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CAPÍTULO –

2 O PENSAMENTO MARXISTA NO ÂMBITO DAS INTERNACIONAIS SOCIALISTAS E A FORMAÇÃO DOS PARTIDOS OPERÁRIOS

2.2 EDUARD BERNSTEIN E A REVISÃO DO MARXISMO ORTODOXO

Entre 1896 e 1898, Bernstein publica uma série de artigos na qual apresenta os postulados centrais do que ficou conhecido na literatura marxista como revisionismo. Conforme Fetscher (1982) o principal objetivo de Bernstein nos seus postulados teóricos era superar a debilidade do Partido Social-democrata Alemão. Esta debilidade resultava da contradição entre uma proposição teórica revolucionária e uma prática política reformista, isto é, tentava adequar a teoria à práxis da social-democracia. Bernstein julgava que em diversas oportunidades os postulados teóricos revolucionários dificultaram, ou então impediram, conquistas políticas para a social-democracia e para o proletariado e o campesinato alemão.

Bernstein (1966 e 1997) empreende a defesa de uma ação política reformista a partir do questionamento de dois postulados marxistas a respeito da construção da sociedade socialista. O primeiro postulado marxista afirma que o capitalismo deve alcançar um elevado nível de desenvolvimento a fim de propiciar a socialização da produção e da distribuição de bens e serviços. Bernstein questiona esse postulado argumentando que qualquer tentativa para centralizar a gerência de grandes empresas capitalistas nas mãos do Estado de ditadura do proletariado geraria uma série de problemas, na medida em que a gerência centralizada dessas empresas exigiria uma capacidade administrativa que está muito além das condições disponíveis para qualquer governo.

O segundo postulado da teoria marxista refere-se à conquista do poder político pelo proletariado a fim de empreender a construção do socialismo. Esta conquista poderia ocorrer de duas maneiras principais: pela via parlamentar ou pela via revolucionária. As objeções de Bernstein a esse postulado marxista iniciam-se, com a desconsideração da existência de um proletariado com homogeneidade de idéias, de interesses, e capacitado para, através de um movimento contínuo, alcançar o seu objetivo final, ou seja, a sua emancipação social. Chama atenção, portanto, para as diferenças de renda, cultura e idéias no conjunto do proletariado. Em virtude dessas diferenças, a unidade do proletariado mantém-se apenas no que concerne aos seus interesses imediatos, o qual se dividiria quanto à natureza de suas necessidades e interesses, tão logo assumisse o poder.

A partir dessa argumentação sustenta o seu postulado de que o movimento, em consonância com as condições sócio-econômicas e políticas conjunturais, constitui-se em tudo que o proletariado pode almejar, enquanto o objetivo final ou o fim último do socialismo nada significa. Conclui, desse modo, que o partido social-democrata, em sua prática política cotidiana, deixa em segundo plano, o fato iniludível de que:

A theory or declaration of principle which does not allow attention being paid at every stage of development to the actual interests of the working classes, will always be set aside just as all forswearing of reforming detail work and of the support for neighboring middle class parties has again and again been forgotten; and again and again at the congresses of the party will the complaint be heard that here and there in the electoral contest the ultimate aim of socialism has not been put sufficiently in the foreground.26

Rosa Luxemburg (1966) percorre toda a argumentação bernsteiniana, pondo em relevo as contradições a ela inerentes, no intuito de desconstruí-la. A tese central do revisionismo é a do abandono do objetivo da conquista do poder político pelo proletariado, em prol de um movimento por reformas a fim de melhorar as condições sociais dos trabalhadores. A construção do socialismo, para Bernstein, viria pela ampliação do controle social e aplicação do princípio da cooperação, e não em virtude de uma crise generalizada do capitalismo.

Rosa Luxemburg concorda que, para a teoria marxista, a conquista do socialismo dar-se-ia a partir de uma crise geral do capitalismo. Entretanto, distingue dois aspectos nessa perspectiva designados por ela de idéia fundamental e forma exterior da perspectiva catastrófica. No que tange à idéia fundamental, afirma que esta consiste na tese de que as contradições internas do capitalismo o tornarão inviável. Concebe que a perspectiva de uma crise generalizada do capitalismo, ou seja, a sua forma exterior, é de importância secundária diante da referida idéia fundamental. A partir dessa observação, alerta para os pilares que conformam o socialismo científico, os quais são:

First, on the growing anarchy of capitalist economy, leading inevitably to its ruin. Second, on the progressive socialization of the process of production, which creates the germs of the future social order. And third, on the increased organization and consciousness of the proletarian class, which constitutes the active factor in the coming revolution.27

26

Bernstein, 1966, p. 179-180.

27

Luxemburg (1966) sustenta que Bernstein rejeita peremptoriamente o primeiro pilar da base científica do socialismo, na medida em que os meios de adaptação do capitalismo tornam improvável a sua ruína mediante uma crise generalizada. Entretanto, consoante Rosa Luxemburg, Bernstein assegura que a ineficácia da teoria do colapso não suprime o poder de persuasão da doutrina socialista, na medida em que a socialização da produção e da troca permanece e, portanto, cria os germes da sociedade futura. Luxemburg assevera que essa conclusão é falsa, pois, se os “meios de adaptação” citados por Bernstein existem, esses somente se tornam germes da sociedade socialista em sentido teórico e não histórico, torna-se impossível, por isso, a transformação da produção socializada em produção socialista.

Finalmente, o último pilar de sustentação da base científica do socialismo é analisado por Luxemburg, à luz do revisionismo bernsteiniano, isto é, a crescente conscientização do proletariado da necessidade de se superar as contradições do capitalismo mediante a sua supressão. Para Bernstein essa consciência constitui-se num ideal de grande poder de persuasão, em virtude da perfeição que lhe é atribuída, isto é, essa consciência não aparenta ser apenas uma reflexão intelectual sobre as contradições do capitalismo e da inevitabilidade do socialismo. Dessa forma, conforme Rosa Luxemburg, Bernstein introduz uma explicação idealista do socialismo. Este deixa de ser o resultado das contradições crescentes do capitalismo e torna-se um ideal a ser alcançado num futuro que se aproxima das “calendas gregas”.

Kautsky (1966) negava a possibilidade do capitalismo constituir-se de relações sociais equilibradas, ou seja, com menores desigualdades sociais. Nesse sentido, questiona a tese de que um movimento em prol de reformas sociais no âmbito do capitalismo pudesse instaurar o socialismo sem que o proletariado assumisse o poder político. Com efeito, defender tal postura para Kautsky consistia na negação do socialismo e do papel do partido proletário para a sua conquista. Argumenta, nesse sentido, que a diferença entre reforma e revolução não reside na utilização da força, na medida em que ambas podem igualmente utilizar-se de ações violentas. O que difere revolução de reforma é a ascensão ao poder de uma classe social oprimida política e economicamente. Portanto, a conquista do poder político por uma classe social dominada é a característica central da revolução social. Ao fazer tal caracterização, Kautsky observa que a ação revolucionária distingue-se da ação reformista porque esta última limita-se exclusivamente à luta pelas reformas sociais sem ter como fim último a conquista do poder político pela classe dominada.

Kautsky (1966) observa que a democracia assume um papel positivo na formação intelectual, política e organizativa da classe operária, contribuindo, dessa maneira, para acumular recursos nas suas mãos, tornando-a apta para a conquista do poder político e, consequentemente, para a revolução social. Concebe que a democracia, também, possibilita a acumulação de meios nas mãos da burguesia que a torna mais capacitada para frear o ímpeto revolucionário do proletariado. Todavia, os capitalistas tornaram-se supérfluos, enquanto o proletariado é uma classe indispensável na tessitura societária. Desse modo, a revolução social torna-se um processo inexorável que nem o desenvolvimento político, nem o econômico podem frear. As reformas políticas e sociais tampouco podem barrar o desencadeamento da revolução social. Com essa argumentação Kautsky questiona os postulados revisionistas de Bernstein e perfila ao lado dos que sustentam que o socialismo deve ser o objetivo final a ser almejado pelo proletariado.

A marcha para a revolução social significava a autonomia do proletariado em relação à classe dominante. Dessa maneira, as reformas deveriam ser obtidas a partir da luta do proletariado e não mediante acordos políticos de natureza meramente parlamentar. Estabelecia-se, assim, as premissas para a conquista do poder político pela social- democracia, as quais consistiam na propaganda, na organização e nas vitórias eleitorais do partido da classe operária. Kautsky assinalava que a principal forma de luta do proletariado a fim de obter conquistas democráticas e evitar ataques da reação, era a greve política de massas. Ao contrário de Bernstein, argumentava que o partido social-democrata deveria ser um instrumento para a superação do capitalismo e não apenas para a realização de reformas sociais nos quadros de tal modo de produção. Observava que o que ocorria nas sociedades européias, no início do século XX, era o fortalecimento do poder estatal em detrimento do proletariado em vez de reformas democráticas que o fortalecesse.

Rosa Luxemburg propõe que o socialismo surgirá em virtude de dois fatores: o primeiro, refere-se às contradições inerentes à sociedade capitalista e; segundo, da consciência do proletariado no que concerne à inevitabilidade da superação de tais contradições mediante uma transformação social. Para ela as relações de produção, sob o capitalismo, aproximam-se continuamente das relações de produção sob o socialismo. Entretanto, as relações jurídicas e políticas na sociedade capitalista constituem-se em entraves significativos para a transformação dessa sociedade numa sociedade socialista. As reformas sociais e a ampliação da democracia burguesa fortalecem esses entraves. Em virtude disso, somente com a conquista do poder político pelo proletariado tornava-se possível a ruptura dos entraves antepostos na construção da sociedade socialista. Considera

um equívoco, portanto, a aspiração à conquista do socialismo a partir da luta cotidiana do proletariado pelas reformas sociais e a ampliação da democracia.

Desse modo, delineia-se, como maior acuidade, a concepção de democracia de Rosa Luxemburg a ser conquistada mediante a greve de massas. A democracia para Luxemburg tem como fundamento de sua configuração político-organizacional, os conselhos de operários e soldados. Pautada nessa concepção de democracia é que desenvolve a sua relação de solidariedade crítica com a Revolução Soviética de 1917. Alinha-se, portanto, aos partidários da democracia conselhista e torna-se adversária da tese de um partido comunista fortemente centralizado, formado por militantes abnegados e rigidamente disciplinados, tal como se constituiu o partido bolchevique.

Para Rosa Luxemburg (1981) a organização, o partido, etc., são formas ‘de mediação entre ser social e consciência’. Dessa forma, os partidos proletários constituem- se em graus de mediação aptos a apropriarem-se das teorias revolucionárias do movimento operário. Neles, as atividades revolucionárias das massas tornam-se conscientes. Nesse sentido, o partido é concebido por Rosa como um processo no qual as organizações e experiências coletivas da classe operária são conscientemente desenvolvidas, mediante a apreensão da dialética materialista, possibilitando, ao proletariado, orientar-se em direção ao objetivo final. Apesar do papel atribuído ao partido proletário não ser tão irrelevante, esse papel fica bastante aquém das funções dos partidos considerados leninistas. Conforme Rosa Luxemburg o papel do partido proletário era de compreender antecipadamente as condições objetivas e subjetivas para o desencadeamento da luta de classes e indicar o caminho correto a ser seguido pelo proletariado na luta pelo socialismo. Dessa maneira, a concepção de Rosa Luxemburg sobre o partido comunista, bem como a sua concepção sobre a democracia e a ditadura do proletariado, parece diferir de forma acentuada das concepções leninistas.

Kautsky (2002) defende explicitamente o caminho parlamentar como a estratégia principal para a construção do socialismo. Essa posição será mantida no confronto de teses entre ditadura e democracia parlamentar como principal via para a construção do socialismo. A defesa consistente da via democrática faz com que Kautsky, a despeito de ter apoiado a revolução Soviética de 1917, condene veementemente a estratégia dos bolcheviques e o tipo de ditadura do proletariado por eles defendida. Para ele, o tipo de ditadura dos bolcheviques constituía-se em uma minoria sustentada pelo aparato policial e burocrático, enquanto a ditadura do proletariado deveria fundamentar-se na ditadura da maioria, conquistada a partir do uso dos instrumentos permitidos pela democracia

representativa. Crítica semelhante será desenvolvida por Martov, o principal crítico da Revolução Bolchevique dentro da Rússia.

Ao contrário de Kautsky, Otto Bauer, considerado por Fernandes (2000) o principal dirigente do austro-marxismo, explicava o caráter ditatorial assumido pelo poder soviético em virtude das condições, sumamente atrasadas, que os bolcheviques tiveram que enfrentar na construção do socialismo. Para Otto Bauer o caminho trilhado pelos russos era inadequado para os países de industrialização avançada, embora fosse necessário nas condições russas. Conforme Bauer: “O processo de transformação da sociedade capitalista em socialista, que está se dando na União Soviética, só estará terminado quando a ditadura, que foi necessária colocar e manter em movimento neste processo, for desmantelada e substituída por uma democracia socialista.”28

2.3 O MARXISMO DA TERCEIRA INTERNACIONAL: OS POSTULADOS