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Educação popular na escola pública

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA - UFPB (páginas 56-61)

Muito se fala sobre a escola pública como um espaço burocratizado e de sua função

reprodutora, porém, entendemos que ela apresenta um viés contraditório. Ao mesmo tempo

em que há a tentativa de fazer a perpetuação da ordem social vigente, há também a

aprendizagem de saberes que podem possibilitar transformações. Assim, é preciso enxergar a

escola como um espaço de possibilidades e de criatividade libertadora, e não apenas como o

lugar onde se prepara a mão de obra qualificada para o mercado. Concordamos com Vale

(2001), quando ela enfatiza que:

Na medida em que à escola é dada a função de qualificar a força de trabalho necessária à reprodução do capital, cabe-lhe também contribuir para o acirramento dos antagonismos de classes. O saber adquirido pelas classes populares paradoxalmente possibilita-lhes enxergarem o mundo de uma forma diferente [...] a prática escolar, ao apresentar-se enquanto função reprodutora, contraditoriamente possibilita transformações, e essas transformações passam pela esfera do saber (2001, p. 17-18).

Em sua origem, a escola não foi uma instituição pensada para acolher os segmentos

populares da sociedade. Foi criada, na verdade, para atender aos filhos dos burgueses

europeus que desejavam ter acesso a essa instituição como um meio para obter os bens

culturais, políticos, sociais e econômicos que eram necessários para assegurar a sua

reprodução de classe no início da implementação do sistema capitalista. Com o passar do

tempo e da evolução da sociedade, a escola tornou-se fundamental no processo de

socialização das crianças e jovens. Assim, ir à escola passa a ser uma atividade obrigatória

entre todas as classes sociais (ESTEBAN; TAVARES, 2013).

O acesso dos segmentos populares ao sistema escolar, principalmente no que diz

respeito aos países da América Latina, onde era dominante a ideologia desenvolvimentista,

tinha o único objetivo de prepará-los para o mercado de trabalho capitalista, de modo a

assegurar uma contingente de indivíduos que fossem minimamente educados para o trabalho

nas fábricas e indústrias (ESTEBAN; TAVARES, 2013). É dessa maneira que tem início o

acesso das classes populares à educação escolarizada. Porém, garantir o acesso à escola, além

de ser uma demanda do próprio sistema econômico, também era uma demanda dos setores

populares. Obviamente, ambos eram movidos por interesses distintos. O capital desejava mão

de obra minimamente qualificada, já as classes populares ansiavam por garantir uma

participação mais efetiva na sociedade e enxergavam a educação como um meio para isso.

Mészáros (2008) afirma que o sistema capitalista, em mais um dos seus atos de

perversidade, transformou a educação em uma mercadoria. Dessa maneira, os processos

educativos estão fortemente relacionados com os processos sociais de reprodução. Mas, além

disso, para a sua sobrevivência, o sistema econômico precisa contar com a transmissão de um

quadro de valores que vai dar legitimidade aos seus interesses. É preciso que esses valores

sejam internalizados pelos indivíduos para que as estruturas do sistema permaneçam

invioláveis. Essa seria, então, mais uma das atribuições da educação na modernidade, outra

forma que o capital encontrou para perpetuar a alienação na sociedade. À escola, caberia a

função de reproduzir os valores que são fundamentais para a manutenção da estrutura

econômica capitalista.

Não obstante reconhecer o importante papel atribuído à educação formal pelo sistema

neoliberal, Mészáros (2008) afirma que ela não é a principal força ideológica responsável por

garantir a subsistência do sistema. Também, por si só, a educação não seria capaz de fornecer

uma alternativa emancipatória radical. Porém, sua função na construção dessa alternativa

emancipatória é fundamental. De acordo com autor:

O papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução,

como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar

a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente (MÉSZÁROS, 2008, p. 65).

A escola é uma das poucas instituições que está presente em todos os territórios,

sejam eles empobrecidos ou não. Assim, é preciso enxergá-la como um instrumento poderoso

para a promoção da ―automudança consciente‖, que é peça chave para a transformação social

que tanto se almeja.

Streck (2013) enfatiza que a viabilidade de realização da educação popular na escola

já foi um tema bastante debatido. Havia uma resistência que se fundamentava no argumento

de que a escola é um espaço institucionalizado e, portanto, não seria adequada para o trabalho

com a educação popular. Isso se modifica a partir do momento que houve o reconhecimento

das experiências que foram realizadas por Freire e sua equipe na Secretaria Municipal de

Educação de São Paulo no início dos anos 1990 com a identificação de projetos pedagógicos

que eram realizados por administrações progressistas e tinham características da educação

popular.

Essas experiências de educação popular realizadas em escolas foram muito

importantes para que houvesse o reconhecimento de que, sim, é possível viabilizar processos

de educação popular em outros espaços, pois essa concepção educativa possui um acumulado

teórico que lhe dá robustez suficiente para influir na educação escolar. Assim, muitos

educadores que se identificavam com a educação popular foram tentar ―mudar a cara da

escola‖ através de experiências que levaram o nome de:

―Escola Cidadã‖, que teve Porto Alegre como um dos lugares pioneiros [...] ―Escola Candanga‖ (Brasília, DF), Escola sem Fronteiras (Blumenau, SC), Escola Guaicuru (estado do Mato Grosso do Sul) [...]. Outras experiências, muitas vezes sem um nome próprio, buscaram criar dentro da rede oficial de ensino espaços nos quais os princípios da educação popular pudessem ser concretizados e recriados (STRECK, 2013, p. 362-363).

Nesse contexto, acreditamos na possibilidade de realização da educação popular na

escola pública e concordamos com Mejía quando ele nos diz sobre a educação popular que,

―[...] enquanto prática social mostra que seu operar educativo é possível em todos os terrenos,

formais e não formais [...]‖ (MEJÍA, 2018, p. 83). Streck (2013) também afirma que ―a

Educação Básica, no diálogo com a educação popular, pode compreender-se mais

explicitamente como um espaço político no sentido de construção de uma cidadania ativa e

uma sociedade democrática [...]‖ (STRECK, 2013, p. 125).

Além disso, os sujeitos das classes populares representam de forma majoritária a

composição das escolas públicas no Brasil. É crescente também o quantitativo de professores

que pertencem às classes populares. Essas características representam demandas para a escola

que podem tornar possível o processo de construção de uma escola pública que tenha seus

fundamentos na educação popular (ESTEBAM; TAVARES, 2013).

Portanto, os autores citados vão demonstrando que é possível adotar o referencial da

educação popular na escola. Mas é preciso reconhecer que ainda existem desafios que

precisam ser enfrentados e superados. Ter consciência das relações sociais que permeiam o

espaço da escola e agem com muita força sobre ela para que cumpra o seu papel na

manutenção da estrutura social. Nesse sentido, fazer na escola uma educação reveladora das

contradições que permeiam a existência social pode parecer uma tarefa irrealizável. Também

pode parecer uma tarefa difícil modificar o modelo de gestão da sociedade.

Quando não conseguimos visualizar as possibilidades de transformação, significa que

o sistema neoliberal foi exitoso no trabalho de internalização da sua ideologia. Conforme é

enfatizado por Freire:

A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal, anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social, que de histórica e cultural, passa a ser ou virar ―quase natural‖. Frases como ―a realidade é assim mesmo, o que podemos fazer?‖ ou ―o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século‖ expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora (FREIRE, 2018b, p. 21).

Ocorre que a ideologia neoliberal está tão enraizada que, em alguns casos, os

indivíduos não conseguem enxergar a possibilidade de superação desse sistema. É como se a

sociedade como está hoje fosse uma coisa natural, e, portanto, não é possível modificar. Até

podemos sentir que há alguma coisa errada, mas somos invadidos pela desesperança e pelo

desânimo e acabamos nos conformando. Olhamos à nossa volta e só enxergamos o caos e

parece-nos que sempre foi assim ou que as coisas estão ficando ainda mais difíceis.

[...] se é possível dizer que, economicamente, o neoliberalismo fracassou; e socialmente, criou sociedades notadamente mais desiguais e não tão desestatizadas quanto queria. Seu sucesso absoluto foi no campo da política, da cultura e da ideologia, disseminando a ideia do fim da história e da necessidade de se adaptar à ordem (PALUDO, 2015, p. 228).

Dessa maneira, o sentimento de desesperança que, muitas vezes, paira sobre a

sociedade, é fruto do ―bom‖ trabalho do capitalismo que vem, ao longo de sua existência,

disseminando a falácia do fim da história, ou seja, de que o sistema neoliberal é insuperável,

sendo a única alternativa viável para a sociedade. Mészáros (2008, p. 63) indica que ―é

completamente inconcebível sustentar a validade atemporal e a permanência de qualquer

coisa criada historicamente‖. O modelo econômico vigente, assim como outros que já foram

dominantes na sociedade, são todas criações históricas humanas.

O sistema alienante tenta negar o fato de que os homens e mulheres são os produtores

da história e, dessa maneira, são também os responsáveis pelas transformações sociais.

Mészáros (2008) demostra que a dinâmica da história não é uma força misteriosa que se

produz sozinha, mas é, na verdade, fruto da interferência dos homens e mulheres no processo

histórico real com o objetivo de fazer a manutenção ou a mudança de uma determinada

realidade. Logo, ficam claras as motivações do sistema capitalista ao buscar fazer a

internalização dos seus valores.

Conforme aponta Vale (2001), não é necessário inventar uma nova escola, mas sim,

resgatar a escola que já existe no sentido de democratizá-la e também de qualificá-la para que

esteja, de fato, comprometida com a formação cidadã dos indivíduos das classes populares, e

não apenas prepará-los para o mercado de trabalho. Assim, a formação adequada deve

representar um equilíbrio entre a preparação para a execução de trabalhos manuais e o

desenvolvimento das capacidades intelectuais dos sujeitos, de modo que eles sejam capazes

de reconhecer as contradições da realidade e atuar na sociedade de forma crítica. A autora

segue afirmando que:

Na medida em que o professor progressista limita-se apenas a transmitir de forma competente o conteúdo que lhe foi dado para transmitir, esse educador não apenas está desinstrumentalizando o oprimido no que diz respeito à oportunidade de reconhecer-se enquanto agente histórico-social, esse educador está sobretudo atribuindo ao conteúdo um peso excessivo, responsabilizando-o, por si só, pela transformação social. Da mesma forma o fato de se deixar de lado o conteúdo, e só fazer politização, desarma os seguimentos populares impedindo-os de sobreviverem na sua luta profissional. A separação de uma das partes é profundamente prejudicial à formação da consciência crítica dos segmentos populares [...] (VALE, 2001, p. 75).

Nessa perspectiva, para se fazer uma educação comprometida com o povo, é preciso

compreender as necessidades desses sujeitos, valorizar os seus saberes e as suas formas de

produzir conhecimento, sem lhes negar os conteúdos e conhecimentos produzidos pela

humanidade nem a politização necessária para compreender as circunstâncias sociais que

exercem tanta influência sobre suas vidas. Conforme é apontado por Streck (2013, p. 363), ―a

educação popular, por um lado, partilha as críticas à escola a partir das posições

pós-modernas; por outro lado ela se distingue dessas na medida em que vê a sua reconstrução a

partir das pedagogias dos oprimidos‖.

No entanto, como foi enfatizado anteriormente, é importante ter consciência dos

inúmeros desafios que se apresentam para a construção de uma escola pública efetivamente

popular, principalmente no contexto atual brasileiro. Conhecer os supostos limites é

fundamental para poder superá-los, pois, como salienta Mészáros (2008, p. 74), ―a nossa

tarefa educacional é, simultaneamente, a tarefa de uma transformação social, ampla e

emancipadora‖.

3 PANORAMA DAS ABORDAGENS SOBRE DROGAS

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA - UFPB (páginas 56-61)