foco a busca por uma política que apoie iniciativas sustentáveis que atendam às necessidades informacionais das diferentes regiões.

Milton Santos: textos e conceitos para o estudo da mídia do interior

5. O espaço do cidadão

Editado pela primeira vez em 1988, em um momento da História do país em que diversos setores discutiam a nova Constituição, o livro O espaço do cidadão (1997), já citado, se avaliado apenas pelo título, poderia ser considerada mais uma obra a integrar os discursos da época. Entretanto, a densidade do pensamento do autor leva o tema para além desses limites e das representações da redemocratização e do brasileiro nesse cenário. A obra, apresentada pelo autor como um trabalho de- senvolvido na urgência, em sintonia com o espírito do tempo, trata-se, antes de tudo, de uma denúncia ao status do cidadão destituído de sua condição plena.

“O espaço do cidadão” nos confirma o projeto teórico de um autor cuja empatia com os excluídos é profunda. É justa- mente a realidade de exclusão comum a tantas sociedades que fundamenta os 14 capítulos do livro de 142 páginas, nas quais Milton Santos discute problemas como a (não) existência da cidadania no Terceiro Mundo (“Há cidadãos neste país?), a falta de representatividade do homem trabalhador (“O cida- dão mutilado”), o cidadão como consumidor e sujeito político (“Do cidadão imperfeito ao consumidor mais-que-perfeito”, “Do modelo econômico ao modelo cívico”, “A reconstrução da individualidade”) e o cidadão no espaço (“O espaço sem cidadãos”, “O espaço revelador: alienação e desalienação”, “Lugar e valor do indivíduo”, “Os pactos territoriais”, “Terri- tório e cidadania”), para citar apenas alguns dos temas postos em relevo. No entanto, o que nos fala mais proximamente é o subcapítulo dedicado ao problema “Da distribuição desigual da informação” (SANTOS, 1997, p. 91-95) e à necessária “So- cialização da informação”. (SANTOS, 1997, p. 127-129).

Milton Santos observa como os grandes centros mono- polizam as vozes e as propaganda das novidades e como a distância geográfica iria implicar, pelo menos até aquele mo- mento, também em distância política e informativa. A desin- formação seria uma característica cruel de muitas pequenas e médias cidades. Os baixos índices de escolaridade e cultura erudita, que desfavorecem a leitura e a interpretação dos en- foques dados à notícia fabricada; a distância dos produtos da

Jacqueline da Silva Deolindo

informação, que emitem e colonizam territórios informativo- -noticiosos, mas não colhem pontos de vistas e demandas, e a insipiência de um mercado favorável à manutenção de mídias próprias, locais, para a produção de uma informação de pro- ximidade, são alguns dos aspectos dessa reflexão sobre o es- vaziamento político da periferia simbólica e de uma natureza muito peculiar de pobreza que a aflige.

É certo que o texto de Santos está marcado pelas condi- ções técnicas e tecnológicas de uma época em que as novas mídias ainda não haviam se democratizado e empoderado co- munidades, sujeitos e mesmo cidades muito remotas, elevan- do-os a um outro nível de conhecimento a respeito de si e do que se passa no restante do mundo. Entretanto, ainda assim, mantém-se a atualidade de suas considerações porque muitos lugares permanecem distantes demais desses avanços e tam- bém porque a globalização, em vez de integrar equanimemen- te pessoas, ideias, recursos e territórios, faz ressurgirem ou se fortalecerem fronteiras duras que perpetuam as diferenças, as desigualdades e os enclausuramentos de diversas ordens.

O livro nos ajuda a pensar a metrópole e o interior, que guarda em si aspectos essenciais da multiplicidade da frontei- ra, entre eles a relação centro-periferia. Cada cidade que a in- tegra também abriga as mesmas relações complexas, seja entre o centro e os bairros ou a região de cada bairro e seu centro particular. Além disso, cada parte da cidade, cada cidade ou região sempre poderá projetar-se como centro ou como perife- ria de outros espaços que lhes sirvam de referência, estejam ou não em vizinhança geográfica. Assim, entre centro e periferia dão-se distâncias das mais diversas naturezas, sendo a infor- mativa uma das mais relevantes.

Milton Santos: textos e conceitos para o estudo da mídia do interior

6. A Natureza do Espaço:

No documento PORTCOM (páginas 63-68)