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Enfiteuse, alinhamento e planejamento do desenho urbano.

2. INTEGRAÇÃO, CRESCIMENTO ENDÓGENO E QUESTÃO REGIONAL NA AMAZÔNIA

2.2. Empresariado mercantil e rentismo fundiário em Belém

2.2.2. Enfiteuse, alinhamento e planejamento do desenho urbano.

Entre os anos de 1950 e 1960, a possibilidade de autonomizar a reprodução de frações do capital, através do circuito imobiliário que se estruturava em Belém, dependia do modo como a terra urbana era transacionada na cidade. A despeito do negócio imobiliário que se pode qualificar como tradicional – baseado na regular compra e venda dos imóveis ou terrenos como meros ativos –, em Belém, essa condição detinha a peculiaridade de que uma parcela significativa da terra urbanizada da cidade pertencia ao patrimônio municipal, constituído ainda durante o período colonial por doação da coroa portuguesa. O rossio399 do Concelho de Belém correspondia a uma légua de terra conhecida como “Primeira Légua Patrimonial”, administrada sob o regime enfitêutico de aforamento e posterior alinhamento dos lotes urbanos. Esse instrumento de gestão do patrimônio municipal significava uma fonte de receita para os cofres públicos, já que permitia a cobrança de impostos sobre a terra a cada

398 CANCELA, 2006.

399 Os Rossio era o nome dado ao patrimônio dos Concelhos Municipais, que poderia ser utilizado para usufruto

dos moradores da vila ou para a expansão da sua ocupação, por meio de concessão de aforamentos de terrenos a particulares. Cf. MARX, 1991.

transição imobiliária ou anualmente.

Em resumo, ao mesmo tempo em que assegurava alguma receita para os cofres municipais, o regime de aforamento e as próprias dimensões da Primeira Légua Patrimonial, permitiam ao poder local o controle direto sobre o desenho da malha urbana e mesmo sobre a morfologia das quadras400. É importante destacar que os pesados investimentos na ampliação da malha urbana, ocorridos durante a fase gomífera do ciclo extrativista como forma de dar suporte aos empréstimos do sistema de aviamento, ocorreram em confluência com essa prática de gestão do patrimônio fundiário do município. Isso permitiu que, ainda no auge da economia do látex, o poder municipal executasse as linhas gerais de um plano de alinhamento para a Primeira Légua Patrimonial, que se tornaria robusta o suficiente para acomodar a crescente população urbana de Belém até os anos de 1950. Em grande medida, a robustez do plano de alinhamento da Primeira Légua, combinada com prática do aforamento, limitava os ganhos fundiários com o parcelamento de glebas urbanas e, consequentemente, o próprio reinvestimento dos lucros da elite empresarial local na aquisição de grandes urbanas nos limites da Primeira Légua Patrimonial.

De fato, até a década de 1950, os principais proprietários de grandes glebas urbanas na primeira Légua Patrimonial de Belém não participavam dos grandes grupos empresariais que se haviam consolidado durante a reestruturação da economia regional, pois ainda descendiam de aforamentos promovidos no século XVIII e início do XIX pelo poder municipal para famílias reinóis. Destacam-se nesse caso as famílias Chermont, Miranda, Pombo, Acatauassú Nunes, Umbelina Quadros, Lobo Guimarães, Leal Martins, Lameira Bittencourt, dentre outras401, originalmente associadas a atividades agrícolas no interior da região ou então ligadas à classe política local. Até meados do século XX, essas famílias concentravam o domínio útil de grande parte das áreas baixas e alagadiças da cidade, o que atualmente corresponde à quase totalidade dos bairros do Guamá, Cremação, Telégrafo, Umarizal, Jurunas, espaços onde posteriormente se localizariam as maiores ocupações informais da RMB. Na sua maioria, tradicionalmente essas grandes glebas eram arrendadas para terceiros que ali promoviam atividades agrícolas de pequeno porte voltadas ao abastecimento da população urbana, principalmente para a produção de leite in natura, por isso se tornariam conhecidas pela população local como vacarias.

400 ABREU, P. V. L. A morfologia do Plano de Expansão da cidade de Belém e a estrutura fundiária do

município no século XIX. Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo,

Universidade Federal do Pará, Belém, 2016.

Outras heranças da economia do látex, especialmente os equipamentos urbanos – teatros, mercados, praças, bulevares e museus –, construídos na cidade na gestão de Antônio Lemos, ampliariam definitivamente os ganhos permitidos pela renda fundiária em Belém. Nesse complexo contexto urbano da Belém do início de 1960, a oposição entre centro e periferia espelharia a própria geografia da cidade. De um lado, os terrenos de cotas mais altas ao longo dos principais corredores de tráfego da Primeira Légua Patrimonial – de domínio útil pouco concentrado e próximos aos principais equipamentos urbanos – se converteriam na área central e de maior perspectiva de valorização fundiária localizados ao cidade. Do outro lado, as áreas de cotas mais baixas – de domínio útil concentrado em apenas algumas famílias tradicionais – se converteriam nas áreas periféricas da cidade, de valor desprezível para os agentes do circuito imobiliário local.

Dessa forma, o reinvestimento de lucros na incorporação de edifícios de uso misto se tornaria a opção de investimento de menor risco e de maior perspectiva de valorização para os agentes locais. Ao se converterem em incorporadores, construtores e financiadores dos edifícios, as empresas S.A. locais incorporavam os juros, o lucro e renda produzida na atividade imobiliária. Ao que parece naquele momento, o papel do poder local, como agentes responsáveis pelo planejamento da expansão urbana nos terrenos do patrimônio municipal, seria o de desatar os nós que dificultassem a obtenção das margens de lucro projetadas para esse tipo de empreendimento.

Não se trata nesse caso de avançar no sentido de modificar a forma de gestão desse patrimônio, tampouco na forma de planejar de forma integrada a urbanização da cidade. A obediência ao plano de alinhamento da Primeira Légua Patrimonial não seria contestada pelo menos até meados dos anos de 1970. A bem da verdade, é provável que peso dessa forma de gerir o patrimônio municipal tenha contribuído para que o planejamento urbano de Belém se mantivesse preso às determinações do plano de alinhamento de Nina Ribeiro, somado a incursões pontuais sugeridas no Plano de Urbanização de Belém elaborado em 1944 por Jeronymo Cavalcanti, importante figura do urbanismo carioca durante o Estado Novo e que ocupou o cargo de prefeito nomeado de Belém por alguns meses do ano de 1943.

Entre as diretrizes mais importantes do Plano de Urbanização de Belém, estavam as primeiras determinações de altura dos edifícios da área central. Estas, entretanto, ao invés de preverem limites de gabaritos para a edifícios passam a determinar a quantidade mínima de pavimentos402 para as avenidas principais da cidade, sob a justificativa que associava à ideia

de modernidade à verticalização da área central da cidade. No bojo do estímulo à verticalização, as diretrizes previam ainda o aforamento de terrenos nos limites da avenida 15 de Agosto – principal avenida da área central da cidade –, além da isenção de impostos municipais para os empreendimentos imobiliários aprovados.

É interessante acentuar que a existência de grandes terrenos livres na avenida 15 de Agosto estava relacionada a obras inacabadas de alinhamento e expansão do sistema viário da região, iniciadas ainda na gestão de Antônio Lemos e complementares à reformulação e expansão Porto de Belém. A crise de 1912 inviabilizara a conclusão da obra, ficando os terrenos desapropriados pela obra sob o domínio útil da prefeitura municipal. A doação ocorreria pontualmente entre os anos de 1940 e 1960, contribuindo para a promoção das primeira incorporações das empresas S.A. da cidade. Os casos dos empreendimentos da Importadora de Ferragens S.A., da Rádio Clube S.A. na avenida são emblemáticos nesse sentido, mesmo que sem atingir o gabarito estabelecido de dez pavimentos.

Apesar de muito pontual o auxílio da prefeitura municipal com a doação dos terrenos para os empreendimentos imobiliários das empresas S.A. inaugura uma característica central do planejamento urbano em Belém, marcada pela manutenção e fortes privilégios e subsídios às incorporadoras e construtoras locais de edifícios de apartamentos. É verdade que o processo de verticalização, que tem início no final dos anos de 1950, só ganha força quando o governo do general Castelo Branco organiza a arquitetura financeira que sustenta o Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e o Banco Nacional de Habitação (BNH). Contudo, esse momento de gênese foi fundamental para associar verticalização a progresso econômico e social da cidade, uma aproximação francamente utilizada pelas coalizações locais para controlar as leis de uso e ocupação do solo que passam a surgir em Belém somente no final dos anos de 1970.

É possível considerar que foi somente a partir de meados dos anos de 1960, quando alteraram definitivamente as dinâmicas que regem a economia regional pelo aprofundamento da integração do mercado e centralização das políticas de planejamento regional, que o planejamento urbano em Belém é pressionado parasse alinhar a diretrizes de planejamento já comuns às cidades de outras regiões do Brasil. Em especial, a da necessidade

pavimento no centro da cidade, estabelecendo o gabarito mínimo de dois pavimentos para todo o centro residencial das ruas calçadas de Belém, de três pavimentos para o centro commercial e de pelo menos dez pavimentos para a avenida 15 de agosto, posteriormente ampliado para 12 andares em 1956. Cf. Chaves (2011). CHAVES, T. A. P. V. Isto não é para nós? um estudo sobre a verticalização e modernidade em Belém entre as décadas de 1940 e 1950. 2011. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2011.

de elaboração plano diretor eminentemente tecnocrático, cujo elemento principal é o zoneamento urbano e criação de modelos urbanísticos associados a uma lei de uso e ocupação do solo. Em Belém, os Planos Diretores definiriam o sentido expansão urbana dali por diante, sem necessariamente desenhar a expansão da malha urbana, como havia sido feito para a área da Primeira Légua Patrimonial da cidade.

A forma de planejamento baseadas na elaboração de Planos Diretores se interpõe a uma conjuntura na qual um modo peculiar de gerir a terra urbana ainda garantia algum controle sobre o desenho da cidade. Combinado com a uma estabilidade da economia regional, que retardava o fluxo de migrantes do mundo rural amazônico, o controle sobre o alinhamento associado ao plano da Primeira Légua Patrimonial permitia a manutenção de qualidades urbanísticas que dotavam o intraurbano de Belém de maior nível de integração global403. O desenho urbano assumiria um papel coadjuvante na expansão urbana que ocorre entre as décadas de 1970 e 1990, comprometendo aos pouco as qualidades urbanísticas dos municípios da RMB, primeira região metropolitana da Amazônia.

De fato, no contexto pós-1966, as instituições locais passam a atender a estratégias exógenas de planejamento urbano e regional associadas a órgãos ligados diretamente ao Governo Federal, redefinindo o modo como a terra urbana do patrimônio municipal era gerido pelo poder local. Destacam-se, nesse sentido, as determinações oriundas da SERFHAU e do papel ativo dos agentes de produção do espaço urbano lastreados pela arquitetura financeira e imobiliária do BNH e SFH. São transformações que se desenrolam no sentido de aproximar a terra da sua condição de ativo mobiliário, elevando a autonomia do circuito imobiliário em relação aos outros setores da economia e, consequentemente, a condição de reserva de valor do imóvel urbano.

Ao mesmo tempo, as transformações nas políticas de incentivo regionais colocam ainda mais em cheque as relações de produção baseadas no aviamento, o que tende a enfraquecer a cadeia de comerciantes e industriais que tinham Belém como sua base de operações e reinvestimento dos lucros. No Brasil do milagre econômico dos generais- presidentes, a Amazônia ocuparia uma lugar central na geração de excedentes como espaço de acumulação primitiva permanente. Como mostro no próximo capítulo, a exclusão dos principais grupos empresariais locais das benesses dos fundos públicos controlados pela SUDAM e BASA os tornaria cada vez mais dependentes da renda fundiária urbana e da mais-

403 LIMA, J. J. F. Regulatory instruments and urban form: searching for social equity in Belem, Brazil. Diss.:

valia produzida no interior do circuito imobiliário de Belém, redefinindo sua espacialidade em favor do rentismo fundiário.

3.

AVANÇO DA INTEGRAÇÃO E A AMAZÔNIA COMO