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Enfrentamento espiritual para manter e transformar o sagrado

3.6 Espiritualidade como recurso para o enfrentamento

3.6.2 Enfrentamento espiritual para manter e transformar o sagrado

A profanação é um caminho pelo qual a busca pelo sagrado pode ser interditada. Outros eventos da vida podem se assemelhar a perdas do sagrado, mas apenas as violações intencionais do sagrado são aptas para instigar raiva e fúria. A perda do sagrado pode levar o indivíduo à tristeza e à depressão. Percepções de eventos como ameaças ao sagrado podem gerar ansiedade. Violações do sagrado podem gerar culpa.

Quase sempre, a primeira escolha para o enfrentamento é tentar segurar o sagrado. Porém, quando os caminhos rumo ao sagrado não são mais interessantes

e os destinos sagrados não são mais viáveis, as pessoas podem entrar num período denominado de luta espiritual e engajarem-se em métodos de enfrentamento espiritual ou libertação da busca pelo sagrado.

Em período de dificuldade pessoas podem alcançar suporte no sagrado. Tal suporte pode vir da percepção de um encontro espiritual direto, uma provação espiritual que neutraliza a provação da calamidade. O suporte espiritual também pode ser resultado do crescimento de outras fontes: oração e meditação, relacionamentos com membros do clero ou da congregação, práticas de rituais, envolvimento em cultos religiosos, crenças, o estudo de livros sagrados, música, natureza, arte e etc.

As ameaças ao sagrado podem vir do exterior das pessoas. Embora as transgressões específicas possam variar em graus, de tradição para tradição, elas compartilham de uma característica comum: todas elas dizem criar uma ruptura (violação) entre o indivíduo e o sagrado. Para consertar tal violação, muitas pessoas se envolvem em rituais de purificação. Em uma cultura ocidental, a confissão espiritual talvez seja o ritual de purificação mais comum. Cada confissão tem dois componentes importantes: um reconhecimento de que a pessoa cometeu uma violação espiritual e um pedido por perdão. Atos de penitência e de restituição normalmente também fazem parte das confissões espirituais em muitas tradições.

As evidências indicam que os métodos espirituais de enfrentamento são efetivos para ajudar as pessoas a sustentar e melhorar a saúde mental em tempos de crise. Mas, há momentos que o sagrado não pode ser completamente protegido. O indivíduo pode experimentar confusão e desorientação espiritual e finalmente transformar o relacionamento com o sagrado.

Outra forma de luta espiritual envolve tensão entre o individual e o divino. Dentro das tradições monoteístas, a maioria das pessoas ve Deus como um ser de amor, todo poderoso, que trabalha diretamente em nossas vidas para assegurar que coisas boas vão acontecer para pessoas boas. Eventos críticos da vida, no entanto, podem questionar essas crenças. Lutas espirituais podem também envolver várias combinações destes tipos de conflitos interpessoais, intrapessoais e divinos.

As lutas espirituais podem ser temporariamente, manifestações de um sentimento passageiro de raiva em relação a Deus ou questionamento passageiro sobre possível punição decorrente de pecado. Sendo assim, podem ser expressões

de dor espiritual seguidas de um retorno às vias espirituais conservacionistas estabelecidas.

Para muitas pessoas, no entanto, as lutas representam um importante ponto de virada na vida, um pretexto espiritual que pode levar a renovação, crescimento, e transformação positiva em uma direção, ou desespero, falta de esperança e de sentido. As lutas espirituais interpessoais, intrapessoais e divinas estão ligadas de forma bem consistente aos altos níveis de ansiedade e depressão, aos níveis mais baixos de funcionamento físico e qualidade de vida, e à angústia relacional. As lutas espirituais também podem ser sinal de um temporário ou passageiro desinteresse pelo sagrado. O que determina qual direção a pessoa que está passando por lutas espirituais deve seguir depende em parte da habilidade individual de se envolver em uma transformação espiritual de sucesso.

Por “transformação espiritual” se entende primeiramente, mudanças fundamentais no lugar do sagrado ou a personagem do sagrado na vida da pessoa, e depois uma mudança fundamental nas vias que o indivíduo toma para chegar ao sagrado. A transformação espiritual pode ser difícil e dolorosa. No entanto, a transformação é parte natural e normal da busca pelo sagrado. As principais tradições religiosas desenvolveram uma variedade de métodos que são especificamente designados para facilitar o processo de transformação para uma existência espiritual mais autêntica.

Algumas formas de transformação espiritual são: transições espirituais, revisar o sagrado e centralizar o sagrado.

Transições sagradas tratam de ritos de passagem que podem facilitar transições críticas da vida. Aqueles que participam dos rituais de transição assumem novos papéis, o que significa que eles acumularam sabedoria e experiência. Trata- se de uma oportunidade de emergir da experiência de combate como pessoas valiosas de suas comunidades, os quais alcançaram um novo status do sagrado. Revisar o sagrado diz respeito às imagens do sagrado enraizadas nas experiências infantis que devem ser recriadas em resposta às crises e transições da vida. Pessoas que veem Deus como um ser distante e até mesmo punitivo, podem revisar o divino como uma figura compassiva, que está presente nos tempos de grande dor. As novas visões do sagrado representam mais do que mudanças cognitivas. Elas sempre são acompanhadas por outras transformações espirituais, no qual o sagrado é realinhado dentro da hierarquia do indivíduo de valores e

aspirações significantes. O sagrado se move de uma posição marginal para o centro total da vida do indivíduo e da definição dele.

Em resposta às lutas espirituais, muitas pessoas se envolvem em transformações. Para centralizar o sagrado, as pessoas devem confrontar os limites de uma maneira de viver a vida. Elas devem depois passar pelo processo de dor e desvincular-se de velhas fontes de significância. Depois, elas encaram uma tarefa de reconstrução de suas vidas e reorientação de si próprias, aproximando-se de um novo centro de valores. Embora este tipo de mudança seja difícil, não é impossível. A busca pelo sagrado não tem fim, mesmo quando a transformação de sucesso ocorre, o indivíduo enfrenta mais uma vez a tarefa de sustentar e melhorar seu relacionamento com o que foi transformado.

A transformação espiritual pode resultar em uma separação, tal como a desconexão de Deus, o distanciamento de uma comunidade religiosa ou distância de qualquer sentido de transcendência, intimidade e atemporalidade no mundo. A separação espiritual é mais precisamente definida por uma perda de interesse nas coisas sagradas. Embora a separação espiritual possa ser a palavra final quando a transformação espiritual não tem êxito, a chama espiritual talvez não seja inteiramente apagada, somente reacendendo mais uma vez em um momento posterior da vida, quando o sagrado é redescoberto.

As pessoas são seres ativos que se esforçam na busca de significado, a busca pelo sagrado é um elemento crítico deste esforço. A espiritualidade como um processo, um ciclo de descoberta, conservação e transformação, envolve toda a vida. As jornadas espirituais individuais desdobradas em diversos caminhos dependem de muitos fatores individuais, sociais, e circunstanciais. O sentido da presença sagrada parece vir e ir. A espiritualidade vaza e flui no decorrer da vida e pode assumir diferentes formas, que podem envolver e afetar pessoas de diferentes maneiras. O processo de descoberta, conservação e transformação do sagrado não é sinal de psicopatologia; nem deve ser confundido com indicadores de extraordinária saúde e bem estar. Tal processo é parcela do que parece ser humano. A busca pelo sagrado pode levar a expressões do maior potencial humano, mas pode falhar tornando tudo o que era um aspecto de experiência humana valiosamente espiritual em uma força destrutiva que atrapalha.

Para Pargament, a espiritualidade mais efetiva é a espiritualidade bem integrada, os problemas espirituais são reflexos de uma espiritualidade

desintegrada, cujas partes estão fora de equilíbrio e trabalham umas contra as outras (PARGAMENT, 2008, p.133). Uma espiritualidade bem integrada é definida pelo grau em que os caminhos e os destinos espirituais do indivíduo trabalham juntos em sincronia um com o outro. Uma espiritualidade que engloba caminhos amplos e profundos; receptiva às situações da vida; nutrida pelo contexto social maior; capaz de flexibilidade e continuidade e orientada para um destino sagrado que é grande o suficiente para abarcar toda a gama de potencial humano e suficiente para prover o indivíduo com uma visão orientada. A espiritualidade desintegrada é definida por caminhos em que faltam âmbito e profundidade; falha em atender aos desafios e exigências dos eventos da vida; conflituosa e colidindo com o sistema social em volta; se altera ou muda muito facilmente ou de jeito nenhum e desorienta o indivíduo na busca de valores espirituais.

Observa-se que indivíduos podem conter muitas imagens diferentes de sagrado simultaneamente. O quadro do sagrado é desenhado a partir de diferentes materiais: representação dos pais, cultura, religião organizada, necessidades pessoais, temperamento, experiências sagradas e anseios espirituais. Grupos religiosos podem apoiar este tipo de cisão e intensificá-la ainda mais através da linguagem do demoníaco. Nesta perspectiva, aqueles que estão fora da esfera sagrada, não são somente maus, eles são aliados com os poderes das trevas, contra o sagrado. Para extirpar o demoníaco e proteger o sagrado, grupos religiosos podem desejar dar passos extremos com resultados desastrosos.

A demonização dos outros pode ter um grande impacto social. Além disso, a noção de satanás ou de uma força do mal, em geral no universo, pode oferecer uma maneira particularmente convincente para dar sentido ao que parece incompreensível, incluindo os próprios atos ou atos de outros. A linguagem do demoníaco serve para preservar o sentido individual de Deus e do sagrado; contribui para a identidade individual, por definir contra o que a pessoa se coloca; e é frequentemente acompanhada pelo conforto e pela esperança de que o demoníaco possa ser controlado e contido (PARGAMENT, 2007, p. 147). Porém, problemas surgem quando as pessoas são incapazes de integrar sua compreensão do mal com a maneira de chegar a um acordo consigo mesmas, com outras pessoas e com o mundo. A desintegração pode ocorrer quando a pessoa se identifica exclusivamente com o mal, ou quando nega o lado mais sombrio de si mesma e o projeta no outro.

Às vezes, as pessoas tornam-se espiritualmente desorientadas e suas formas de pensar, agir, sentir, relacionar-se e enfrentar falham em criar caminhos transversais para o sagrado. Como resultado, o indivíduo envolvido na busca espiritual fica preso, perdido e colide com outros.

A espiritualidade é mais do que um conjunto indefinido de crenças, práticas, relações e experiências. É um modo de ser amplo e profundo, que toca praticamente todas as dimensões da vida. Nem todos integram espiritualidade tão plenamente. Na cultura ocidental, que valoriza a liberdade de escolher crenças e práticas, as pessoas são incentivadas a construir os seus próprios caminhos espirituais personalizados. Para auxiliá-las no processo, a nossa cultura oferece uma variedade de opções espirituais a partir das quais as pessoas podem selecionar e escolher. Este estilo de espiritualidade pode criar vazios na vida espiritual das pessoas. Na cultura atual percebe-se uma variedade de formas de espiritualidade que carece de amplitude, trata-se de uma espiritualidade independente, focada exclusivamente na satisfação pessoal, sem preocupação com os outros. Onde as práticas são vazias, separadas dos sentimentos de temor e enaltecimento. É a espiritualidade de pura experiência sem fundamento na sabedoria de grandes mestres espirituais, do passado e do presente. A espiritualidade da mente sozinha desprovida de rituais que simbolizem e representem as verdades mais profundas da vida.

Sem amplitude e profundidade espiritual as pessoas provavelmente experimentam desintegração espiritual em sua busca pelo sagrado. Seus conhecimentos espirituais são fragmentados e suas crenças não são ponderadas, com frouxa conexão entre a forma de entendimento de si mesmo e o mundo ao redor. Não há qualquer relação da pessoa com a comunidade religiosa, mas uma predominância de práticas ritualísticas sem significado e essência. Percebe-se a ausência, no repertório de enfrentamento do indivíduo, de métodos espirituais de compreensão e maneiras de lidar com a tragédia. O relacionamento com Deus é marcado por ambivalência e incerteza. Sem uma finalidade e profundidade a espiritualidade perde poder, tornando-se incapaz de servir a importantes funções psicológicas. Os elementos que compõem a espiritualidade do indivíduo podem colidir com os outros e a espiritualidade falha em ter coerência. O indivíduo encontra problemas de ajuste espiritual, tais como o extremismo espiritual, onde para preservar e proteger o sagrado, frequentemente se sente compelido a tomar medidas excepcionais, que podem se transformar em medidas extremas.

Outro problema de ajuste é a hipocrisia espiritual, a participação religiosa acontece sem uma quantidade mínima de convicção religiosa internalizada, podendo ser uma fonte de conflito e sofrimento para as pessoas (PARGAMENT, 2007, p.147).

Parte do poder da espiritualidade apóia-se em sua riqueza e diversidade. Muitos caminhos espirituais estão disponíveis às pessoas que encontram eventos críticos na vida. Estas podem selecionar cuidadosamente entre variados caminhos para a melhor rota de seu destino. O que requer “condição de sabedoria”, habilidade de saber quando e o quê realizar. Foi desenvolvida uma avaliação de estilos de enfrentamento religioso, que varia de acordo com a responsabilidade e o controle pela solução dos problemas atribuídos ao indivíduo e a Deus (PARGAMENT, 1998). Na abordagem de delegação, a responsabilidade pela solução do problema é atribuída pelo indivíduo, exclusivamente a Deus. Na abordagem autodirigida, a responsabilidade pela solução dos problemas pertence somente ao indivíduo e na abordagem colaborativa, a responsabilidade pela solução dos problemas é dividida entre o indivíduo e Deus, ou seja, o indivíduo e Deus trabalham juntos para resolver os problemas.

Percebe-se que o estilo religioso de resolução de problemas que delega totalmente a responsabilidade a Deus estava ligado à menor autoeficiência, baixa autoestima, poucas habilidades em resolução de problemas e uma maior intolerância pelas diferenças entre as pessoas. Em contraste, os estilos autodirigido e colaborativo estavam associados a maiores níveis de autoeficácia e habilidades de resolução de problemas.

O valor dos estilos de enfrentamento religioso pode variar de situação para situação. Formas, exclusivamente, seculares de enfrentamento, que falham em atender às necessidades da situação fazem tão pouco sentido, quanto, formas exclusivamente, espirituais de enfrentamento, que, são igualmente desconectadas das realidades da vida. Sabedoria situacional requer aplicação judiciosa e integração dos recursos espiritual e não espiritual no esforço de entender e lidar com os problemas da vida. As diferenças espirituais entre pessoas poderiam levá-las a enriquecer o diálogo e à partilha de experiência. Através destes procedimentos as pessoas poderiam alcançar a mais profunda compreensão de si mesmas e uns dos outros.

Uma espiritualidade em que falta flexibilidade torna-se inadequada conforme a mudança do tempo e das circunstâncias. Igualmente problemática é a inabilidade de sustentar uma abordagem espiritual para a vida. O nível individual de integração espiritual não é fixo nem definitivo, integração espiritual é um constructo dinâmico. Ao longo da vida uma pessoa pode mover-se na direção ou afastar-se de uma maior integração espiritual, dependendo de fatores pessoais, sociais e situacionais. Um alto nível de integração não significa que a busca pelo sagrado é completa, nem é a desintegração necessariamente, a última palavra na busca pelo sagrado. A transformação permanece sempre como uma possibilidade.