Muito se fala sobre a escola pública como um espaço burocratizado e de sua função
reprodutora, porém, entendemos que ela apresenta um viés contraditório. Ao mesmo tempo
em que há a tentativa de fazer a perpetuação da ordem social vigente, há também a
aprendizagem de saberes que podem possibilitar transformações. Assim, é preciso enxergar a
escola como um espaço de possibilidades e de criatividade libertadora, e não apenas como o
lugar onde se prepara a mão de obra qualificada para o mercado. Concordamos com Vale
(2001), quando ela enfatiza que:
Na medida em que à escola é dada a função de qualificar a força de trabalho necessária à reprodução do capital, cabe-lhe também contribuir para o acirramento dos antagonismos de classes. O saber adquirido pelas classes populares paradoxalmente possibilita-lhes enxergarem o mundo de uma forma diferente [...] a prática escolar, ao apresentar-se enquanto função reprodutora, contraditoriamente possibilita transformações, e essas transformações passam pela esfera do saber (2001, p. 17-18).
Em sua origem, a escola não foi uma instituição pensada para acolher os segmentos
populares da sociedade. Foi criada, na verdade, para atender aos filhos dos burgueses
europeus que desejavam ter acesso a essa instituição como um meio para obter os bens
culturais, políticos, sociais e econômicos que eram necessários para assegurar a sua
reprodução de classe no início da implementação do sistema capitalista. Com o passar do
tempo e da evolução da sociedade, a escola tornou-se fundamental no processo de
socialização das crianças e jovens. Assim, ir à escola passa a ser uma atividade obrigatória
entre todas as classes sociais (ESTEBAN; TAVARES, 2013).
O acesso dos segmentos populares ao sistema escolar, principalmente no que diz
respeito aos países da América Latina, onde era dominante a ideologia desenvolvimentista,
tinha o único objetivo de prepará-los para o mercado de trabalho capitalista, de modo a
assegurar uma contingente de indivíduos que fossem minimamente educados para o trabalho
nas fábricas e indústrias (ESTEBAN; TAVARES, 2013). É dessa maneira que tem início o
acesso das classes populares à educação escolarizada. Porém, garantir o acesso à escola, além
de ser uma demanda do próprio sistema econômico, também era uma demanda dos setores
populares. Obviamente, ambos eram movidos por interesses distintos. O capital desejava mão
de obra minimamente qualificada, já as classes populares ansiavam por garantir uma
participação mais efetiva na sociedade e enxergavam a educação como um meio para isso.
Mészáros (2008) afirma que o sistema capitalista, em mais um dos seus atos de
perversidade, transformou a educação em uma mercadoria. Dessa maneira, os processos
educativos estão fortemente relacionados com os processos sociais de reprodução. Mas, além
disso, para a sua sobrevivência, o sistema econômico precisa contar com a transmissão de um
quadro de valores que vai dar legitimidade aos seus interesses. É preciso que esses valores
sejam internalizados pelos indivíduos para que as estruturas do sistema permaneçam
invioláveis. Essa seria, então, mais uma das atribuições da educação na modernidade, outra
forma que o capital encontrou para perpetuar a alienação na sociedade. À escola, caberia a
função de reproduzir os valores que são fundamentais para a manutenção da estrutura
econômica capitalista.
Não obstante reconhecer o importante papel atribuído à educação formal pelo sistema
neoliberal, Mészáros (2008) afirma que ela não é a principal força ideológica responsável por
garantir a subsistência do sistema. Também, por si só, a educação não seria capaz de fornecer
uma alternativa emancipatória radical. Porém, sua função na construção dessa alternativa
emancipatória é fundamental. De acordo com autor:
O papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução,
como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar
a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente (MÉSZÁROS, 2008, p. 65).
A escola é uma das poucas instituições que está presente em todos os territórios,
sejam eles empobrecidos ou não. Assim, é preciso enxergá-la como um instrumento poderoso
para a promoção da ―automudança consciente‖, que é peça chave para a transformação social
que tanto se almeja.
Streck (2013) enfatiza que a viabilidade de realização da educação popular na escola
já foi um tema bastante debatido. Havia uma resistência que se fundamentava no argumento
de que a escola é um espaço institucionalizado e, portanto, não seria adequada para o trabalho
com a educação popular. Isso se modifica a partir do momento que houve o reconhecimento
das experiências que foram realizadas por Freire e sua equipe na Secretaria Municipal de
Educação de São Paulo no início dos anos 1990 com a identificação de projetos pedagógicos
que eram realizados por administrações progressistas e tinham características da educação
popular.
Essas experiências de educação popular realizadas em escolas foram muito
importantes para que houvesse o reconhecimento de que, sim, é possível viabilizar processos
de educação popular em outros espaços, pois essa concepção educativa possui um acumulado
teórico que lhe dá robustez suficiente para influir na educação escolar. Assim, muitos
educadores que se identificavam com a educação popular foram tentar ―mudar a cara da
escola‖ através de experiências que levaram o nome de:
―Escola Cidadã‖, que teve Porto Alegre como um dos lugares pioneiros [...] ―Escola Candanga‖ (Brasília, DF), Escola sem Fronteiras (Blumenau, SC), Escola Guaicuru (estado do Mato Grosso do Sul) [...]. Outras experiências, muitas vezes sem um nome próprio, buscaram criar dentro da rede oficial de ensino espaços nos quais os princípios da educação popular pudessem ser concretizados e recriados (STRECK, 2013, p. 362-363).
Nesse contexto, acreditamos na possibilidade de realização da educação popular na
escola pública e concordamos com Mejía quando ele nos diz sobre a educação popular que,
―[...] enquanto prática social mostra que seu operar educativo é possível em todos os terrenos,
formais e não formais [...]‖ (MEJÍA, 2018, p. 83). Streck (2013) também afirma que ―a
Educação Básica, no diálogo com a educação popular, pode compreender-se mais
explicitamente como um espaço político no sentido de construção de uma cidadania ativa e
uma sociedade democrática [...]‖ (STRECK, 2013, p. 125).
Além disso, os sujeitos das classes populares representam de forma majoritária a
composição das escolas públicas no Brasil. É crescente também o quantitativo de professores
que pertencem às classes populares. Essas características representam demandas para a escola
que podem tornar possível o processo de construção de uma escola pública que tenha seus
fundamentos na educação popular (ESTEBAM; TAVARES, 2013).
Portanto, os autores citados vão demonstrando que é possível adotar o referencial da
educação popular na escola. Mas é preciso reconhecer que ainda existem desafios que
precisam ser enfrentados e superados. Ter consciência das relações sociais que permeiam o
espaço da escola e agem com muita força sobre ela para que cumpra o seu papel na
manutenção da estrutura social. Nesse sentido, fazer na escola uma educação reveladora das
contradições que permeiam a existência social pode parecer uma tarefa irrealizável. Também
pode parecer uma tarefa difícil modificar o modelo de gestão da sociedade.
Quando não conseguimos visualizar as possibilidades de transformação, significa que
o sistema neoliberal foi exitoso no trabalho de internalização da sua ideologia. Conforme é
enfatizado por Freire:
A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal, anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social, que de histórica e cultural, passa a ser ou virar ―quase natural‖. Frases como ―a realidade é assim mesmo, o que podemos fazer?‖ ou ―o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século‖ expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora (FREIRE, 2018b, p. 21).
Ocorre que a ideologia neoliberal está tão enraizada que, em alguns casos, os
indivíduos não conseguem enxergar a possibilidade de superação desse sistema. É como se a
sociedade como está hoje fosse uma coisa natural, e, portanto, não é possível modificar. Até
podemos sentir que há alguma coisa errada, mas somos invadidos pela desesperança e pelo
desânimo e acabamos nos conformando. Olhamos à nossa volta e só enxergamos o caos e
parece-nos que sempre foi assim ou que as coisas estão ficando ainda mais difíceis.
[...] se é possível dizer que, economicamente, o neoliberalismo fracassou; e socialmente, criou sociedades notadamente mais desiguais e não tão desestatizadas quanto queria. Seu sucesso absoluto foi no campo da política, da cultura e da ideologia, disseminando a ideia do fim da história e da necessidade de se adaptar à ordem (PALUDO, 2015, p. 228).
Dessa maneira, o sentimento de desesperança que, muitas vezes, paira sobre a
sociedade, é fruto do ―bom‖ trabalho do capitalismo que vem, ao longo de sua existência,
disseminando a falácia do fim da história, ou seja, de que o sistema neoliberal é insuperável,
sendo a única alternativa viável para a sociedade. Mészáros (2008, p. 63) indica que ―é
completamente inconcebível sustentar a validade atemporal e a permanência de qualquer
coisa criada historicamente‖. O modelo econômico vigente, assim como outros que já foram
dominantes na sociedade, são todas criações históricas humanas.
O sistema alienante tenta negar o fato de que os homens e mulheres são os produtores
da história e, dessa maneira, são também os responsáveis pelas transformações sociais.
Mészáros (2008) demostra que a dinâmica da história não é uma força misteriosa que se
produz sozinha, mas é, na verdade, fruto da interferência dos homens e mulheres no processo
histórico real com o objetivo de fazer a manutenção ou a mudança de uma determinada
realidade. Logo, ficam claras as motivações do sistema capitalista ao buscar fazer a
internalização dos seus valores.
Conforme aponta Vale (2001), não é necessário inventar uma nova escola, mas sim,
resgatar a escola que já existe no sentido de democratizá-la e também de qualificá-la para que
esteja, de fato, comprometida com a formação cidadã dos indivíduos das classes populares, e
não apenas prepará-los para o mercado de trabalho. Assim, a formação adequada deve
representar um equilíbrio entre a preparação para a execução de trabalhos manuais e o
desenvolvimento das capacidades intelectuais dos sujeitos, de modo que eles sejam capazes
de reconhecer as contradições da realidade e atuar na sociedade de forma crítica. A autora
segue afirmando que:
Na medida em que o professor progressista limita-se apenas a transmitir de forma competente o conteúdo que lhe foi dado para transmitir, esse educador não apenas está desinstrumentalizando o oprimido no que diz respeito à oportunidade de reconhecer-se enquanto agente histórico-social, esse educador está sobretudo atribuindo ao conteúdo um peso excessivo, responsabilizando-o, por si só, pela transformação social. Da mesma forma o fato de se deixar de lado o conteúdo, e só fazer politização, desarma os seguimentos populares impedindo-os de sobreviverem na sua luta profissional. A separação de uma das partes é profundamente prejudicial à formação da consciência crítica dos segmentos populares [...] (VALE, 2001, p. 75).