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O encontro de Petrópolis: os católicos em busca de uma teologia latino-americana

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Especificar um itinerário detalhado do processo de edificação dos pensamentos teológicos na América Latina constitui um tema complexo. Para Otto Maduro, a complexidade de se produzir uma teologia na América Latina está relacionada a dois fatores.

O primeiro fator é que a produção teológica está situada no contexto eclesial, em uma igreja visível com suas tradições, suas normas, sua organização, seus grupos, seus códigos e linguagens, seus recursos e limitações, suas exigências e possibilidades, seus interesses e orientações. Esta realidade social da Igreja – que excede o simples âmbito de uma sociedade nacional particular – estabelece um conjunto concreto de limites e tendências que afetam a produção teológica. O segundo fator é que a igreja está situada em contexto social específico mais amplo, em uma sociedade com suas tradições, normas, organizações, classes sociais, códigos, linguagem, recursos e limitações, exigências e possibilidade, interesses e orientações. Essa realidade é macrossocial – que excede o simples âmbito de uma igreja estabelecida igualmente a um conjunto concreto de limites e tendências que afetam a produção teológica. Por isso, para compreender o gênesis, a elaboração o significado e as implicações de uma produção teológica, é necessário conhecer o contexto macrossocial específico em que essa produção tem sido realizada (MADURO, 1986, p. 30-31, trad. nossa).

Apesar dessa complexidade e conflito de se produzir teologia latino-americana, é possível ver claramente alguns eventos e movimentos que gestaram esse processo. Um dos fatos mais significativos foi o encontro de teólogos católicos em Petrópolis, no Brasil, convocado em março de 1964 e realizado em um convento franciscano. O objetivo da reunião era refletir sobre as pastorais e os pensamentos teológicos que foram suscitados no Concílio Vaticano II, em sua terceira sessão para Igreja da América Latina. Tratava-se de realizar uma leitura da perspectiva do habitante latino-americano associado pela história e a cultura que estava comprometido com o desenvolvimento e a pobreza (ANDRADE).

Entre os convidados para as preleções estavam Juan Luis Segundo, Lucio Gera e Gustavo Gutiérrez (BINGEMER; ANDRADE, 2003, p. 157). Entre os pontos importantes das palestras proferidas por esses pensadores, que cooperaram com a reflexão inicial para uma Teologia da Libertação Católica Latino Americana, destacaram-se:

Juan Luis Segundo abordou o tema “Pastoral latino-americana: hora da decisão” tomando como ponto de partida a transformação social na América Latina e os três aspectos que foram levados em consideração acerca dessa transformação são: O processo de urbanização, a multiplicação dos meios de comunicação e o aumento da consciência social revolucionária26. O teólogo sugeriu a continuação da tarefa da Igreja nas novas circunstâncias e teve como pergunta básica: “Estamos evangelizando? (OLIVEROS, 1977, p. 23). Em

26 Para compreender com maiores detalhes ver: J.L. Segundo, Pastoral latino-americana: hora de la decisión. In: Mensaje 127 (1964) pg. 74-82. O artigo foi publicado na revista Mensaje não tanto pela sua afinidade com a linha

continuação, fez um breve estudo sobre a pergunta levantada e apresentou as noções incorretas ou deficientes sobre a evangelização frente à pobreza na tarefa pastoral da igreja. O autor diz que “na América Latina se pratica como máxima fundamental o mínimo das exigências para manter o máximo de pessoas; para isso, se faz o possível para os cristãos se separarem dos não cristãos, para conservar seu caráter”. Na conclusão foi discutida uma análise do pensamento paulino sobre o tema dos sacramentos e a comunicação da graça, no qual afirma que não se deve sacramentalizar sem prévia evangelização (SEGUNDO apud OLIVEROS , 1977, p. 75- 76).

Lucio Gera, ao falar dos problemas teológicos latino-americanos, tomou o aspecto do fazer teológico: “Começo minha fala com uma pergunta: Qual é a função do teólogo e da teologia na América Latina?”. Ele apontou a limitação e a sobrecarga do que significa para o teólogo da América Latina o fracasso das pessoas nesse campo. Em seguida, enfatizou a necessidade de o teólogo estar integrado na missão do organismo eclesial. Ressaltou que a consciência do corpo e os vários papéis que os diferentes corpos desempenham nessa unidade eclesial seriam ricos, tanto para o trabalho teológico quanto para o trabalho pastoral (PIEDRA, 2017). Fez uma indicação também de que a oposição pastor-teólogo deveria ser superada pela compreensão mútua. E, em particular, sobre o papel do teólogo, afirmou que lhe compete “levar a palavra a um estado racional”. Em seguida, chamou a atenção à dimensão sapiencial da reflexão do teólogo para que sua tarefa não se confundisse com a de um racionalista.

Finalmente, passou para a função de professor de teologia, que era a situação da maioria dos teólogos latino-americanos, e sinalizou sérias deficiências percebidas no processo de ensino teológico nos seminários, cuja solução envolvia uma profunda mudança na vida do seminário: “Há uma função doutrinal do teólogo que é o ensinamento na escola, isso significa uma renovação dos seminários, creio que não somente no ensinamento, mas uma renovação do estílo de seminário novo. Isso seria importante para América Latina” (OLIVEROS, 1977, p. 24, trad. nossa). Findou sua fala sugerindo aos teólogos que descessem do olimpo teológico e se comprometessem com a vida do povo conhecendo-o, só assim poderiam situar corretamente sua palavra.

As palavras de Gustavo Gutiérrez foram ricas nessa reunião, tanto em nível teológico quanto em sua perspectiva da realidade latino-americana. Elas abriram pistas de estudos que iriam manifestar-se posteriormente na TdL. Ele não pretendeu analisar um tema, mas abrir caminhos, e com isso deu indicações de suas bases e sugestões e, consequentemente, sua riqueza. A pergunta de abertura de sua exposição foi: “Como estabelecer o diálogo salvador com o homem latino-americano?”. Para a consideração do homem latino-americano, Gutiérrez

sinalizou três grupos diferenciados: A massa popular, composta pela maior parte da população; a elite intelectual e técnica; e o oligárquico conservador. Também indicou, brevemente, características que tipificavam esses grupos. Sua preocupação era a ação desses grupos em relação à salvação:

Creio em primeiro lugar que é necessário fazer uma crítica destas condutas do ponto de vista religioso, do ponto de vista salvador e analisar quais são as opções profundas destes tipos de homens diferentes (OLIVEROS, 1977, p. 45, trad. nossa).

Aparece, nesse contexto, um embrião que posteriormente se denominará a função crítica da teologia e da práxis dos cristãos. Na categoria práxis é possível descobrir opções profundas. Gutiérrez analisou exemplos de conduta típica dos diferentes grupos de latino- americanos e apontou a necessidade de estudar a práxis, a pastoral da igreja e suas opções, visto que isso havia revelado, de algum modo, o entendimento da fé. Esse conceito foi elaborado antes mesmo dessa reflexão ser chamada de TdL. A palestra proferida por Gutiérrez foi constituída como a intuição de um teólogo latino-americano que, de algum modo, anteciapava o que mais tarde ele formularia como TdL (RITO, 1999).

Depois desse encontro, foram convocados outros encontros que acabaram por preparar o terreno para a Conferência de Medellín, antecedido por um documento preparatório que também utilizava as ciências sociais como ponto de partida. Os irmãos Boff citam os outros congressos, que iniciaram a elaboração desse documento.

Reuniões de Junho e Julho de 1965 em Havana, Bogotá e Cuernavaca. Esta linha de pensamento ganhava melhores contornos. Em torno à preparação de Medellín (1968) se organizaram muitos encontros que funcionaram como laboratório para uma Teologia pensada sobre questões pastorais e a partir da prática comprometida dos cristãos (BOFF, C.; BOFF, L., 2010, 97-98.).

A intenção desse documento era assinalar os traços sociais, econômicos, políticos, culturais e religiosos da América Latina. Ele causou bastante polêmica, em especial no Brasil e em torno da pessoa de José Comblin, que foi taxado de comunista pela ditadura militar27.

Retomando, o Encontro de Petrópolis marcou o início de uma reflexão teológico- pastoral original e autenticamente latino-americana. Pela primeira vez um grupo de teólogos católicos se propuseram a pensar a realidade latino-americana e visualizar seu significado para o fazer teológico.

27 Para maiores informações sobre este assunto veja a tese de mestrado de CAPPELLETTI, Paulo. Conversão e Justiça Social no Pensamento de José Comblin. São Bernardo, SP, UMESP, 2012, p. 25.

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