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Regatões: capital comercial endógeno da formação socioespacial da Amazônia A necessidade de circulação do capital pelos rios da bacia amazônica parece ser a

80 COSTA, 2012 81 BELTRÃO, 2004.

1.2.1. Regatões: capital comercial endógeno da formação socioespacial da Amazônia A necessidade de circulação do capital pelos rios da bacia amazônica parece ser a

responsável para que o movimento dialético entre as forças produtivas e as relações de produção do extrativismo de coleta produza inovações no transporte fluvial de mercadorias que, ao longo do ciclo econômico extrativista do cacau, resultaram em uma especialização das frações do capital comercial que se reproduziam naquela formação socioespacial na forma de comissários volantes, ou comerciantes do rio, mais tarde conhecidos como “regatões”109. Os regatões surgem como um grupo social tecido no interior do longo ciclo extrativista da Amazônia colonial, correspondendo a um comerciante isolado que, uma vez abastecido de artigos manufaturados adquiridos – ou aviados110 – nas principais vilas da região, desce os rios em busca de produtos do extrativismo, utilizando esses artigos em trocas com grupos extrativistas ribeirinhos ou mesmo com tribos indígenas locais.

107 CORRÊA, op. cit, 1989. 108 VICENTINI, op. cit.

109 SCHMINK; WOOD, op. cit., p. 79

É difícil precisar a origem ou gênese exata desse típico capital comercial da Amazônia111. Alguns registros apontam para a ocorrência de regatões desde o início do século XVIII 112 , opção de negócio inicialmente exercida por imigrantes portugueses e posteriormente por imigrantes de várias outras nacionalidades, com predomínio dos sírios, armênios, marroquinos e turcos durante a primeira república113. Ao que tudo indica, seu desenvolvimento ocorre motivado pelo aquecimento do mercado interno associado ao crescimento das vilas no interior da região. A ação do colonos foi fundamental no sentido de ampliar a circulação do capital e o comércio intrarregional entre regiões onde a Coroa não tinham domínio, conjugando o conhecimento de navegação português com o tupi114.

Como parcela da sociedade amazônica que se dedica prioritariamente ao comércio interno, o regatão personifica a evolução de pelo menos dois elementos centrais na dialética interna de reprodução do capital na sua forma mercantil pelo extrativismo de coleta. Sua consolidação como uma figura típica da paisagem amazônica, comum pelo menos até meados do século XX, torna evidente que a forma de integração social entre colonos missionários e indígenas, ainda na primeira fase do ciclo extrativista, permitiu que no tempo da vida cotidiana ocorresse o lento acúmulo de graus de aprendizagem na prática da construção de embarcações.

A propriedade e o domínio sobre a produção de embarcações era condição sine

qua non para que a mercadoria extraída nas áreas do aldeamento chegasse até a cidade de

Belém. No seio daquele espaço social, essa demanda exige a interação entre as duas dimensões do saber: de um lado, o saber tecnicamente valorizável, calculável e tradicional da engenharia naval portuguesa; e do outro lado a dimensão da consciência prático-moral do indígena, no conhecimento das madeiras, da floresta, dos rios e do formato das canoas. O resultado dessa dialética são os ubás e igarités, canoas grandes responsáveis pelas viagens de

111 É acima de tudo “um produto original da Amazônia” como define José Veríssimo. VERRÍSSIMO, J. Estudos

amazônicos. Belém: UFPA, 1970, p. 23.

112 cf. MCGRATH, D. G. Parceiros no crime: o regatão e a resistência cabocla na Amazônia tradicional. Novos

cadernos NAEA, vol. 2 n. 2, p. 57-72, 1999.

113 HENRIQUE, M. C.; MORAIS, L. T. Estradas líquidas, comércio sólido: índios e regatões na Amazônia

(século XIX). Revista de História, n. 171, p. 49-82, 2014.

114 “Para estas vias de comunicação (fluviais, terrestres e marítimas) que acabamos de ver, e para as distâncias

enormes que cobrem seus trajetos, contados por centenas e centenas de léguas, d que meios de transporte e condução dispunham os colonos? É para navegação, particularmente a fluvial, que estavam melhor aparelhados. Corria-lhes nas veias o sangue de dois povos navegadores: portugueses e tupis; mas é a estes últimos que se deve o melhor que neste terreno a colônia possui” (PRADO JR., 2011, p. 274). PRADO JR., C. Formação do Brasil

coleta dos produtos do extrativismo, com capacidade para até 50 índios115, cujo manejo de fabricação e manutenção ficava restrito à força de trabalho indígena e cabocla.

O mais provável é que em algum momento do longo ciclo econômico extrativista, mais provavelmente durante o domínio do Diretório, as amarras daquele tipo próprio de manufatura naval, elemento da força produtiva do extrativismo de coleta, tenha-se desprendido da sua atividade fim para assumir a forma de mercadoria capitalista. Autonomiza-se como meio de produção para aquela fração comercial endógena da colônia amazônica, permitindo que aqueles migrantes mais venturosos, de possibilidades medianas ou os pobres e excluídos das benesses da Corôa portuguesa, mobilizassem suas forças para desenvolver esse tipo de comércio itinerante, regateando produtos manufaturados em troca de especiarias.

A ideia do regatear vem da pechincha, do questionamento, da insistência para obter o preço mais baixo durante o processo de troca entre mercadorias. Em outras palavras, significa obter vantagens comerciais pelo convencimento ou coerção, condição típica da fração do capital comercial durante o processo de circulação da mercadoria, como destacou Marx116.

Esta era uma condição que estava posta e consolidada no mundo rural amazônico, já que a troca desigual entre gêneros do extrativismo e produtos manufaturados definia a própria especificidade das relações de produção com o campesinato caboclo da região117 Ademais, tornava o vasto mundo rural amazônico dependente de equivalentes gerais que assumiam a forma desses produtos, como foram a cachaça, os fardos de algodão e a própria semente de cacau durante o século XVIII e boa parte do XIX118. O dinheiro como meio circulante e equivalente geral só era realidade em algumas relações de comércio urbanas e nas atividades agrícolas voltadas para exportação, ambas inacessíveis ao mundo indígena e do caboclo, que desconhecem o preço final do que coletavam para a troca119. A prevalência das

115 HENRIQUE; MORAIS, Op. cit., p. 34.

116 MARX, K. O capital: crítica da economia política (Livro I). São Paulo: Boitempo, 2013, p. 238-240.

117 A ideia de campesinato caboclo está associado à força de trabalho articulado de modo informal pelo processo

de troca desigual sustentado pelo aviamento. Sobre isso ver: COSTA, 2012a.

118 “Na ausência de uma equivalente geral na forma de dinheiro, algumas mercadorias assumem esse papel como

os fardos de algodão, sementes de cacau e a cachaça, muito apreciada pelos índios”. cf. SCHMINK;WOOD, op. cit., p. 81.

119 Uma forma bastante peculiar de escambo se torna regra geral como remuneração pelo trabalho de

extrativismo, recebendo uma terminologia própria no censo de 1778 como trabalhador assoldado, que designava aqueles que trabalhavam nas atividades agrícolas ou de coleta em troca de um soldo pago na forma de mercadorias. Cf. VELOSO, E. C. A. Estruturas de apropriação de riqueza em Belém do Grão-Pará, através do recenseamento de 1778. In: ACEVEDO, R. (Org.) A escrita da história paraense. Belém: NAEA/UFPA, 1998.

relações de produção agrícolas baseadas na troca de mercadorias ou na escravidão e o isolamento da população livre no interior do território desestimulava a ampla monetização daquela economia, fazendo com que, até meados do século XIX, a moeda como meio circulante e equivalente geral fosse uma realidade restrita às principais Vilas120.

Promover a intermediação entre um mundo urbano parcialmente monetizado com um mundo rural, no qual prevalecia o escambo entre mercadorias, tornar-se-ia a principal função do regatão. Num mundo rural não monetizado e de longuíssimos tempos de viagem, o regatão precisava descer os rios com todo o seu estoque de mercadorias e por isso as aviava com os comerciantes urbanos. Estabelecia-se ali um sistema de crédito totalmente informal, não monetizado, mas de extrema complexidade e capilaridade dentro do território amazônico. Por meio dele, o regatão, comerciante autônomo e volante, estabelece relações de trabalho e de troca com outro comerciante, também autônomo, mas fixado ao mundo urbano, tornando-o seu “patrão” enquanto não saldasse as dívidas do aviamento.

A partir desse ponto abre-se um amplo espaço para o crescimento dos regatões, como uma fração comercial endógena da formação socioespacial da Amazônia, que intermedia a circulação do capital no interior das estruturas de produção da formação socioespacial da Amazônia. É bom que se diga que se trata da intermediação tanto de uma produção extrativa entre uma miríade de pequenos extrativista rurais, nada desprezível em termos quantitativos, apesar de ser invisível nos dados oficiais da época, e os comerciantes das principais vilas da região responsáveis pela exportação para o mercado mundial121; quanto do que eram produzidos nas fazendas a partir da estrutura agrícola, voltados basicamente para atender o mercado interno.

O período colonial finda com a consolidação de duas estruturas produtivas na formação socioespacial da Amazônia, cada uma delas representando dialéticas distintas dentro do sistema. Uma extrativista utilizava indiretamente a força de trabalho campesina- cabocla, que se espalhava ao longo de boa parte da bacia hidrográfica amazônica, com base em relações desiguais de troca com os regatões e pequenos e médios comerciantes urbanos que os aviava. Para manter a reprodução do capital na forma mercantil nesses moldes era

p. 395-400.

120De fato, é somente em 1749 que entrou em circulação a moeda sem caráter de mercadoria, e na importância

total de apenas 55 contos de réis. Cf.: SANTOS, op. cit., p. 156.

121 A questão central é que observando no agregado, essa produção “invisível” – posto que escapa às estruturas

produtivas e comerciais “oficiais” da colônia – não se trataria de um produção desprezível. Na linha do que defende Costa, mais da metade da produção da colônia ao longo de todo o período teria origem nesses produtores invisíveis, podendo indicar a robusta formação de um campesinato-caboclo(COSTA, 2012a, p. 53).

necessário sustentar uma intrincada rede de troca e de empréstimos que se ficaria conhecida como Sistema de Aviamento pela historiografia econômica da Amazônia. De menor importância dentro da pauta exportadora, havia uma segunda estrutura, de produção agropecuária, organizada por famílias fidalgas portuguesas que compunham a chamada elite colonial e, como tal, distinguiam-se pela propriedade de fazendas, cabeças de gado, escravos, engenhos e imóveis urbanos.

Com a liberação da força de trabalho indígena, esses agentes reduzem a sua capacidade de exportação de produtos do extrativismo, o que aparentemente os obriga a direcionar forças no sentido de elevar a produtividade agrícola, resultando em crescimento na quantidade de produtos agropecuários exportados na ordem de 3,4% a.a., entre 1790 e 1822. De fato, se por um lado essa evolução nas estruturas agropecuárias não se mostrou suficiente para se sobrepor ao domínio do extrativismo de coleta na economia da Amazônia colonial122, por outro lado, quando se interpõe a fase de decadência dos preços e da exportação do cacau, após 1820, as inversões no sentido da expansão de atividades agrícolas parecem ter-se intensificado por parte da elite colonial.

É importante ressaltar que, apesar de se tratar de uma estrutura de produção que economicamente contribuía menos para a pauta exportadora dos estados amazônicos, eram os agentes dessa estrutura que conformavam a elite política do Estados da Amazônia. Eram também os únicos agentes da colônia que detinham o controle sobre algum meio de produção de base minimamente industrial, no caso os engenhos de açúcar; entretanto, estavam longe de se equiparar aos seus pares do complexo nordestino, já que grande parte do açúcar do engenho era desviado para a produção de aguardente a ser usada na troca com os indígenas e caboclos.

O clima de euforia da elite colonial foi relativamente curto, sendo fortemente prejudicado por conflitos internos que culminaram na guerra civil da Cabanagem, durante a difícil transição que o Estado do Grão-Pará, de colônia portuguesa para província do Império brasileiro. No rastro da devastação causada pela guerra, particularmente nas estruturas produtivas dispostas na área rural da Amazônia, as suas principais cidades são assoladas por seguidas epidemias de varíola, cólera e febre amarela, devastando uma parcela expressiva dessa população123. Os dois casos foram extremamente danosos para a força de trabalho disposta na região, desintegrando a vida econômica e social da Amazônia no fim do período

122 COSTA, 2012a, p. 57. 123 Cf. BELTRÃO, op. cit., 2004.

colonial brasileiro124.