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OCUPACIONAL DAS PAIXÕES: A AÇÃO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À

5.5 Por uma terapêutica ocupacional das paixões

A filosofia de Espinosa consiste em um enorme esforço para libertar a natureza da ilusão das causas finais constituída pela metafísica e física Aristotélica sem, no entanto, cair no dualismo corpo/alma sistematizado em Platão e continuado por Descartes. Espinosa, no Livro I da Ética, demonstra que existe apenas uma única substancia que é causa de si mesma:

Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado. (SPINOZA, EI, D3, p. 13).

Por atributo compreendo aquilo que de uma substancia o intelecto percebe como constituindo a sua essência. (SPINOZA, EI, D4, p. 13).

Por modo compreendo as afecções de uma substancia, ou seja, aquilo que existe em uma outra coisa por meio da qual também é concebido. (SPINOZA, EI, D5, p. 13).

Essas três definições em Espinosa demonstram o que é a substância Deus, que coincide com a Natureza. Modos são os seres finitos que compõe a Natureza, e os modos em Espinosa são os corpos.

Espinosa desenvolve sua teoria sobre o corpo no livro II da Ética sob o princípio da Inércia, ou seja, o corpo operando como causa eficiente interna: o corpo é definido como singularidade complexa, composto de outros corpos e constituído por um equilíbrio interno na proporção de movimento e repouso.

O que pode um corpo? Pergunta Espinosa. Afetar e ser afetado. As afecções fundam os corpos, e são as afecções que também compõem a atividade presente na mente.

O trabalho nas supervisões de terapia ocupacional fundada na filosofia espinosana objetiva a formulação de uma terapêutica das paixões.

Espinosa compreende corpo e alma/mente como uma totalidade, indissociável e singular, um todo afetivo constituído pelo apetite/desejo, nos fazendo pensar a saúde e a reabilitação como um processo ininterrupto de busca pelo aumento da potência de ação do indivíduo.

Essa potência de ação pode ser diminuída quando o corpo é afetado por maus encontros, produzindo paixões tristes. No caso da deficiência e dos processos reabilitacionais e terapêuticos ocupacionais, isso acontece quando o corpo é compreendido de forma reducionista e depreciativa. O enfrentamento do enfraquecimento do conatus pode ser realizado por uma terapêutica estabelecida nos afetos alegres, na qual o corpo é considerado em sua singularidade e na potência de sua ação.

Na perspectiva espinosana o corpo está em constante transformação, como uma coisa singular, como um indivíduo complexo composto de outros corpos, que juntos convergem para uma mesma ação. Dessa forma, quando ocorre um bom encontro no processo terapêutico, a pessoa com deficiência, seus familiares, a comunidade e os terapeutas são afetados em uma boa composição. O mesmo pode-se dizer do trabalho em equipe, quando ocorrem bons encontros no trabalho o conatus de todos profissionais aumenta, tornam-se mais fortes, mais criativos em suas ações, tornam-se singulares:

Por coisas singulares compreendo aquelas coisas que são finitas e que têm uma existência determinada. E se vários indivíduos contribuem para uma única ação, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa de um único efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma única coisa singular. (SPINOZA, EII, Def. 7, p. 81).

Com a noção de conatus, Espinosa identifica a essência e a potência de existir, agir e pensar, afirmando a potência de afetar e ser afetado. Assim, nenhum encontro deixa de modificar os corpos. No encontro terapêutico, a ação da terapia consiste em agir sobre a existência do outro e, se esse agir constituir em um bom encontro, aumenta o conatus corpóreo/pensante. Ao contrário, se for um modo inadequado, despotencializa o corpo. A essência do corpo permanece a mesma, corpo/mente um só, mas a potência pode variar negativa ou positivamente, pois está condicionada pelas afecções que o corpo sofre no encontro com outros corpos.

A ação terapêutica ocupacional afeta os corpos. Assim, o preparo adequado para a prática terapêutica é necessário: é preciso conhecer os recursos terapêuticos, manejar situações relacionais, possuir repertório de atividades, saber a potência dessas atividades em toda a sua gama de possibilidades, compreender que as ações precisam estar contextualizadas nas histórias de vida e nos desejos dos usuários e ainda entender que a

atividade tem que ser adequada, desprendida de ideias do senso comum, de ideias inadequadas.

Nas supervisões esse tema é analisado de forma que o estagiário precisa explicitar o seu modo de agir, como entende a sua ação, como ela se configura no contexto em que está inserida. O estagiário precisa conhecer a história de vida e a história clínica do usuário e o seu cotidiano, necessita saber como a equipe compreende esse caso, dialogar com os conteúdos oferecidos pelos outros profissionais e com os teores explicitados pela pessoa em atendimento. Nesse processo tem que estabelecer parcerias e vínculos, acolher e agir.

No processo de supervisão, o estudante é levado a pensar em sua potência de ação e como ela afeta a pessoa com quem está interagindo. Nesse processo ele precisa conhecer o outro e suas demandas, além de conhecer a sua própria potência como terapeuta, seu repertório, suas carências formativas, suas necessidades no campo do conhecimento, ou seja, precisa se fortalecer. Conhecer os recursos técnicos e saber aplicá-los é uma forma de fortalecer o seu conatus como terapeuta, poder imaginar, planejar e aplicar os recursos constitui sua ação. Esta ação está em diálogo com o outro, se dá no encontro e produz mudanças. Essas transformações afetam a todos e novas modificações surgem no processo terapêutico e na vida das pessoas atendidas e também dos profissionais e dos estagiários.

Essa dinamicidade é o conteúdo abordado no processo de supervisão. A supervisão é o espaço para fortalecer o estagiário, aumentar a sua potência como terapeuta, possibilitar o aumento do repertório, estimular novas possibilidades, incentivar a sua criatividade e a coragem na ação. No encontro realizado na supervisão é possível para ele colocar suas fragilidades, inseguranças, faltas, medos e, com um bom encontro com os colegas e supervisores, esses conteúdos podem ser transformados em repertórios e potências de ação.

Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções. Explicação: Assim, quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então uma ação; em caso contrário uma paixão. (SPINOZA, EIII, Def. 3, p. 163).

Os encontros terapêuticos, de trabalho em equipe e de supervisão podem ser afetados ou por alegria ou por tristeza. Quando essas afetações produzem alegria, nossa potência de agir é aumentada, caso contrário, se são causa de tristeza, ela diminui. Disso decorre que a alegria e a tristeza são afetos passivos ou paixões, pelas quais a potência de cada indivíduo, ou o esforço de perseverar seu ser, é aumentado ou diminuído. Para uma boa ação terapêutica é necessário o fortalecimento do estagiário como terapeuta assim como o enfrentamento das paixões tristes, que no processo de aprendizado expressa-se nos sentimentos de medo e impotência no agir terapêutico. O estudante chega muitas vezes ao estágio inseguro do que sabe, do que pode. O espaço e tempo da supervisão é o lócus para o enfrentamento dessas paixões tristes.

Como metodologia nesse espaço, o estudante é convidado a narrar, pensar, estudar, imaginar, planejar e executar ações terapêuticas. Essas ações fortalecem o estagiário, pois é o desejo do estudante tornar-se terapeuta. Dessa forma, quando fortalecido pela alegria ele torna-se capaz, potente, e quando afetado por sentimentos de tristeza, se retrai, considera- se incapaz. Assim, o desafio posto na atividade de ensino de estágio é a experimentação da ação terapêutica em sua alegria, um agir terapêutico considerando os afetos.

Para Espinosa todos os corpos possuem uma potência de agir e é na influência mútua que temos com o mundo, com outros corpos que ocorre a configuração dessa potência, pois os afetos acontecem. No processo terapêutico esse encontro precisa ter uma noção clara e distinta das paixões e, portanto, necessita formar um conceito claro sobre o processo de agir, que é o mesmo processo do aprendizado - ele tem que estar pautado por um pensamento que primeiramente compreende a natureza dos afetos, identifica aqueles que derivam das paixões tristes e quais paixões alegres podem enfrenta-los:

Proposição 1. A nossa mente, algumas vezes, age; outras, na verdade padece. Mais especificamente, à medida que tem ideias adequadas, ela necessariamente age; à medida que tem ideias inadequadas, ela necessariamente padece. (SPINOZA, E III, Prop. 1, p. 165).

Assim, a mente, que tem o poder de pensar e formar ideias adequadas, necessita desligar o afeto da causa externa e ligá-lo a outros pensamentos:

Um afeto que é uma paixão deixa de ser uma paixão assim que formamos dele uma ideia clara e distinta. Demonstração: Um afeto que é uma paixão é uma ideia confusa. [...] Se, pois, formamos uma ideia clara e distinta desse afeto não haverá entre essa ideia e o próprio afeto, enquanto referido exclusivamente à mente, senão uma distinção de razão. [...] O afeto deixará, portanto, de ser uma paixão. [...] Corolário: Portanto, um afeto está tanto mais sob nosso poder, e a mente padece tanto menos, por sua causa, quanto mais nós o conhecemos. (SPINOZA, EV, P3, p. 371).

Assim, a cura dos afetos, das paixões tristes, está no conhecimento que podemos ter deles, de suas causas, e constituímos formas de enfrentá-lo, com paixões alegres. Mas esse enfrentamento exige que se evite a flutuação do ânimo (flutuatio animi).

1: O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas tornam sua potência de agir nem maior nem menor. (SPINOZA, EIII, P1, p. 164).

2: O corpo humano pode sofrer muitas mudanças, sem deixar, entretanto, de preservar as impressões ou os traços dos objetos e, consequentemente, as mesmas imagens das coisas. (SPINOZA, EIII, P 2, p. 165).

A terapia das paixões é uma ação racional, exige conhecimento do que se está fazendo, não se trata de um encontro de senso comum baseado em boas intenções ou apenas configurado em ações tecnicistas. Exige conhecimento e planejamento e isso só ocorre quando promovemos um exercício de conhecer pelas causas, pela gênese. Demanda uma mente ativa, com ideias adequadas ou claras e distintas sobre o corpo, uma ação terapêutica que prevê que a intervenção pode ser a causa adequada na constituição de um afeto alegre:

Chamo de causa adequada aquela cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma. Chamo de inadequada ou parcial, por outro lado, aquela cujo efeito não pode ser compreendido por ela só. (SPINOZA, EV, P3, p. 371).

Desse modo, os afetos tristes não estão presentes se a mente se alegra quando concebe ideias adequadas. Essa é a proposta terapêutica e de aprendiz de terapeuta: conceber ideias adequadas que enfrentem as paixões tristes. Trata-se de uma passagem, de uma mente passiva para uma mente ativa, pois estudar e estar em um processo terapêutico das paixões é dialogar com os conteúdos, é questionar, criar, problematizar, inferir, agir no

presente, projetar o futuro, estar no controle da ação, no enfrentamento dos obstáculos e fortalecer o conatus. Esse é o conteúdo do ensino na supervisão, pois como coloca Espinosa: “Quem compreende clara e distintamente a si próprio e os seus afetos, alegra-se” (SPINOZA, EV, P15, p. 383). Pode-se assim afirmar, portanto, que para o filósofo a mutação (mutatio) dos afetos passivos acontece quando o conhecer torna-se potente e essa ação se constitui como terapêutica e didática. Para Espinosa, conhecer é o mais poderoso dos afetos, pois é um afeto alegre.

Desse modo, pensar e estudar uma terapêutica das paixões na reabilitação de pessoas com deficiências e de outras populações, têm que ser compreendidos como possibilidade de permitir o afloramento das potencialidades de todos: do usuário, dos terapeutas, dos familiares e da comunidade. E nesse processo, simultaneamente e como parte dele, estimular processos criativos, inovadores em suas formas ou modos de agir no cotidiano, na vida pessoal, social e política. Para tanto, é preciso ter clareza de que se trata de um processo afetivo, dotado de uma racionalidade que prevê o enfrentamento de paixões tristes e a consideração de que ele sempre se dá nos encontros com outros corpos.

Não se trata de uma terapêutica prescritiva, normatizadora e corretiva do corpo, ou moralista e de adequação comportamental, tampouco dotada de premissas higienistas. Trata-se de uma terapêutica que considera a busca do bem viver, considera o desejo, a potência do conatus e a singularidade dos corpos.

PARTE 6

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