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5.9 B EIJO P ARTIDO

Como mencionamos no terceiro capítulo, esta é uma das canções mais conhecidas e mais gravadas de Toninho Horta. Ao contrário de FALSO INGLÊS, caracterizada pela

tematização melódica, em BEIJO PARTIDO prevalecem indicativos passionais, ressaltados

pela emotividade e pela subjetividade poética.Luiz Tatit define a passionalização na canção como um processo no qual destacam-se a continuidade melódica, o prolongamento das vogais, a desaceleração do andamento, a ampliação da extensão melódica e dos saltos intervalares e a exploração das freqüências agudas (Ibidem, p. 22, 23). O autor considera a passionalização um recurso propício para abordar temas relacionados a desilusões amorosas e carências afetivas:

A dominância da passionalização desvia a tensão para o nível psíquico. A ampliação da freqüência e da duração valoriza a sonoridade das vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua. A tensão da emissão mais aguda e prolongada das notas convida o ouvinte para uma inação. Sugere, antes, uma vivência introspectiva de seu estado. Daqui nasce a paixão que, em geral, já vem relatada na narrativa do texto. Por isso, a passionalização melódica é um campo sonoro propício às tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo (Ibidem, p. 23).

A letra de BEIJO PARTIDO é uma das poucas escritas por Toninho Horta e seu

conteúdo poético trata da desunião amorosa. Os mecanismos de passionalização demarcam toda a canção e podem ser percebidos através de recursos musicais e poéticos utilizados pelo compositor. Na letra, o enunciador, dirige-se de maneira subjetiva, em primeira pessoa, à um personagem externo, responsável por seu sofrimento, evidenciado nos versos “eu não gosto de quem/ me arruína em pedaços”. A presença de um destinatário pode ser verificada nos trechos “e Deus é quem sabe de ti” e “eu serei pra você o que não importa saber” (grifos meus). A organização do discurso se dá de forma coerente, representando um desabafo sentimental, que culmina no desequilíbrio emocional, aparente no trecho “e grito”, que é seguido por um vocalize melódico cantado em falsete97, que soa como um grito, principalmente na segunda exposição da letra, quando é reforçado pela dinâmica crescente do arranjo. A letra, reproduzida a seguir, termina em um questionamento: “onde estará a rainha que a lucidez escondeu”:

Sabe, eu não faço fé A

Nessa minha loucura E digo

Eu não gosto de quem

Me arruína em pedaços e Deus É quem sabe de ti

E eu não mereço um beijo partido

Hoje não passa de um dia A

Perdido no tempo E fico

Longe de tudo o que sei Não se fala mais nisso, eu sei Eu serei pra você

O que não importa saber

97 “O registro agudo produzido pela maioria dos cantores masculinos e adultos através de uma técnica ligeiramente artificial, na qual as cordas vocais vibram num comprimento menor do que o comum.” SADIE, 1994, p. 310.

Hoje não passa de um vaso A’ Quebrado no peito

E grito

Olha o beijo partido Onde estará a rainha Que a lucidez escondeu

BEIJO PARTIDO é uma bossa nova, em andamento lento. Sua forma é dividida em

duas partes, denominadas A e A’. O A’ se diferencia do A pelos dois últimos versos da canção, conduzidos por uma nova direção harmônica, através de uma modulação, ao longo de dois compassos, que retorna, em seguida, à tonalidade original. A volta à tonalidade corresponde ao momento em que é cantado o verso “que a lucidez escondeu”. A modulação acontece no penúltimo verso, que representa o questionamento do interlocutor “onde estará a rainha”.

Nas análises do terceiro capítulo nos detivemos no exame da tonalidade desta canção. Seu tratamento harmônico é caracterizado pela ambigüidade e pela indefinição tonal, existindo duas possibilidades de centros tonais: Ré Maior, ou mi menor. Na análise técnica desta composição, optamos pela tonalidade de mi menor, devido à reincidência da progressão harmônica dominante - tônica. O uso de acordes não-diatônicos e dissonantes e a obscuridade da harmonia se correlacionam com o estado afetivo e com a instabilidade emocional do enunciador. Luiz Tatit atribui o uso deste recurso na canção popular brasileira às inovações procedentes da bossa nova, mais especificamente, aos procedimentos composicionais das canções de Tom Jobim. Segundo o autor, este retomou elementos passionais típicos das canções dos anos 1930 aos anos 1950, somando-os a acordes dissonantes e harmonias imprevisíveis que ampliaram e ressaltaram os mecanismos de passionalização melódica:

Esse recurso de indeterminação, expresso na base harmônica, era impraticável ou mesmo inconcebível nas canções passionais da primeira fase de nossa música popular. Hoje, depois que o próprio compositor maior da bossa nova recuperou as melodias de

arrebatamento passional, esses acordes dissonantes com funções fluidas já aparecem totalmente integrados, como parte das estratégias persuasivas do enunciador. Eles facilitam a tradução de matizes do espírito humano. Ao contracenar com a melodia, a harmonia enriquecida pode expressar duplo sentido, hesitação e outras nuanças que tais (TATIT, 2002, p. 184).

Tatit acrescenta ainda que as funções dos acordes alterados contribuem, também, para o surgimento de um percurso melódico complexo e variado, observando que esta alteração pode causar a impressão de abandono da tonalidade (Ibidem, p. 178). Esta colocação é compatível à ambigüidade harmônica encontrada em BEIJO PARTIDO.

O âmbito melódico desta canção abrange o intervalo de 11a aumentada, formado

entre as notas lá (220 Hz) e ré# (622,3 Hz), ocupando a região médio-aguda da tessitura:

Fig. 2 notas lá (220 Hz) e ré# (622,3 Hz)

A melodia desta canção é caracterizada pelo uso constante de cromatismos e de saltos intervalares, que condizem com seu aspecto passional. O ritmo melódico é marcado pelo uso freqüente de quiálteras que conferem uma impressão de desaceleração do andamento. Como mencionamos na análise do terceiro capítulo, ao expor pela primeira vez a letra, Toninho Horta utiliza um recurso de gravação em que sobrepõe a voz, duplicando-a, com uma pequena defasagem. Cria, desta forma, um efeito de eco, enfatizado ainda pelo reverb empregado ao som da guitarra, que acompanha a voz. Estes efeitos, aliados ao conteúdo poético da letra, provocam uma sensação de algo desfocado e incerto, coincidindo com o caráter passional do interlocutor, que sente-se desiludido e arruinado. Os efeitos ocorrem a partir do verso “hoje não passa de um dia perdido no tempo”. A palavra “perdido” deste verso realça a atmosfera criada pela realização musical que a envolve. Os finais de frases dirigem-se à região aguda da tessitura justamente nos trechos da letra em que o enunciador emite as interjeições: “e digo”, “e Deus”, “e fico”, “eu sei” e “e grito”, aumentando a tensividade passional de seu conteúdo.

Há plena cumplicidade entre o destinador e o enunciado da canção. Esta compatibilidade é perceptível através da maneira de cantar, com a valorização dos prolongamentos vocálicos e através do tratamento harmônico, do contorno melódico e da concepção do arranjo, que de forma integrada revelam a situação passional e a relação do interlocutor com os acontecimentos. A primeira exposição da letra é realizada apenas com voz, guitarra e violão, ambos tocados por Toninho Horta, aproximando o conteúdo expresso pela letra, através da voz do interlocutor, do ouvinte. Durante o improviso de saxofone introduz-se o restante da sessão rítmica, constituída por baixo elétrico, bateria, sintetizadores e órgão, e a voz permanece, com contracantos em vocalize que dialogam com o sax. Na volta da letra, a dinâmica cresce significativamente, com o aumento da densidade sonora, ocasionada pela entrada da orquestra e pelo aumento do volume dos instrumentos, proporcionando maior peso dramático à última estrofe da letra. A construção passional do arranjo favorece os pontos extremos do perfil melódico.

A integração dos elementos musicais e poéticos passionalizantes de BEIJO PARTIDO,

somada à cumplicidade interpretativa de Toninho Horta, traduzem ao ouvinte seu caráter tensivo, que, segundo Tatit, busca trazer “o ouvinte para o estado em que se encontra” (TATIT, 2002, p. 10).