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Saviani, em entrevista à Revista Germinal, esclarece a relação existente entre a prática social e o modo de produção. Afirma ser esta uma questão ontológica e não meramente econômica, pois “diz respeito ao modo como é produzido o próprio ser dos homens […] aquilo que os homens são decorre diretamente do modo como eles produzem sua existência […] desde as formas da produção dos bens materiais destinados ao consumo e à troca, até as formas da consciência” (SAVIANI, 2009, p. 110-111).

Vivemos no modo de produção capitalista e isso definirá a educação que temos, ou seja, sua forma e seus conteúdos. Nesse viés, Saviani referindo-se à educação, afirma que “a forma de manifestação da educação também irá variar de maneira correspondente à variação do conceito de modo de produção” (SAVIANI, 2009, p. 111).

Se, em uma perspectiva socialista, a educação é tida como um direito, pois a educação se faz no e pelo trabalho, na sociedade liberal, por sua vez, a educação nem sempre foi um direito, mas uma conquista à base de lutas históricas.

Essas lutas nem sempre são reconhecidas, conforme crítica de Saes (2003) à concepção de Marshall117 quanto à cidadania. Segundo Saes, Marshall trata os direitos sociais como um processo de conquista progressiva, natural: “Desenha-se assim, no texto de Marshall, um processo de conquista de direitos em escada; o que sugere a ideia de uma evolução natural da cidadania” (SAES, 2003, p. 13).

A visão progressiva de direitos e as instituições para viabilizá-las, conforme Marshall defende, são incorporadas por Bendix (1979), ao discutir a construção do Estado- nação em seu texto “A ampliação da cidadania”.

Nesse texto, Bendix apresenta o avanço da relação direta entre o indivíduo com a autoridade soberana do país em detrimento da organização medieval, apontando que um dos elementos constitutivos de uma nação é estabelecer quem são os adultos cidadãos e quais são seus direitos e deveres. Nesse sentido, a problemática se apresenta para o autor “o quanto inclui, ou quanto exclui, a definição de cidadania” (BENDIX, 1979, p. 389).

Bendix, utilizando-se das contribuições de Marshall, de forma progressiva, apresenta os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais, sendo que para cada tipo de direito existem instituições públicas próprias como forma de garantir tais direitos, ou seja,

Os tribunais para salvaguarda dos direitos civis […] as assembléias representativas […] como vias de acesso à participação na legislação e tomada de decisões públicas […] os serviços sociais, para garantir um mínimo de proteção contra a pobreza, a doença [...] e as escolas, para tornar possível a todos [...] receberem pelo menos os elementos básicos de uma educação (BENDIX, 1979, p. 391).

Desses direitos, na análise do autor, a educação é a mais significativa para a cidadania, apesar de a sua oferta se pautar muitas vezes numa educação elementar. Bendix, numa perspectiva liberal de equidade pela educação, compreende que “o direito e o dever de receber uma educação elementar pode ser considerada como um outro modo de igualar a capacidade de todos os cidadãos, no sentido de se valerem dos direitos que possuem” (BENDIX, 1979, p. 401).

Considerando a compreensão de cidadania que Marshall defende, Saes afirma que:

117

Sociólogo britânico (1893-1981) que discutiu esta questão no estudo de Citizens and Social Class, tornando- se referência para outros estudiosos que se propõe a estudar a cidadania na sociedade contemporânea, segundo Saes (2003).

Em sua análise histórica da evolução da cidadania, Marshall subestima a resistência das classes dominantes e da burocracia estatal à ampliação do elenco de direitos individuais. […] só a postura das classes trabalhadoras diante da cidadania tende, de modo geral, a ser dinâmica e progressiva, enquanto a postura das classes dominantes (bem como do topo burocrático) tende no mínimo a ser estagnacionista, podendo no máximo ser regressiva (SAES, 2003, p. 17)

Nesse viés, Saes pondera que “[...] o processo de criação de direitos na sociedade capitalista é necessariamente um processo conflituoso, embora não contraditório” e, em seguida, apresenta como uma possibilidade de alternativa “[...] as lutas populares, desde que potenciadas pelas dissensões internas das classes dominantes nos planos nacional e internacional, o fator determinante no processo global de criação de direitos na sociedade capitalista” (SAES, 2003, p. 20).

Em uma outra perspectiva, também crítica sobre a cidadania, têm-se as contribuições de Dagnino (2004). A autora problematiza três categorias: sociedade civil, participação e cidadania na ótica do deslocamento de significados a partir da contraposição de dois projetos políticos - o projeto político democratizante e participativo e o projeto neoliberal, num contexto brasileiro de disputa político-cultural.

Dagnino toma, para sua análise, algumas experiências exitosas dentro do projeto democrático e participativo presente no Brasil, na década de 1980118, e a introdução do ajuste neoliberal, a partir do governo Collor (1989), mostrando como as categorias sociedade civil, participação e cidadania foram ressignificadas.

Segundo a autora:

As noções de sociedade civil, participação e cidadania mantém entre si uma estreita relação […] elementos centrais desse deslocamento de sentidos que constitui o mecanismo privilegiado na disputa política que se trava hoje ao redor do desenho democrático da sociedade brasileira. […] papel que elas desempenham na origem e na consolidação do projeto participativo […] elas também são parte constitutiva da implementação do projeto neoliberal no nível global (DAGNINO, 2004, p. 99-100).

Dagnino apresenta como as categorias foram apropriadas pela vertente neoliberal levando muitas vezes à confusão aos que buscam uma prática democratizante e participativa.

118 Dagnino menciona a Constituição Brasileira de 1988, os Conselhos Gestores de Políticas Públicas e os Orçamentos Participativos, a partir da experiência pioneira em Porto alegre, estendidos a mais de 100 cidades.

Nesse viés neoliberal, a autora, ao considerar a representatividade no âmbito da sociedade civil, faz referência ao Terceiro Setor representado pelas Organizações Não Governamentais (ONGs). Essas organizações, devido a sua competência técnica e inserção social, passaram a ser vistas como “os parceiros ideais pelos setores do Estado empenhados na transferência de suas responsabilidades para o âmbito da sociedade civil” (DAGNINO, 2004, p. 101).

A autora chama a atenção para o que se entende por representatividade, que, neste contexto, é sinônimo de competência. Ou seja, as ONGs, como Terceiro Setor, são aquelas que têm a competência para serem os interlocutores entre a sociedade e o Estado; a não representatividade ou a não competência dar-se-ia pelo não reconhecimento, por parte do Estado, dos movimentos sociais como representantes legítimos da sociedade.

Quanto à categoria participação, a ressignificação passa para a “participação solidária” e responsabilidade social. Há o deslocamento do campo coletivo para o campo individual, a despolitização. Isso significa que:

Dispensam os espaços públicos onde o debate dos próprios objetivos da participação pode ter lugar, o seu significado político e potencial democratizante é substituído por formas estritamente individualizadas de tratar questões tais como a desigualdade social e a pobreza (DAGNINO, 2004, p. 102).

Quanto à cidadania, Dagnino chama a atenção para a cidadania ampliada, pautada nos direitos humanos, ou seja, na década de 1980, em virtude dos movimentos sociais que objetivaram a construção de uma sociedade democrática, lutou-se pelo acesso aos “equipamentos urbanos [...] questões como gênero, raça, etnia etc” (DAGNINO, 2004, p.103).

Nesse viés, Dagnino arrola três elementos: o direito a ter direitos; a cidadania, desvinculada das estratégias de classe dominante, buscando “a constituição de sujeitos sociais ativos (agentes políticos), definindo o que consideram serem seus direitos e lutando para o reconhecimento como tais” (2004, p. 104); e uma cidadania para além do conceito liberal, ou seja, “o direito de participar na própria definição desse sistema […] invenção de uma nova sociedade” (DAGNINO, 2004, p. 104).

Nesse sentido, seria uma nova sociabilidade, conforme a autora, “um processo de aprendizagem social, de construção de novos tipos de relações sociais […] a constituição de cidadãos como sujeitos sociais ativos” (DAGNINO, 2004, p. 105).

A partir dos anos de 1990, de significado político transformador, a cidadania foi apropriada e redefinida pelo neoliberalismo. Dagnino aponta a redução do significado de coletivo para a noção de individualista e, o mais sedutor, a conexão entre a cidadania e o mercado.

Nessa perspectiva, Dagnino afirma:

Tornar-se cidadão passa a significar a integração individual ao mercado, como consumidor e como produtor. [...] princípio subjacente a um enorme numero de programas para ajudar às pessoas a ‘adquirir cidadania', isto é, aprender como iniciar microempresas, tornar-se qualificado para os poucos empregos ainda disponíveis, etc. Num contexto onde o Estado se isenta progressivamente de seu papel de garantidor de direitos, o mercado é oferecido como uma instância substituta para a cidadania (DAGNINO, 2004, p. 106, grifo do autor).

O papel do Estado, neste contexto, é redefinido considerando-se as reformas políticas e econômicas em andamento, e, no Brasil, as reformas, mediante a NGP, são implementadas na administração pública pelo então presidente FHC, em seu primeiro mandato (1995-1998) (BRASIL, 1995).

Nesse ideário, as responsabilidades do Estado são compartilhadas com setores da sociedade civil, como, por exemplo, a educação, dividindo-se entre as partes, a oferta e os custos.

Braverman (1981), ao abordar a educação no contexto do capital monopolista, amplia a discussão sobre a relação entre a propriedade privada e o papel do Estado. Mais do que proteger a propriedade privada, o Estado usa seu poder não só para enriquecer a classe capitalista, mas para que grupos ou indivíduos se enriqueçam, usando seu poder, de forma legal ou ilegal; desta forma “tem servido como um aparelho para drenar a riqueza para as mãos de grupos especiais” (BRAVERMAN, 1981, p. 242).

Quanto à análise em torno da educação, Braverman considera que, na medida em que o capitalismo se fortalece119, ela se torna um serviço oferecido pelo Estado a fim de atender à demanda das necessidades do capital. Não é de se estranhar que, de lá para cá, a educação seja encarada, por boa parte da sociedade, como uma mercadoria, portanto, um

119 Braverman esclarece que as diferentes formas do capitalismo monopolista se expandir, criou a necessidade da ampliação da intervenção do Estado na economia. Elenca quatro perspectivas: o excedente econômico; a internacionalização do capital; a estrutura social ameaçada pela miséria e insegurança; e a rápida urbanização da sociedade (essa última fez aumentar a necessidade de serviços governamentais, sendo a educação um deles). Da atuação do Estado fordista, como interventor, para o Estado pós-fordista, regulador, seu papel continua forte, porém ao aliar-se ao mercado, suas atribuições são compartilhadas pelas parcerias público privadas (PPP).

objeto de desejo, um fetiche. Isso é percebido de forma muito clara quando a mídia propaga a importância de se investir na educação de forma a se adequar às demandas da economia e sociedade do conhecimento.

Assim, ao atender a demanda da sociedade por educação, o Estado compartilha sua responsabilidade com o setor público não estatal, formando as PPP e ampliando o mercado educacional.

No caso da realidade brasileira, têm-se as fundações120 parceiras do Estado, que investem na formação tanto de professores quanto de gestores, e dos grupos educacionais121, na elaboração de material didático, seja ele material impresso ou produtos tecnológicos.

Nessa perspectiva, Frigotto denuncia as práticas mercantis,

[…] a primeira década do século XXI, dominantemente, foi marcada pelas concepções e práticas educacionais mercantis típicas da década de 1990 […] chega ao chão da escola calcado na ideia de que a esfera pública é ineficiente e que, portanto, há que serem estabelecidas parcerias entre o público e o privado, mesmo mediante disfarce, quando o privado permanece encoberto pelo eufemismo que engloba organizações sociais ou o chamado terceiro setor. A esses institutos privados ou ONGs cabe selecionar o conhecimento, condensá-lo em apostilas ou manuais, [...] (FRIGOTTO, 2010, p. 17-18).

Para Braverman, o papel da educação, a partir do contexto do capitalismo monopolista, amplia-se em duas vertentes. A primeira, que considera a oferta de serviços ocupacionais desenvolvidos no segmento de escritórios, e a segunda, tem função socializadora.

No bojo da primeira vertente está implicada a discussão da qualificação122 do trabalhador e seus desdobramentos para a economia, hoje a economia do conhecimento. A segunda vertente, cuja função é a socialização da educação, a escola é responsável por ela, tendo como objetivo introduzir a criança no modo de vida capitalista123, moldando sua personalidade, seus desejos e seu aprender. Como afirma:

O requisito mínimo para ‘funcionar’ num ambiente urbano moderno - tanto como trabalhador quanto como consumidores - é comunicado às crianças num aparelho institucional mais do que na família ou na comunidade. Ao mesmo tempo, o que a criança deve aprender já não é mais uma adaptação

120Fundação Lemann, Fundação Ayrton Senna, por exemplo. 121Sistema Positivo, Fundação Victor Civita, por exemplo.

122Segundo Braverman “para o trabalhador, a qualificação está ligada ao domínio do ofício, porém houve uma reinterpretação do conceito na dinâmica do capitalismo; a qualificação passou a ser “uma habilidade específica, uma operação limitada e repetitiva, a velocidade como qualificação” (BRAVERMAN, 1981, p. 375).

123Por exemplo, a educação empreendedora e a financeira, como se analisará no capítulo terceiro; igualmente pode-se dizer do uso e consumo intensivo das TIC.

ao trabalho lento e temporário no meio natural imediato, mas uma adaptação à veloz e intrincada maquinaria social que não é apropriada à humanidade social em geral, exceto o indivíduo, mas dita as fases da produção, do consumo, da sobrevivência e do divertimento (BRAVERMAN, 1981, p. 244-245, grifo do autor).

Esse processo descrito por Braverman pode ser aproximado ao que Ianni, dentre as metáforas da globalização, denomina de “shopping center global”, a “Disneylândia universal” que se insere na “aldeia global” (IANNI, 2010, p.17).

Harvey, analisando as transformações culturais, políticas e econômicas no século XX, diante das crises do capitalismo e da busca da reestruturação do capital, afirma que se valorizou “o empreendimentismo inovador e 'esperto', ajudado e estimulado pelos atavios da tomada de decisões rápida, eficiente e bem-fundamentada” (HARVEY, 2002, p.149, grifo do autor).

As decisões bem fundamentadas significam ter acesso às informações precisas e atualizadas que, num ambiente competitivo, são diferenciais para a obtenção de lucro. Como Harvey apresenta:

O acesso à informação, bem como o seu controle, aliados a uma forte capacidade de análise instantânea de dados, tornaram-se essenciais à coordenação centralizada de interesses corporativos descentralizados. […] variações das taxas de câmbio, mudanças de modas e dos gostos e iniciativas dos competidores tem hoje um caráter crucial para a sobrevivência corporativa […] A ênfase na informação também gerou um amplo conjunto de consultorias e serviços altamente especializados capazes de fornecer informações quase minuto a minuto sobre tendências de mercado […] vastos lucros podem ser realizados com base no acesso privilegiado às informações [...] O acesso ao conhecimento cientifico e técnico sempre teve importância na luta competitiva […] (HARVEY, 2002, p. 151).

Chauí (2003) esclarece o movimento do capital na sua reprodução ao transformar o conhecimento e a informação em uma mercadoria valiosa e competitiva entre indivíduos e nações. Como se pode ler:

Ao se tornarem forças produtivas, o conhecimento e a informação passaram a compor o próprio capital, que passa a depender disso para sua acumulação e reprodução. Na medida em que, na forma atual do capitalismo, a hegemonia econômica pertence ao capital financeiro e não ao capital produtivo, a informação prevalece sobre o próprio conhecimento, uma vez que o capital financeiro opera com riquezas puramente virtuais, cuja existência se reduz à própria informação. Entre outros efeitos, essa situação produz um efeito bastante preciso: o poder econômico baseia-se na posse de informações e, portanto, essas se tornam secretas e constituem um campo de

competição econômica e militar sem precedentes, ao mesmo tempo em que, necessariamente, bloqueiam poderes democráticos, os quais se baseiam no direito à informação, tanto o direito de obtê-las como o de produzi-las e fazê-las circular socialmente. Em outras palavras, a assim chamada sociedade do conhecimento, do ponto de vista da informação, é regida pela lógica do mercado (sobretudo o financeiro), de sorte que ela não é propícia nem favorável à ação política da sociedade civil e ao desenvolvimento efetivo de informações e conhecimentos necessários à vida social e cultural (CHAUÍ, 2003, p. 8).

Considerando a necessidade, constantemente, de o capital se expandir, bem como a globalização, já prevista por Marx, e seus desdobramentos, permite-se um novo fôlego ao capital. A expansão leva à apropriação das diferentes formas de organização das forças produtivas: produção material e espiritual; redimensionam-se o tempo e o espaço, pois há uma oferta de mão de obra inesgotável em todos os países, as tecnologias favorecem as informações e as comunicações ultrapassam barreiras e fronteiras, ampliando-se, assim, os mercados produtores e consumidores.

Harvey (2011), nesse viés, afirma:

A necessidade de assegurar a continuidade dos fluxos geográficos do dinheiro, bens e pessoas exige que toda essa diversidade esteja entrelaçada por meio de transportes eficientes e sistemas de comunicação. […] Esses tempos e custos foram muito reduzidos pelas inovações tecnológicas e organizacionais […] Os problemas de distância têm um papel cada vez menor na limitação da mobilidade geográfica do capitalismo (HARVEY, 2011, p. 133).

A epígrafe, com a citação de Tedesco, aponta para o rumo que a sociedade capitalista quer dar ao trabalho docente. Desta forma, esse ideário se apresenta nas proposições dos organismos internacionais, sendo ressignificado nos documentos oficiais que norteiam as políticas educacionais, conforme se verá adiante.

A problematização da educação entre direito ou mercadoria de consumo fica presente na disputa entre os projetos educacionais de formação de professores e sua profissionalização, proposta esta presente tanto na luta dos educadores quanto na pauta do Estado desde a década de 1980, como se verá a seguir.