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4 TERAPIA OCUPACIONAL DAS PAIXÕES: O ENSINO NA

4.2 O ensino na graduação e a terapêutica ocupacional: qual ação?

ma das estagiárias47 de terapia ocupacional narra a cena do primeiro encontro que U

ela e a terapeuta ocupacional do REATA48 tiveram com uma usuária da UBS:

Dona Diana diz:

“Fui casada durante 40 anos com um homem bastante violento e que me restringia em tudo que eu gostava de fazer. Eu queria fazer crochê, participar das atividades da igreja, e ele não deixava. Depois de bastante sofrimento e relutância da família, decidi me separar, e tenho muita vontade de voltar a fazer algumas coisas que ele não permitia; que eu fazia antes e parei, ou mesmo, as que nunca fiz. Sabe, ele era cego, você conheceu ele, Camila; acredita que ele se aproveitou disso para dizer aos outros o quanto ele era dependente de mim? O que é mentira, é claro, pois ele sabia onde estavam certas coisas da casa que nem eu mesma sabia, ele fazia sapatos lindíssimos (trabalhava no ramo), mesmo sendo cego.” Enquanto ela relatava sua história em lágrimas, eu ouvia Camila dizer: “Dona Diana, eu sei o quanto tudo isso foi difícil para a senhora, é difícil e doloroso mesmo. Mas eu tenho certeza que a vida da senhora pode ser melhor daqui para frente; vamos procurar novas coisas juntas, voltar a fazer o que a senhora gostava. Olha, eu posso te ensinar os gráficos do crochê [...].

A fala me chamou a atenção, pois ali era possível identificar um Holding49 e uma continência (que não foram assegurados ali, mas puderam ser

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As narrativas de estudantes de terapia ocupacional da USP presentes nessa tese são trechos dos relatórios de estágios no período de 2000 a 2018 e pertencem ao arquivo do REATA - Laboratório de Estudos em Reabilitação e Tecnologia Assistiva do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da USP – Área de Terapia Ocupacional. Nesse período passaram pelo estágio 216 estudantes.

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construídos e reconstruídos ao longo do acompanhamento terapêutico), duas modalidades da presença implicada do cuidador [...]. (Estagiária 1 de terapia ocupacional do Reata na unidade básica de saúde).

Projetar e sustentar o presente, bem como engendrar o futuro, pressupõem uma ação. Trata-se de uma ação que considera o desejo e esse não é falta, é presença, o conatus, é a emergência da imanência, a constituição de acontecimentos dotados de significados em cada história. A imaginação constitui o sujeito, não a razão, e assim as ações propostas têm que ser dotadas de significado nas histórias de vida.

O que a estagiária observa aqui na atuação de sua supervisora é o estímulo à ação, a passagem da reflexão dolorida sobre sua vida para um convite à construção de uma nova relação com a sua história vivida. Mas para isso é necessário imaginar essa nova vida e agir para ela se concretizar. Mas nem sempre essa passagem se dá sem ajuda. A Dona Diana, nesse encontro com a terapeuta ocupacional e estagiária, está pedindo ajuda para essa ação e a encontra. Encontra reconhecimento da legitimidade de sua dor e uma proposta de ação, mas não sozinha, encontra companhia na construção de uma nova condição de vida.

Essa edificação pressupõe o rompimento com ideias inadequadas, confusas e obscuras sobre si e suas relações afetivas amorosas, o rompimento com a opinião de que a razão de sua felicidade ou infelicidade está no outro. Outro violento, abusador e manipulador de sua condição de deficiência. Outro, egoísta, que prevê a exploração de alguém que o ama. Dona Diana é convidada a desvelar a causa de seu sofrimento, mas não de uma forma direta. É convidada a partir de uma ação possível para ela naquele momento, uma atividade que lhe agrada, realizada no encontro com uma terapeuta ocupacional que lhe diz que ela pode viver a vida de outro modo e propõe uma ação inicial.

A estudante também participa de um encontro nessa conversa, um bom encontro. Encontra uma supervisora que lhe demonstra o caminho de uma terapêutica afirmativa da potência dos corpos, da possibilidade de bons encontros para o fortalecimento do conatus e da ativação das paixões alegres. De uma terapia que considera o desejo do outro e o de si mesma em tornar-se terapeuta. De uma ação terapêutica que prevê conhecer adequadamente as noções comuns, mas para que isso ocorra é necessário o estar juntos,

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constituindo os diferentes passos nessa direção. Tornar-se terapeuta também demanda aprender a desvelar as ideias inadequadas, a romper com elas e a constituir ideias adequadas da intervenção.

Em outro relatório de estágio, outra estudante narra sua reflexão sobre o grupo de trabalho corporal que o REATA desenvolve com os professores da escola de ensino fundamental do bairro onde a Unidade Básica de Saúde (UBS) está localizada.

O REATA e seus estagiários atuam nessa instituição fortalecendo ações de inclusão de crianças com deficiência. São diversas as atividades na escola, dentre elas um grupo de massagem e de atendimento de acupuntura50 dos professores. A estudante diz:

O grupo de massagem e acupuntura surgiu sob a lógica de cuidar de quem cuida. Nesse caso, cuidar dos professores e funcionários da escola, que escolheram como profissão cuidar de crianças e adolescentes, seja direta ou indiretamente. Além disso, foi uma maneira de mostrar a esses profissionais que existem pessoas que estão dispostas a dar atenção e a escutá-los, pois o grupo também vem da necessidade de um canal de comunicação diferente do oral com os educadores.

[...] O tocar, nesse caso, pode ser interpretado como busca de um encontro, onde cabe ao terapeuta instaurar um estado sensível que permita entrar, propor, cuidar e garantir um espaço de confiabilidade para abordar questões delicadas. [...] esse espaço abriu espaços de escuta e confiança para os educadores e, através dele, as professoras puderam realizar narrativas que antes não realizavam, seja sobre sua vida profissional seja sobre sua vida pessoal. Esse espaço, ao meu ver, possui certa importância para quem o frequenta, pois é um encontro único, onde é possível conversar sobre diversos assuntos ou simplesmente ficar em silencio. Há a possibilidade de escolha, seja sobre conversar ou não, seja sobre fazer a massagem ou a acupuntura (ou não fazer nenhum). [...] Pensando então que a massagem é uma técnica que envolve o corpo, se faz relevante pensar e discutir quem é esse corpo. [...] Nos atendimentos realizados no grupo, foi possível perceber que não era somente a questão do corpo físico que se desenvolvia, mas também a do corpo relacional, do corpo psíquico. [...] Algo muito importante de se evidenciar na criação desse grupo é o fato de que, para ele ocorrer, foi necessária a criação de diferentes redes. Para uma professora poder sair da sala de aula e ser atendida, é preciso que uma colega de profissão se disponha a cuidar de seus alunos nesse período. Foi necessária a iniciativa das responsáveis pelo laboratório para que ele pudesse se iniciar e a aceitação das estagiárias

50 A acupuntura é praticada apenas pela terapeuta do REATA especialista nessa técnica. As estudantes de terapia ocupacional não têm formação em acupuntura, mas são formadas em várias técnicas de trabalho corporal que aplicam no estágio.

durante todos esses semestres para que ele pudesse se manter. (Estagiária 2 de terapia ocupacional do Reata na unidade básica de saúde).

A estudante inserida no grupo de estagiárias compreende como o grupo de massagem dos professores se compõe e se mantem coerente, como se constituem redes de apoio e mais, que o grupo é um corpo que age com conexões de ação e que seu aprendizado requer a existência desses outros grupos – do Reata, da massagem e acupuntura e de supervisão de estágio.

O grupo não é um corpo composto por um ajuntamento de partes, de outros corpos, mas de um corpo que é composto nos encontros com outros corpos, que afeta e é afetado.

Esses encontros podem compor ou decompor, dependendo da sua natureza, “bons” ou “maus” encontros, dotados de paixões alegres ou tristes. Quando há cooperação entre os participantes com o desejo de que todos aproveitem a atividade, essa ação se manifesta em um bom encontro, que promove alegria. Igualmente, se isso não ocorrer haverá uma decomposição da proposta e dos corpos e, portanto, haverá a presença da tristeza.

Os corpos cuidados no grupo de massagem e de acupuntura do estudante de terapia ocupacional também são os corpos em formação e em mutação, pois nos encontros é que eles se compõem, descansam, aliviam a dor, são solidários, são acolhedores, aprendem e se transformam em outros corpos. Compreende ainda o sentido de cuidar de quem cuida, constituindo delicadezas dos bons encontros, como uma pedrinha jogada no lago que repercute em sucessivas ondas, pois as crianças das escolas também usufruem dos cuidados dos corpos de seus professores, e mais, os terapeutas também usufruem dessa composição, ou seja, novas ondas são desencadeadas e outros encontros realizados. Assim, não se trata de uma intervenção que tem um fim em si, mas de uma ação que produz outras composições, consistindo em um toque corporal que toca em muitos corpos, mas no sentido espinosano, um corpo que se relaciona, que é mente e corpo, um só.

Não reside também nessa lógica a possibilidade do trabalho intersetorial? Ou do trabalho em equipe? Considero que sim.

4.3 Como ensinar uma técnica corporal para estudantes de terapia ocupacional: um

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