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1. UM PANORAMA DAS ESQUERDAS NOS ANOS

1.2 Encontros e desencontros

Na miríade da esquerda, alguns temas organizavam as diferenças políticas. Marcelo Ridenti identifica as divergências e convergências dos projetos revolucionários a partir de três grandes campos, sendo eles o tipo de organização necessária para o enfrentamento político, as formas de luta adequadas para estabelecer o equilíbrio entre estratégia e tática e, por fim, o caráter da revolução35.

A esquerda marxista, formada na tradição comunista ou inspirada na Revolução de Outubro, trazia consigo de maneira muito arraigada a noção leninista de partido. No resumo da ópera, para operar a superação do capital, se fazia necessário um partido centralizado, altamente disciplinado, apto para as tarefas legais e ilegais, com forte enraizamento na classe operária e com condições de dirigir

33 Idem. Pg. 206.

34 Moraes, Dênis. A esquerda e o golpe de 1964. Expressão Popular. São Paulo, 2014. Pg. 340.

o conjunto das lutas das classes que não podiam ver seus interesses plenos em marcos capitalistas. De acordo com essa tradição, deveria haver um único partido, que carregasse em seu âmago as aspirações da classe operária. O partido seria uma espécie de ente histórico, portador da mais difícil responsabilidade humana: emancipar os explorados das correntes da servidão imposta pela contradição capital/trabalho.

O PCB era a principal força herdeira desse legado. E, ao lado das formulações leninistas acerca do papel do partido, somava-se o peso do legado stalinista, que consagrava ainda mais a noção de partido único, fiel à Pátria dos Povos.

O aparecimento das novas organizações, que se colocavam no campo do marxismo e ao mesmo tempo se arvoravam à condição de direção política do operariado, abriu espaço para o questionamento da canônica formulação do partido único da vanguarda. A unicidade partidária do PCB foi posta em risco. Novos atores queriam assumir o seu lugar, ainda que não sozinhos. Dessa ruptura, outros arranjos de organização apareceram, combinando elementos da tradição marxista-leninista e sugestões novas advindas das lutas da época.

Várias organizações preservaram o modelo leninista – algumas tiveram maior sucesso na prática, outras, somente nas letras das resoluções de tática e estratégica. O PCdoB, o PCBR, a VPR, a AP, o COLINA e a POLOP são exemplos de grupos que preservavam a defesa do partido leninista36. Outros agrupamentos, no entanto,

radicalizaram a crítica. Enxergavam que a estrutura partidária, ao invés de auxiliar a ação prática, tornava a ação dos revolucionários presa no interior de suas próprias fileiras, vivendo em um microcosmo que não correspondia mais às tarefas gerais. A ALN, em especial, achava que a vanguarda deveria se fazer pela prática. As reuniões infindáveis, as polêmicas estéreis, o apego à burocracia tão somente atrapalhavam37.

Estava na hora, pensavam eles, de experimentar a luta em si, de modo a construir um laboratório-escola da vanguarda revolucionária.

36 Idem. Pg. 39. 37 Ibidem. Pg. 41.

Alguns agrupamentos adeptos da luta armada – sobretudo quanto à guerrilha rural – apresentavam a solução que valorizava o foco ou a luta no campo, embora entendessem que as ações militares deveriam estar subordinas à direção do partido. PCdoB e PCBR interpretavam dessa forma.

Com o decorrer dos fatos, no entanto, percebia-se que o conjunto das forças militaristas apresentava um modelo organizativo próximo, fincado numa tríade assim composta por um grupo de trabalho armado, outro responsável pelas bases trabalhadoras e, por fim, um terceiro encarregado da relação com os setores médios da sociedade, responsável também pelo apoio logístico.

Não seria um exagero dizer que a Revolução Cubana foi a experiência recente, para a época, que mais contribuiu para abalar a crença no padrão marxista- leninista de partido. Um grupo de jovens que cruza do México para Cuba – a poucas léguas do imperialismo norte-americano –, instaura-se nas sierras e, em não muito tempo, consegue ganhar o apoio de boa parte do campesinato e das massas efervescentes de Havana. O enredo, encantador e bem-sucedido, torna-se uma inspiração.

Mas é verdade que outras experiências compunham o imaginário da guerrilha, como as batalhas nacionais travadas pelos povos africanos por independência e o fracasso militar yankee no Vietnã. Vale lembrar que a vitória comunista na China, liderada por Mao Tse Tung, em 1949, teve dimensão crucial na influência das esquerdas. Em todos esses exemplos, nacionalismo e socialismo parecem caminhar juntos no mesmo projeto.

Fidel Castro dizia que o papel do revolucionário é fazer a revolução. Marighella reproduzia essas palavras por aqui38. Um grupo coeso, ainda que pequeno, mas

dedicado e destemido poderia pela prática abalar as estruturas do Estado burguês, para que em um movimento contínuo ganhasse dimensão massiva e, do mesmo modo que os cubanos cercaram Havana, poderia cercar outros núcleos urbanos.

38 Ver o texto de Carlos Marighella “Sobre a organização dos revolucionários”, de outubro de 1969: https://www.marxists.org/portugues/marighella/1969/08/sobre.htm.

Nesse ponto, a respeito da forma de organização, fica como síntese: havia os grupos que entendiam a necessidade do partido e os que achavam que o partido poderia ser suplantado.

Para além disso, em relação à luta armada, algumas organizações defendiam que as ações militarizadas deveriam estar no contexto da ação partidária. Há exemplos de outras forças políticas adeptas da luta armada que não consideravam imprescindível estar na órbita de mando de algum partido, como as Ligas Camponesas e o Movimento Nacionalista Revolucionário, ligado a Leonel Brizola. Todavia, essas duas organizações fogem ao campo da nova esquerda, uma vez que não se alinhavam diretamente com a tradição marxista.

A análise acerca do caráter da revolução e a compreensão do tipo de organização necessária exerciam rupturas e aproximações. No entanto, a forma de luta a ser empregada no momento compreendia uma linha divisória mais nítida e segmentava a esquerda por nichos39.

A polarização política e social tensionava o conjunto da esquerda. O fechamento do regime, a censura, a repressão às manifestações de rua, o cerco aos sindicatos, a tortura, enfim, o exercício do poder pela coerção disparou em largos setores a ideia da luta armada.

Impedidos de agir publicamente, o enfrentamento às escuras, nas vielas ou nos rincões do país, despertava como um imperativo moral para os revolucionários. Antes da análise objetiva das condições reais, vinha a convicção, o dever de fazer algo. Caberia construir as tão chamadas condições favoráveis para a revolução através da imposição da própria vontade revolucionária. A revolução faltaria ao encontro, como lembra Daniel Aarão40. Os revolucionários, todavia, não furaram na

39 Ridenti, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo. UNESP, 2010. Pg. 46.

40 A famosa expressão de Daniel Aarão Reis foi apresentada no livro A Revolução faltou ao encontro

– os comunistas no Brasil, publicado em 1990 pela Editora Brasiliense. A expressão, que aparece em

muitos textos de Daniel Aarão, representa a empreitada frustrada da esquerda revolucionária durante a ditadura. O autor parte da ideia de que a esquerda apostava na utopia do impasse, ou seja, as contradições da ditadura e da própria sociedade de classes geraria uma condição-limite, a partir da

hora marcada.

É interessante notar que praticamente todas as organizações marxistas adotaram a premissa da luta armada. Umas somente no campo da teoria. Outras conseguiram aplicar na prática ensaios dessa forma de luta. ALN, VPR, VAR, ALA, PCdoB, AP, COLINA, PCBR, MR-8 e POC são as principais delas41.

O que diferenciava esses grupos era a maneira como se deveria construir a luta armada. Todos, em princípio, advogavam a tese da centralidade da luta no campo. A guerrilha urbana serviria como fonte de recursos, sabotagem das forças adversárias e propaganda revolucionária.

O PCdoB e a AP, de influência maoísta, eram adeptos da “guerra popular revolucionária” e do “cerco da cidade pelo campo”. O PCdoB foi a organização que mais logrou sucesso na prática, dedicando-se à construção da Guerrilha do Araguaia, deflagrada em 1972. O partido abriu mão de ações urbanas, o que ajudou a não atrair os radares da repressão. O exército brasileiro levou alguns meses para conseguir debelar por completo os guerrilheiros. A Ala Vermelha também compartilhava da valorização do trabalho no campo, ainda que não abrisse mão da violência nas cidades como forma de desestabilizar o regime.

A noção de “foco revolucionário”, proposta por Che Guevara e desenvolvida por Régis Debray em A revolução na Revolução42, impunha uma tônica, uma espécie de guia. A ALN de Marighella se orientava nessa direção, ainda que suas ações tenham se restringido aos centros urbanos, através de assaltos, ocupação de rádios, defesa armada de frentes de luta públicas, como manifestações ou cenário de conflito aberto. Um exemplo disso foi a guerra entre estudantes da Faculdade de Filosofia da USP com estudantes do Mackenzie, na rua Maria Antônia, em 1968, quando os guerrilheiros da ALN cederam armas e militantes para defender os membros do

qual seria a hora e a vez dos socialistas.

41 Ridenti, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo. UNESP, 2010. Pg. 46.

movimento estudantil contra os ataques do Comando de Caça aos Comunistas43.

Ações como essa abriam espaço para o recrutamento de novos membros. Sequestro de embaixadores foi uma ferramenta muito utilizada para liberar presos políticos. Charles Elbrick, embaixador americano, sequestrado por um comando da DI-GB (posterior MR-8) com a ALN, foi trocado por 18 presos políticos, fato que causou enorme furor na sociedade, além de ter criado o sentimento entre os revolucionários de que o caminho da vitória poderia ser traçado na ponta do fuzil. Outros diplomatas foram também sequestrados – um alemão, um japonês e um suíço – levando à soltura 115 presos44.

Muito se pensava que, dado o atraso da formação do capitalismo no Brasil, o elo frágil da dominação de classes se encontrava no interior do país. Nisso residia uma explicação teórica da luta do campo. O PCdoB e a ALA se aproximavam do POC e da VPR nesse ponto de vista por caminhos distintos. Os primeiros enxergavam resquícios feudais no campo, ao passo que os segundos o entendiam como elo frágil, tal qual a leitura apresentada na teoria da dependência de Gunder Frank45. Segundo

essa, mesmo no interior de países capitalistas, havia ralações de dependência entre regiões mais ou menos desenvolvidas.

O PCB foi a principal organização que não aceitou esse modelo da luta armada. Considerava uma aventura política, dada a falta de correlação de forças. Correntes trotskystas apoiavam o trabalho de massas também em contraposição à luta armada. A resposta da repressão contra aqueles que enfrentavam a ditadura com armas em punho foi duríssima. Até 1972, os grupos foram dizimados. O cerco foi rápido. As ações dos DOI-CODIs46 com suas técnicas de tortura e terror psicológico

se mostraram bem-sucedidas. O isolamento político das organizações, suas crises

43 Magalhães, Mário. Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo. Companhia das Letras, 2012.

44 Gorender, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo. Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, 2013. Pg. 183.

45 Frank, André Gunder. El desarrollo del subdesarrollo. Pensamiento Crítico, Habana, Nº 7, agosto de 1967.

internas e o próprio esgotamento da militância somaram para a derrota.

Das diferenças que existiam entre as organizações, a que mais nos interessa aqui é a análise do caráter da revolução. Justamente nesse aspecto é que se molda o cerne da identidade do tronco construído pela POLOP.

O VI Congresso da Internacional Comunista47, ocorrido em 1928, sistematizou

a visão etapista, carregada pelo PCB e por suas dissidências. A primeira fase da revolução, tal como foi abordado acima, deveria se pautar pelo desenvolvimento das forças produtivas e pela independência nacional. Dessa forma, garantidas as condições objetivas e materiais, o caminho para o socialismo estaria aberto. Essa teoria cabia muito bem aos países do chamado terceiro mundo. O PCB enraizou tal tese no contexto da formação histórica do Brasil. O latifúndio e o imperialismo, segundo a tese, constituíam os principais entraves para o desenvolvimento da economia, sendo os motivos de sua estagnação. Portanto, a revolução nacional e democrática deveria quebrar essas barreiras históricas, abrindo caminho ao socialismo48.

O PCdoB compartilhava desse modelo esquemático, assim como a Ala Vermelha. Mesmo organizações que optaram pela luta armada o mantiveram. A Aliança Libertadora Nacional, de Carlos Marighella, como o próprio nome indica, defendia a premência da emancipação do país. O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário partilhava também dessa tese, ainda que associasse a etapa nacional e democrática da revolução de forma menos mecânica à etapa socialista, de modo que ambas se confundiam, fazendo parte do mesmo processo. Para essas quatro organizações estava posta a tarefa de construir um governo popular e revolucionário. Fato é que o PCdoB e a ALA aceitavam a participação de setores da burguesia nacional, que supostamente viam no imperialismo um limite para os seus próprios

47 Antunes, Ricardo. Os comunistas no Brasil: as repercussões do VI Congresso da Internacional

Comunista e a primeira inversão stalinista no Partido Comunista do Brasil (PCB). Pg. 16. O texto se

encontra no portal do IFCH: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ael/article/view/2427/1839. 48 Bielschowsky, Ricardo. Pensamento Econômico Brasileiro – ciclo ideológico do desenvolvimento.

interesses. Já a ALN e o PCBR eram céticos quanto a isso, o que se confirmou com a vitória e o agravamento da ditadura militar49.

Os defensores do caráter socialista da revolução questionavam a ideia de que no Brasil havia resquícios feudais. Ao contrário, compreendiam que o país era plenamente capitalista, integrado à economia mundial. Moniz Bandeira, um dos fundadores da POLOP - organização primeira que sistematizou a crítica ao etapismo - assim explica sua interpretação:

“ao escrever O caminho da revolução brasileira, lançado em 1963, tratei de demonstrar, com dados econômicos e estatísticos do início de anos 1960, que o Brasil deixara de ser um país semicolonial e agrário, conforme a teoria do PCB, e já apresentava o perfil de uma economia capitalista madura. O valor da produção industrial, inclusive com um setor bastante adiantado de máquinas e equipamentos, superava o valor da produção agrícola, acelerando a concentração tanto de capital quanto da força de trabalho (cerca de quatro milhões de operários). Ao mesmo tempo, o rápido processo de urbanização, intensificado por inaudito êxodo rural, acentuava o predomínio da cidade sobre o campo. Daí o caráter socialista que adquirira a revolução50”.