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OCUPACIONAL DAS PAIXÕES: A AÇÃO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À

5.4 Quando ocorre a escuta: Dona Manuela

O reconhecimento é o amor por alguém que fez bem a um outro. (SPINOZA, Ética III, Definições dos Afetos, D19, p.245)

ona Manuela é uma senhora de 60 anos, doceira e que gosta de dançar. Ela é D

sambista. A estagiária de Terapia Ocupacional chegou até ela pela equipe de saúde da família, que narrou que ela teve um Acidente Vascular Cerebral há uns seis meses. O que estava preocupando a equipe é que ela só ficava deitada, olhando silenciosamente para o teto, levando-os a suspeitar de um duplo Acidente Vascular Cerebral e/ou de uma forte depressão associada. Ela não falava, parecia afásica, aparentava não compreender ninguém. Não manifestava nenhum gesto com nenhum dos lados do seu corpo. Não respondia nem sim, nem não. Seu olhar era vazio.

A primeira estagiária que a encontrou dessa forma introduziu algumas possibilidades de Comunicação Alternativa que discutiu com os familiares. Eles tinham a expectativa de que ao menos ela dissesse sim ou não para as perguntas. Familiares e estagiária desejavam alguma comunicação. No entanto, nem piscar os olhos se obteve como resposta à proposta de Comunicação Alternativa.

Para a estudante esses encontros semanais sempre foram muito angustiantes, mas a proposta era de se chegar ao menos em alguma comunicação.

Quando tocada em seu corpo ficava passiva, inerte. Já tinha passado a fase de hipotonia após acidente, já deveria estar com algum aumento de tônus, mas não tinha esses sinais. A equipe fez um agendamento de exames de tomografia e outros, era preciso encaminhá-la para o nível secundário e esclarecer o seu diagnóstico.

Enquanto se aguardava os exames chegou o segundo estagiário, Antônio.

Antônio teve as mesmas dificuldades que sua colega. No auge de sua angústia, devido à ausência de comunicação, levou um livro do Carlos Drummond de Andrade e começou a lê-lo para Dona Manuela. Era um presente, era uma forma dele estar lá. Ele tinha que se ocupar e ocupá-la no tempo da espera. A leitura diminuía o seu sentimento de impotência. Não sabia aonde essa atividade chegaria e qual o sentido que teria para Dona Manuela.

A primeira reação diante das leituras foi de seu olhar. De um olhar vazio, perdido, passou a olhar o estagiário. A olhá-lo fixamente. A cada dia ele lia um trecho do livro de

poesias. Ao final deixava o livro ao lado da cama e lhe dizia: “Eu trouxe para você, é seu esse livro!”. Ela continuava olhando.

Assim foi por um semestre e já havia dúvidas sobre os sentidos desses encontros. Persistíamos considerando o seu olhar, pois ele havia mudado. Enquanto isso, aguardávamos os exames, nós da terapia ocupacional e da equipe de saúde, na esperança de que eles poderiam nos dar pistas para a nossa ação.

Terminou o estágio, Antônio se despediu e nenhuma reação além do olhar. Depois das férias de final de ano chegou a nova estagiária. A mesma sensação de angústia, nenhuma mudança no quadro. Dona Manuela aguarda, ou melhor, sua família aguarda a chegada do dia dos exames e do esperado diagnóstico.

Na parede do quarto, ao lado de sua cama continuava a prancha de Comunicação Alternativa, sem nenhum uso.

A nova estagiária é tomada pela angustia já vivenciada anteriormente pelos colegas. Como supervisora, eu novamente fico na dúvida sobre o que estamos fazendo e oriento a estudante que, enquanto aguardávamos por mais dados sobre o que Dona Manuela tinha, nós iríamos continuar o que Antônio estava fazendo. Talvez avançássemos no contato visual, talvez outras pistas pudessem surgir.

A estudante chega então à casa de Dona Manuela e pega o livro de poesias para ler. Quando faz o gesto, Dona Manuela diz: “Esse não! É do Antônio!”.

Diz em voz alta, forte, sem vacilar. A estagiária se assusta e diz: “Claro!”. Fica sem ação, não sabe como prosseguir e, depois de alguns minutos, recuperada, diz à Dona Manuela: “Então, o que vamos fazer?”.

Nos próximos encontros o diálogo vai se ativando, Dona Manuela aceita a proposta de fazer um livro de receitas de seus doces. Dita para a estagiária os ingredientes e o modo de fazer, passa a narrar os doces que mais gostava de preparar. A estagiária experimenta uma de suas receitas e leva para ela.

Com o passar do tempo o livro de receitas foi se aprimorando e Dona Manuela também foi apresentando outras possibilidades corporais. Passou ficar sentada na cama, com o tempo foi para a cadeira e, mais tarde, chegou à cozinha.

Mas o que aconteceu nesses atendimentos? Por que esperamos? Por que insistimos um ano?

A leitura do livro foi uma delicadeza, uma forma de dizer: “estamos aqui, compartilhamos com você esse seu momento, a sua dor. Também temos dúvidas se você vai voltar a dançar e se vai voltar a fazer doces, mas estamos com você”.

As poesias, o presente, a leitura pacienciosa e delicada. Chegar toda semana e dizer como Antônio: “Bom dia, estou aqui! Vamos nos deleitar com uma poesia. Que lindas!”.

A leitura irrompe como um momento de viajar, de dançar nos pensamentos, de pensar na vida, nas alegrias, nas tristezas, e de compartilhar emoções. Mas uma leitura acompanhada por alguém que não está te julgando, não está exigindo, não está cobrando. A vivência de em encontro entre corpos que não impõe regras.

Estava deprimida? Possivelmente sim, profundamente triste. O acidente vascular cerebral atingiu toda a sua essência, seu desejo, seu conatus. Como iria agora se movimentar? Brincar? Sambar? Fazer e vender doces? Não sabia.

Foram bons encontros? Foram encontros que despertaram paixões alegres? Talvez sim, foram encontros aparentemente despretensiosos, que afirmaram o reconhecimento que sua existência por si só é importante. Asseveraram a constância e a delicadeza do cuidado. Foram encontros que não exigiram uma forma de ser e de estar no mundo.

Como bons encontros que foram, despertaram a potência do corpo. Nós da terapia ocupacional tivemos que lidar com as incertezas desses encontros e legitimar o que percebíamos. O olhar constituiu um vínculo que desde o início já se estabeleceu.

O livro, a leitura, o presente, o reconhecimento de estar diante do outro. Certamente foi um convite para sair da inércia, para uma ação: falar é uma ação, reconhecer que foi reconhecida é uma ação. A presença e a atividade a afetou com paixões alegres. E também a nós estagiários e supervisora, saímos todos fortalecidos dessa experiência vivida. A escuta é primordial.

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