• Nenhum resultado encontrado

O trabalho na universidade: na direção da constituição de paixões alegres

4 TERAPIA OCUPACIONAL DAS PAIXÕES: O ENSINO NA

4.1 O trabalho na universidade: na direção da constituição de paixões alegres

Na modernidade, a universidade se origina sob a luz do esclarecimento, que propôs a passagem do obscurantismo para o conhecimento racional. Os iluministas consideravam que a expansão do saber traria mais felicidade para as pessoas e a razão predominaria sobre a visão teocêntrica hegemônica da época. Nessa perspectiva, o Iluminismo atacou sistematicamente tudo aquilo que era considerado contrário à busca da felicidade, da justiça e da igualdade e defendeu valores como o mérito, o trabalho, a livre concorrência, a razão, a autonomia de pensamento, a tolerância, a humanidade, a ideia de progresso e a liberdade.

Mas e a universidade atual, ela se pauta por esses valores? Que tipo de racionalidade ela origina? Traz felicidade para os seus membros e para aqueles que usufruem de seus resultados? Se já no século XVIII, em 1749, Rousseau44 se debruçou sobre essas perguntas e nos introduziu uma reflexão crítica sobre a centralidade tecnocientífica, parece que na contemporaneidade elas adquirem uma atualidade radical.

No mesmo século XVIII, Kant (1724-1804), um dos mais reconhecidos expoentes do pensamento iluminista, ao analisar criticamente a estrutura do ensino superior do seu tempo, comenta que a verdade da Faculdade de Teologia era estabelecida pela divindade; a verdade da Faculdade de Medicina advinha do princípio de autoridade; e a verdade da Faculdade de Direito submetia-se à vontade do soberano (KANT, 2005). Cabe perguntar: estamos muito distantes dessa realidade nos dias atuais? Considerando que a Terapia Ocupacional nasceu em decorrência da expansão das especialidades médicas e da necessidade de outros profissionais não médicos esmiuçarem ações no campo da saúde, ela estaria imbuída de que autoridade? E qual pode ser a natureza de sua autoridade?

Retomando o pensamento sobre o espaço universitário, em um texto escrito em resposta à questão “o que é o Iluminismo?”, Kant o descreveu da seguinte forma:

44 ROUSSEAU, J. J. “Discurso sobre as ciências e as artes”. In Discurso sobre a origem e os fundamentos da

Esclarecimento45 é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude!46 Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. (KANT, 2005, p. 63).

No trabalho universitário ainda estamos perseguindo a coragem de fazermos uso de nossa própria razão? Mas que razão é essa? Quando formamos terapeutas ocupacionais para desenvolverem suas ações nos campos da saúde, da reabilitação e da educação, qual a razão que estamos perseguindo? Que conhecimento é produzido nesses campos? Qual a natureza desse conhecimento? Esse conhecimento está imbricado com as necessidades de todos aqueles que participam da experiência vivida? Trata-se de uma razão compreendida como tribunal de julgamento ou uma razão dialógica?

Desde o início, minha inserção, não planejada, na universidade tem sido permeada pela inquietação de como construir uma prática acadêmica transgressora, da qual experimentei como estudante no final da década de 1970. Imaginava e ainda persigo a proposta de um curso de Terapia Ocupacional comprometido com a justiça, com o envolvimento na busca de respostas às necessidades dos usuários, com a defesa do acesso pleno de todos os cidadãos aos serviços públicos e com a formação de profissionais capazes de promover bons encontros com seus usuários. Desse modo não se trata de uma experiência de felicidade, mas da expansão do conatus de todos os envolvidos.

Como uma instituição social da modernidade, a universidade é expressão do funcionamento orientado também por interesses econômicos e políticos, pois a instituição não tem uma única expressão, mas contempla uma diversidade de opiniões, muitas inclusive opostas aos interesses de Estados e dos poderes hegemônicos, enquanto outras posicionam-se ao lado daqueles que promovem injustiça e exclusão social. Sua prática social expressa o prestígio que é consignado à sua legitimidade e suas responsabilidades e, de sua natureza crítica, emerge a necessidade de manter a autonomia diante das outras instituições sociais. A universidade constitui assim um espaço republicano e, desse modo,

45 Esclarecimento e Iluminismo são traduções em português da palavra alemã “Aufklärung”. 46 "Ouse saber" ou "atreva-se a saber".

público e laico, ou seja, uma instituição social cuja tarefa primaz é promover condições para a efetivação da democracia que se expressa na democratização do saber.

Mas como pensar uma Terapia Ocupacional que contribua para a construção de relações democráticas? Deve ser uma comprometida com pautas sociais de justiça, de igualdade e de equidade, pois sem essas condições não há efetivação da democracia. Essa Terapia Ocupacional deve defender o acesso pleno a todos os bens e serviços de saúde, educação e tantos outros. Deve estar alinhada à participação social, que prevê o fim de processos segregatórios e de exclusão de diferentes pessoas, bem como ao completo exercício da cidadania. Para tanto, deve se constituir como uma práxis profissional coerente com essas premissas, com estratégias de ação e tecnologias apropriadas para essa tarefa. Não é possível defender propostas democráticas utilizando tecnologias que promovem o controle sobre o corpo, que difundem ideias preconceituosas e estigmatizantes ou que defendem as diferenças e a hierarquia entre os homens e os saberes.

Precisamos de um conhecimento novo. Um conhecimento que possa colaborar para a efetivação de uma sociedade mais justa, em que as promessas de liberdade, fraternidade e igualdade possam ser efetivamente realizadas. No entanto a situação é complexa, pois esses valores oriundos da Revolução Francesa não podem se realizar dentro da racionalidade capitalista organizada em torno do lucro.

Temos que propor uma Terapia Ocupacional que rompa radicalmente com qualquer proposta tecnicista da profissão, que vê a normalização do corpo e da mente como fonte de especulação e lucro ou de ações eugenistas.

Há necessidade de uma práxis em Terapia Ocupacional fundada em um novo conhecimento sobre o corpo e sobre as relações do curso com o mundo contemporâneo. Uma Terapia Ocupacional política, que compreenda a extensão de sua ação sobre as pessoas com quem trabalha e sobre o mundo em que atua, superando leituras reducionistas e positivistas de sua ação.

Sob esse ponto de vista a formação universitária é muito importante, pois pode introduzir os estudantes à compreensão dos problemas da sociedade contemporânea, como sobre as formas de adoecimento e de incapacidades que ela produz, ou sobre as relações das alterações corporais e mentais com as injustiças como a pobreza crônica, o

analfabetismo e a insuficiência de alternativas econômicas, culturais e políticas. A qualidade acadêmico-científica da formação universitária deve estar pautada pelas relações que têm com o compromisso social de sua ação. Desse modo, deve primar pela autonomia de pensamento, criticidade, reflexividade e pela manutenção de seu poder de criação do mundo social e de si mesma.

Assim, entendo que o conhecimento produzido em pesquisas e em atividades de ensino e extensão necessita ser democratizado, devendo tornar-se disponível aos poderes locais e às comunidades, considerando especialmente as camadas mais pobres. Há, portanto, a necessidade de que a formação profissional que oferecemos sobrepuje a produção predominantemente instrumentalista ou tecnicista do conhecimento, superando tanto os reducionismos quanto a fragmentação dos saberes.

Essa postura deve ser premente no campo da saúde coletiva, no qual entendemos que a Terapia Ocupacional se insere, considerando a necessidade de se formar profissionais criativos, eficientes, resolutivos, eticamente comprometidos com a causa pública, bem como dotados do entendimento de que saúde é um direito e não um bem a ser consumido. Trata-se, portanto, de uma formação dirigida à promoção de um salto civilizatório na sociedade, profundamente comprometida com os interesses republicanos, tal como colocados por Chauí (2003).

A terapia ocupacional tem como objeto de intervenção as ações cotidianas, ações essas que podem ser elevadas ao nível da práxis social, resultando no deslocamento do usuário, de paciente para indivíduo inserido no mundo social e político. Essas ações cotidianas não podem ser entendidas de forma instrumental, cujo objetivo seria apenas colaborar com a melhora da funcionalidade corporal. É necessária uma leitura das ações cotidianas como espaços de desejo, de projetos de vida, de encontros, de composições na direção da alegria, como concebido por Espinosa. Uma leitura composta por todos que estão inseridos na vivência, incluindo a pessoa, seus familiares, suas relações sociais, terapeutas, cuidadores do campo da saúde, educadores e outros mais. Trata-se de uma terapia ocupacional que também rejeita práticas higienistas e eugênicas, considerando os indivíduos como ativos e não como receptáculos passivos.

Não se trata de negar as contribuições das técnicas, dos procedimentos que podem melhorar o funcionamento corporal, mas sim de afirmar que esse conhecimento deve estar contextualizado em processos de intervenção que considerem o corpo relacional, o corpo nas relações afetivas, sociais, políticas, entre outras, ou seja, um corpo que não necessariamente tem que ser “normal”, mas capaz de se constituir como parte de processos relacionais e participativos.

Proponho uma Terapia Ocupacional cujos conhecimento científico e desenvolvimento tecnológico devam estar associados ao contexto social e político e que tenha responsabilidade social. Ou seja, um conhecimento científico que não constitui uma mercadoria, mas uma produção coletiva a cujo acesso todos têm direito, em diferentes níveis, como resultados tecnológicos ou apropriação teórica, por exemplo.

Nesse contexto, é importante ainda considerar o advento da ideologia da educação centrada no indivíduo e em sua autonomia singular, fenômeno que se acentuou após a década de 1990 com a pressão produtivista instaurada na universidade. Ou seja, trata-se de uma formação que se distanciou daspreocupações humanistas em favor de um projeto de formação de profissionais especializados, competitivos e voltados a responder demandas pontuais no mercado de trabalho.

A ausência do coletivo já está fortemente arraigada no perfil do estudante que chega à universidade nos dias atuais, constituindo-se em mais um dos obstáculos para a criação de experiências educativas democráticas que se pretendem inovadoras. Isso não tem sido diferente nos últimos anos na área de Terapia Ocupacional. Muitos estudantes pensam que apenas o conhecimento de procedimentos técnicos os tornará profissionais melhores. Mostram dificuldades em entender a necessidade de uma formação mais humanista.

Santos e Almeida Filho (2008) afirmam que, ao final da década de 2000, como reação à presença do individualismo em todos os níveis da atividade acadêmica, emergem reflexões que de algum modo propõe a desestabilização desse modelo. Trata-se de uma passagem do conhecimento universitário para o conhecimento pluriversitário.

Mas o que seria o conhecimento pluriversitário? Para Boaventura de Sousa Santos, trata-se de um conhecimento contextual, na medida em que o “[...] princípio organizador da sua produção é a aplicação que lhe pode ser dada” (2007, p. 25). Considerando que essa

aplicação ocorre fora da universidade, a “[...] iniciativa da formulação dos problemas que se pretende resolver e a determinação dos critérios da relevância destes é o resultado de uma partilha entre pesquisadores e utilizadores” (SANTOS, 2007, p. 25).

Trata-se, portanto, de um conhecimento produzido com e para a sociedade. É uma produção de conhecimento que pressupõe a transdisciplinaridade, que demanda o diálogo ou confronto com outros conhecimentos, tornando-o heterogêneo, localizando-o em sistemas mais abertos, menos perenes, com uma organização mais flexível e menos hierárquica: “A sociedade deixa de ser um objeto das interpelações da ciência para ser ela própria sujeita de interpelações à ciência” (SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2008, p. 40).

Essa proposta consiste em uma superação do modelo segundo o qual há uma relação unilateral da universidade com a sociedade. A pluriversidade propõe, portanto, a interatividade com a sociedade. A razão deixa de ser unilateral e pressupõe novas conexões. No caso da Terapia Ocupacional, entendo como uma práxis intensa nos serviços e nas comunidades, na interação com os outros profissionais de maneira orgânica e verdadeiramente colaborativa, na qual a necessidade dos usuários, das pessoas a quem é dirigido o nosso trabalho está à frente de interesses e dogmas corporativos.

Um conhecimento que questione - trata-se de uma nova forma de composição com os trabalhadores da saúde e da educação e com a população, de maneira que eles desempenhem um papel ativo e crítico nos processos de ensino-aprendizagem e também de pesquisa. Boaventura de Sousa Santos (2007) propõe a pesquisa-ação, que envolve diferentes atores, diferentemente de propostas de pesquisa gestadas na universidade e desenvolvidas nos serviços. Dessa forma, supõe investigações científicas significativas tanto para os pesquisadores, quanto para os trabalhadores e para a população.

Em sintonia com essas proposições dos autores, defendo a realização de pesquisas em Terapia Ocupacional alinhadas com o trabalho desenvolvido nos campos da educação e da saúde, considerando principalmente que se trata de uma profissão que prevê a intervenção.

Boaventura de Sousa Santos e Naomar de Almeida Filho (2008) defendem que a proposta contra-hegemônica para a universidade, para ter credibilidade, tem que considerar:

[...] que a universidade só pode ser reformada pelos universitários e [...] que a universidade nunca se auto reformará. Para isso, o projeto tem de ser sustentado por forças sociais disponíveis e interessadas em protagonizá-lo. (SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2008, p. 54).

Talvez resida aqui a chave para a superação das propostas tradicionais de parceria entre a universidade, os serviços de saúde e as comunidades de usuários. Penso que é possível o ensino de uma Terapia Ocupacional nessa perspectiva e é o que venho perseguindo.

Outline

Documentos relacionados