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Reabilitar é uma ação de alta complexidade no campo da saúde? O caso do Senhor Jacinto

OCUPACIONAL DAS PAIXÕES: A AÇÃO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À

5.3 Reabilitar é uma ação de alta complexidade no campo da saúde? O caso do Senhor Jacinto

A segurança é uma alegria surgida da ideia de uma coisa futura ou passada da qual foi afastada toda causa de dúvida. (SPINOZA, Ética III, Definições dos Afetos, D14, p.245).

O senhor Jacinto é um homem de 70 anos, aposentado, que mora sozinho. Trabalhava como eletricista e sofreu um atropelamento quando tinha 60 anos. Esse acidente lhe acarretou sequelas corporais, entre elas uma tetraparesia decorrente do traumatismo crânio encefálico (TCE) que teve. Recuperou-se do acidente e voltou às suas atividades.

Seu Jacinto teve vários casamentos, o ultimo ele desfez após o acidente. Deixou a esposa para tentar outros relacionamentos com mulheres mais jovens, segundo relato de sua última esposa e atual cuidadora.

Quando saiu da sua casa, após o final do último casamento, foi para casa de parentes e amigos, passou a beber sistematicamente, a se alimentar mal e ficou morando em um porão e dormindo no chão por muitos anos.

Sua ex-esposa, Dona Marta, o reencontrou, alugou um quarto para ele morar e passou a ser sua cuidadora. Ela vai todos os dias à sua casa para fazer comida e cuidar da higiene.

Segundo a equipe de saúde da família, o senhor Jacinto apresenta Hipertensão Arterial Sistêmica, Diabete Melito tipo 2, o traumatismo craniano que sofreu deixou sequelas raquimedulares e tem focos de gliose à tomografia do crânio. Em consequência,

tem um quadro de tetraparesia e hipoacuidade visual. Uma avaliação visual mais apurada estava por ocorrer, pois a UBS ainda não conseguira até então vaga no nível secundário com o oftalmologista.

Em avaliação de terapia ocupacional ele apresentou sintomas de agnosia visual; insegurança e dificuldades para sair de casa, fincando quase o tempo todo dos seus dias ali dentro. Seu Jacinto manifestou dificuldades relacionadas à memória de curto prazo, além de história de etilismo crônico e sinais de demenciação. Seu cotidiano é empobrecido: suas únicas atividades consistiam nos cuidados com a higiene, alimentação, ouvir rádio e dormir. Sua casa é pequena, ela divide o quintal com casas de outras famílias e, para acessá- la, é preciso subir uma escada de muitos degraus. O corredor é estreito, os degraus têm diferentes tamanhos e a escada não tem corrimão, o que dificulta a locomoção dele. Além disso, a condição de moradia de seu Jacinto lhe oferece risco de quedas, como piso escorregadio e tapetes, além da ausência de barra de segurança no banheiro.

A equipe de saúde da família trouxe o caso para o estágio de terapia ocupacional preocupada com questões biomédicas, como a demência e a dificuldade de enxergar.

Para a estagiária de TO, a proposta de intervenção foi simples. Em um único semestre muitos aspectos foram trabalhados e alcançados.

Em um primeiro momento, a estagiária identificou aspectos do cotidiano do Senhor Jacinto, estabeleceu um contato maior com ele e o motivou a fazer algumas novas atividades. A princípio ele resistiu, mas com a regularidade da presença da estagiária e com algumas propostas de modificação do seu ambiente e rotina, passou a aderir.

Em uma das visitas da terapia ocupacional, Dona Marta, a ex-esposa do senhor Jacinto, estava presente. Ela estava colhendo a assinatura dele para resolver problemas de sua aposentadoria, quando ele teve dificuldades em assinar, evidenciando a sua agnosia visual.

A estagiária fez testes de figura-fundo, reconhecimento do todo pelas partes, nomeação e reconhecimento de figuras e nomes, confirmando a agnosia.

Para facilitar sua vida diária foram feitas faixas de sinalização na escada de entrada da casa e se conversou com os outros moradores para a colocação de um corrimão. Essas ações facilitaram o deslocamento do senhor Jacinto no espaço domiciliar e na sua saída

para a rua, pois as faixas na escada o ajudam a enxergar melhor e ter mais segurança ao se locomover por elas.

A estagiária trabalhou também a ampliação de sua rede de contatos, o levou para sair e andar no entorno de sua casa, estimulando a sua autonomia e aumento de sua segurança no deslocamento em espaços públicos. Essa atividade também proporcionou o encontro com velhos conhecidos, que há muito não via. Nesses encontros foi revelando o seu desejo de voltar a namorar, dizendo que essa era a sua atividade preferida.

No período de um semestre, visitou conhecidos, saiu para almoçar com eles em um bar restaurante no próprio bairro e se inseriu no grupo de “fazer” samba, coordenado por um agente comunitário da UBS. Tornou-se membro do grupo e no outro semestre, as visitas da terapia ocupacional foram mais espaçadas.

A estagiária entende que foram bons encontros, pois introduziu afetos alegres para combater as paixões tristes:

Os atendimentos com Jacinto tiveram como premissa básica a promoção de bons encontros, realizados de forma que sua essência fosse respeitada, possibilitando que ele fizesse escolhas, interagisse em seu espaço social, se relacionasse com outras pessoas e, principalmente, percebesse que é uma pessoa capaz de sair e ser mais autônomo e que é possível viver uma vida com mais alegria e menos restrições. [...] Também percebi que a questão de sua memória estava bastante ligada aos seus afetos. Quando retomei com ele o evento do samba, ele lembrava-se que tinha dançado com algumas pessoas, por exemplo, pois isso foi muito significativo para ele. [...] Pude concluir com essa experiência que a proposição de atividades significativas para o indivíduo pode ser transformadora e fundamental para o aumento de sua potência de ação.

Parecem pequenas mudanças, mas todas foram significativas. Trata-se de um caso simples, de rápida intervenção. Exige constância, ações objetivas e a presença de uma atividade grupal para sustentar a proposta. Mas há de se considerar que vale a pena a ação terapêutica ocupacional.

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