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Como ensinar uma técnica corporal para estudantes de terapia ocupacional: um corpo mecânico ou um corpo relacional?

4 TERAPIA OCUPACIONAL DAS PAIXÕES: O ENSINO NA

4.3 Como ensinar uma técnica corporal para estudantes de terapia ocupacional: um corpo mecânico ou um corpo relacional?

a década de 1980 ganhei um curso de especialização: Conceito Bobath51. Ainda N

trabalhava no Pequeno Cotolengo e a instituição me deu o curso.

Em uma das aulas nos foi ensinado que quadros de Paralisia Cerebral, classificados como de Diparesia Espástica tem o tônus muscular aumentado, com maior comprometimento nos membros inferiores, mas também apresenta alterações nos membros superiores. Geralmente apresentam um hemicorpo mais comprometido que o outro. Quando a lesão cerebral é grave não chegam a andar, mas em casos moderados atingem a deambulação que pode ser sem nenhum auxílio, ou com apoios de bengalas, muletas ou andadores, dependendo do comprometimento da funcionalidade.

As funções dos membros superiores também podem estar comprometidas devido à espasticidade que impinge um padrão flexor nos braços (cotovelo e punho), com rotação interna e adução dos membros ao tronco. Esse padrão postural dificulta a marcha, compromete o equilibro, e diminui os movimentos seletivos da mão. A pessoa que tem esse quadro patológico tem dificuldades de controle de tronco e cabeça, quando de pé tendem para frente e podem ter muitas quedas, podem ter dificuldades em dissociações do tronco, o que dificulta os movimentos de transferência de posições do corpo no espaço, apresentam dificuldades na prono-supinação do antebraço, ausência ou dificuldade no movimento de pinça envolvendo polegar e indicador. Também podem ter dificuldades em outras dissociações nos dedos das mãos comprometendo o agarrar, segurar e carregar objetos, principalmente daquelas que exigem coordenação motora fina, como, escrever, abotoar, segurar objetos pequenos ou pesados, talheres, escova de dente, pente, amarrar sapatos, colocar roupas, entre tantas outras atividades da vida diária e prática.

Aprendi no curso de especialização que a terapia ocupacional deveria propor atividades que não exigissem o uso de movimentos finos, de uso de força, de manipulação de objetos pequenos. Para essas atividades o paciente deveria estar sentado, com as pernas

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abduzidas, tronco e pés apoiados e a mesa deveria ficar na altura do peito da pessoa para que seus braços pudessem estar à sua frente. Essa posição inibiria a atividade reflexa patológica e diminuiria a espasticidade. Somente nessa posição poderiam ser oferecidas atividades que exigem motricidade média. E mais, só deveriam ser ofertados, jogos e objetos grandes, leves e que requeressem uma manipulação bi manual.

Em geral as pessoas que tem paralisia cerebral com o quadro de diparesia espástica podem apresentar também algum comprometimento no campo cognitivo devido à área da lesão que teve no sistema nervoso central, assim podem ter associado deficiência intelectual, portanto, também podem ter dificuldades de compreensão.

Chego ao trabalho no dia seguinte e no meio da manhã é o horário de atendimento de Pedro.

Pedro é um menino loiro de nove anos, magrinho, com a pele um pouco manchada, pois ainda tem as marcas da subnutrição e dos vermes com que chegou ao Pequeno Cotolengo. Costuma ser quieto e com pouca iniciativa para as atividades. Seu diagnóstico é de Paralisia Cerebral com Diparesia Espástica, considerada moderada e com deficiência intelectual.

Entra na sala de terapia ocupacional com seu andar claudicante, jogando seu tronco para os lados e com os braços abertos para melhorar seu equilibro, senta-se à mesa, e me diz o que quer fazer naquele dia, o que não era seu costume: “Oi Eucenir, hoje eu quero fazer um radinho de pilha!”

Surpresa, eu pergunto: “Mas como assim? Como vamos fazer uma radinho de pilha?” Ele responde que era fácil e que viu alguns com os pedreiros que estavam trabalhando na instituição. Peço para ele contar como era esse rádio e ele me descreve: “Ele é pequenininho, assim (me mostra com as mãos o tamanho) e tem uma anteninha, um botão de lado que roda para por na música que eu quero ouvir. E ele pode ser carregado assim (me mostra com o corpo: põe uma das mãos no ouvido e sai andando e cantando pela sala).”

Senta-se novamente à mesa e completa: “Ah, tem que ter aqueles furinhos para a música sair.”

Sua simplicidade é comovente, mas eu insisto: “E como vamos fazer então esse radinho? Que materiais você precisa? Como vamos montá-lo? Como a música vai sair?”

Ao fazer essas perguntas ele fica me olhando, tranquilamente, sentado do outro lado da mesa. Quando eu termino, aflita que já estava com a proposta, ele levanta, vai até o armário de materiais, pega uma ripa de madeira, um lápis, um serrote, cola, uma rolha e um prego e me explica:

Assim... serramos essa madeira desse tamanho (me mostra na ripa), com o lápis pintamos os furos da música, depois martelamos o prego no desenho dos furos para ela sair. Depois colocamos o prego aqui (me mostra o lugar da antena) e o rádio está pronto.

Então eu pergunto: “E o que você vai fazer com o rádio?” (Que pergunta!)

Ele responde: “Ah, vou me sentar com os meus amigos pedreiros na hora do almoço e descansar, ouvindo música e conversando...”.

Bom, resolvido qual seria a atividade e de como iriamos faze-la, restava a tarefa de executá-la. Mas como?

Com o intuito de seguir os protocolos da aula que havia tido no dia anterior tenho a ideia de colocá-lo sentado em uma cadeira abdutora e pedir para que ele segure a madeira com as duas mãos à sua frente, enquanto eu serro.

Pedro rejeita completamente a minha proposta. Levanta-se, fica de pé em frente de um balcão que tinha uma morsa fixa, suas pernas estão afastadas, com alguma abdução e semi-fletidas, “pernas em X”, o tronco levemente fletido à frente, braços aduzidos e um pouco flexionados, antebraços com rotação interna, ou seja, com um padrão corporal esperado para o seu quadro de Paralisia Cerebral.

Pega a ripa e o serrote, fixa a ripa na morsa e serra a madeira usando força. Solta o toco de madeira, senta-se à mesa e desenha o autofalante do rádio com o lápis, faz pontinhos. Pega o prego e o martelo pede para eu segurar o toco de madeira e faz os buraquinhos nos pontinhos desenhados, segurando o prego com uma mão e o martelo com a outra.

Fiquei com medo de levar uma martelada nos dedos, mas nada aconteceu. Depois repete o pedido para eu segurar o toco de madeira de pé e coloca o prego como antena. No final cola a rolha de lado para ser o botão do rádio. A rolha não fixa, então a remove e desenha com lápis, o botão. Terminou! Também acabou o seu horário na terapia. Levanta- se, me olha feliz com um grande sorriso, pega seu rádio e coloca na orelha e diz: “Vou

almoçar porque depois vou encontrar os meus amigos pedreiros para ouvir música e conversar!”

Sai feliz e cantando e eu fico sem ação. Seu tônus muscular não aumentou, não teve atividades reflexas patológicas, usou martelo, segurou o prego, usou força, tudo ao contrário que aprendi no dia anterior. Trouxe a ideia de uma atividade, programou como fazê-la e a fez. E mais, pediu meu auxilio só para pequenos passos da atividade. E no final, saiu leve e feliz da sala de terapia ocupacional.

Tive uma aula diferente sobre Paralisia Cerebral e intervenção corporal. Aprendi que ninguém sabe o que o corpo pode desde que ele atue sob o imperativo do desejo.

E o que fiz com a especialização do Conceito Bobath? Eu a ensino há 30 anos aos meus estudantes de terapia ocupacional da USP.

Aprendi com Pedro e Espinosa a reler a proposta do recurso terapêutico aventado pelo Conceito Bobath. Ele não é reducionista em si, é a leitura que podemos fazer dele que pode torná-lo organicista e biomédico. O recurso não é a intervenção terapêutica por si só, é apenas um meio utilizado no processo. Não sendo assim bom nem ruim por si só, a composição de uma ação terapêutica tem que considerar o desejo e a imaginação, pois o desejo é aquilo que nos parece como um bem.

4.4 O ensino da disciplina Terapia Ocupacional e as práticas corporais III na USP: o

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