As ações de redução de danos são representativas do momento em que a sociedade
começa a enxergar a questão das drogas de outra maneira, mais precisamente como uma
questão de saúde pública. Inicialmente, no Brasil, essa abordagem foi pensada com o objetivo
de conter a epidemia de AIDS que acontecia na década de 1980. O vírus do HIV estava sendo
transmitido de uma maneira muito intensa entre consumidores de drogas injetáveis, e isso
representava um grande problema de saúde pública para a sociedade de uma forma geral.
Dessa forma, a ideia de reduzir danos surgiu como uma maneira de prevenir o contágio pelo
vírus entre os consumidores de drogas e, assim, reduzir os riscos e os danos. E a maneira
encontrada para fazer isso, nesse momento, foi através da distribuição de seringas e agulhas
limpas entre as pessoas para evitar o compartilhamento e, assim, a disseminação do vírus
entre elas (MOREIRA et al. 2006).
De acordo com Fonseca e Bastos (2005), as abordagens denominadas de redução de
danos (RD) são direcionadas principalmente aos indivíduos que não desejam ou não
conseguem interromper o consumo das substâncias psicoativas:
As ações enfeixadas sob a denominação ‗redução de danos‘ (RD) representam um marco da atuação da saúde pública contemporânea, e correspondem a um conjunto de estratégias de saúde pública que têm por objetivo reduzir e/ou prevenir as consequências negativas associadas ao uso de drogas. Essa abordagem está direcionada para aqueles usuários que não querem ou não conseguem, em um determinado momento e circunstância, interromper o seu consumo de drogas, a despeito de danos na esfera pessoal, familiar e/ou social. A RD pode ser entendida, grosso modo, como uma alternativa às abordagens que têm como meta exclusiva a abstinência de
drogas
(FONSECA; BASTOS, 2005, p. 289).
A prevenção realizada de acordo com os princípios da redução de danos preocupa-se
fundamentalmente com a preservação da saúde dos sujeitos. O intuito não é fazer com que
eles abandonem o consumo de drogas imediatamente, mas cuidar para que esse consumo não
cause maiores danos. A RD representa também uma alternativa aos internamentos
compulsórios. Pode-se dizer que, nessa perspectiva, a droga passa a ocupar o segundo plano,
pois o foco dessa abordagem está no consumidor. Esse modo de compreender e tratar o
consumo abusivo de drogas é praticado com maior intensidade em países que escolheram
abandonar o modelo bélico de combate às drogas e passaram a enxergá-las como uma questão
de saúde pública, mas há algumas exceções.
No Brasil, apesar das políticas sobre drogas seguirem o viés proibicionista e
repressivo, em um determinado momento, houve um considerável desenvolvimento das ações
de redução de danos:
O Brasil tem tido uma atuação central no conjunto dos países da América Latina na formulação e implementação das intervenções de redução de danos entre a população de Usuários de Drogas Injetáveis (UDI), e constitui uma grata exceção em meio às importantes deficiências e dificuldades dos programas implementados em países em desenvolvimento. Embora a política de drogas brasileira seja majoritariamente orientada para a redução da oferta, por meio da repressão ao uso e tráfico de drogas, o país tem desenvolvido programas de excelência em RD. Muito se tem conseguido no Brasil, embora estejamos ainda longe de uma política de drogas ideal e de uma
assistência integral à saúde do usuário de drogas
(FONSECA; BASTOS,
2005, p. 291).
No contexto atual, em que enfrentamos grandes mudanças na forma de conduzir os
rumos políticos do Brasil, alguns desses programas de RD e a própria Política Nacional de
Redução de Danos foram dissolvidos. O que já representa um grave retrocesso para o país. O
Decreto 9.761/2019 promoveu um conjunto de alterações na Política Nacional sobre Drogas,
dentre as principais é possível destacar a retirada das menções à RD e um maior investimento
público nas comunidades terapêuticas
15. Um dos principais objetivos a ser alcançado com a
nova política é a abstinência total. Sob esta ótica, as ações de RD não podem ser uma
alternativa.
A RD representa uma forma de tratar o adicto que objetiva, entre outras coisas,
restaurar os seus direitos, diminuir suas vulnerabilidades e também os riscos e danos
associados ao consumo abusivo de drogas, sem que seja preciso interromper totalmente o
consumo, pois, em alguns casos, isso não é possível. Porém, lamentavelmente,
acompanhamos o Brasil dar largos passos para trás, com a abstinência e o isolamento sendo
entendidos como as únicas alternativas viáveis e desejáveis para lidar com pessoas que
consomem drogas de forma abusiva.
Na perspectiva da RD, o consumidor problemático de drogas deixa de ser enxergado
como um doente ou como um criminoso. Esse sujeito passa a ser entendido como um ser
humano possuidor de direitos, mas que, na maioria das vezes, se encontra em situação de
vulnerabilidade. Dessa maneira, a proposta da RD opõe-se à ideia de guerra às drogas tão
difundida na sociedade.
Conforme é colocado por Feffermann e Figueiredo (2006), a RD é composta por
práticas educativas que focam na realidade e na emancipação dos indivíduos. Para isso, utiliza
um conjunto de estratégias, como a adoção de conhecimentos científicos e estímulo à adoção
de um estilo de vida mais saudável. Dessa maneira, a abordagem da RD, no que concerne à
prevenção, seria mais efetiva, pois evitaria os reducionismos tão comuns quando o assunto
são as drogas e, além do mais, seria um meio de proporcionar a reflexão e autonomia dos
indivíduos. Nesse sentido, ―a abordagem de redução de danos contribui com ‗um novo olhar‘
sobre a prática de saúde, atentando para a consideração e valorização da independência dos
sujeitos, sua cultura e suas práticas‖ (FEFFERMANN; FIGUEIREDO, 2006, p. 05).
Alguns autores, como Carline-Cotrim (1998), Feffermann e Figueiredo (2006) e
Moreira et. al. (2006), defendem a utilização de práticas educativas de RD com o objetivo de
realizar abordagens de prevenção direcionadas ao público jovem, por considerar que essas
ações fundamentadas nos princípios da RD poderiam oferecer os subsídios necessários para o
desenvolvimento de ações críticas diferentes das abordagens tradicionais. Dessa maneira, a
15
As Comunidades Terapêuticas compõem-se de um sistema estruturado, com limites, regras, horários e responsabilidades claras, e, geralmente, se encontram em locais afastados dos centros urbanos. Baseiam-se na disciplina e em normas estritas, como: afastamento da comunidade, trabalho em grupo, laborterapia, abstinência de drogas e sexo, e aplicação de penalidades aos desvios. Os internos ‗recuperados‘ têm função de apoio no tratamento dos demais e grande parte do trabalho é voluntário. Destaca-se o componente religioso e há prevalência de instituições católicas e evangélica (RIBEIRO; MINAYO, 2015, p. 517).
prevenção objetivaria a diminuição dos riscos, a valorização dos direitos humanos e a
promoção da saúde.
Paes (2006) salienta que a Política Nacional de Redução de Danos nasceu ligada ao
Programa Nacional de DST/AIDS e, posteriormente, foi transferida para a Coordenação
Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Desse modo, deixou de ser uma política
de controle epidemiológico e passou a ser uma política de saúde mental, tendo como lugar de
funcionamento o Centro de Atenção Psicossocial - álcool e drogas (CAPSad). Dessa maneira,
a Política de Redução de Danos não teria sido criada apenas com o objetivo de melhorar as
condições de saúde do consumidor de drogas. Mas o que mobilizou os recursos, na verdade,
foi a necessidade de controlar doenças que estavam se disseminando entre outros setores da
sociedade. Nesse sentido:
[...] os usuários atendidos pelos PRDs16 são atendidos conforme interesses externos que não os seus próprios, o que somente é possível através da alienação, tanto dos idealizadores e coordenadores das políticas de RD, quanto dos redutores que executam o trabalho no campo (PAES, 2006, p. 241).
Sendo assim, conforme aponta o autor, as políticas de redução de danos que orientam
as ações de RD, apesar de seu caráter progressista, trariam em seu cerne os interesses externos
dos organismos internacionais que foram responsáveis por subsidiá-las. E, nesse contexto, ele
salienta que os redutores de danos que participaram de sua pesquisa ―reproduzem o discurso
da política de RD que traduz filosoficamente os interesses capitalistas de sanar o sistema
produtivo, evitando veementemente soluções da questão em sua totalidade [...]‖(
PAES, 2006,
p. 241-242).
Dessa forma, segundo o autor, foi possível encontrar um caráter contraditório nas
abordagens de RD investigadas por ele, pois são ações que objetivam, entre outras coisas,
promover a humanização dos dependentes de drogas, mas, ao mesmo tempo, também
contribuem com uma forma de alienação tanto dos redutores quanto dos consumidores. Ao
investigar a prática e a formação de um grupo de redutores de danos, Paes afirma que:
A ambiguidade da prática da redução de danos faz com que o processo de ensino e aprendizagem seja permeado por contradições. Em uma mesma atividade podemos apreender a reprodução da alienação e, ao mesmo tempo, da humanização. A tomada de consciência sobre a diferença entre os aspectos alienantes e humanizadores das atividades somente é possível mediados por uma sólida fundamentação teórica, possibilitando a compreensão de uma mesma fala por inúmeros enfoques distintos e a
compreensão dos interesses reproduzidos ingenuamente nas atividades. A alienação contida nas formas materiais e culturais objetivadas historicamente pelo gênero humano se reproduz na sociedade, incidindo também no processo de ensino e aprendizagem entre redutores e usuários. As apropriações e as objetivações dos redutores resultam, na maioria das vezes, da reprodução do poder dominante, de forma velada nos métodos e fundamentos que dão sustentação para suas atividades (2006, p. 244-245).