• Nenhum resultado encontrado

Considerar música e educação como parte de uma rede cultural e social de crenças e práticas sugere que os educadores musicais precisam entender esses contextos e integrar seu trabalho dentro deles. Se música é parte da vida, ao invés de ser à parte dela, não pode ser estudada isoladamente. Ao contrário, ela precisa ser vista como um aspecto da cultura.315

Toda a segunda parte do presente trabalho está ligada ao entendimento de um tecido em que não seria possível separar professor de piano, aluno de piano, pianista, escola de música, concertos, interpretação musical, famílias, críticos, contexto cultural, salas de concerto e público. Bourdieu afirma que procurar a lógica do campo literário ou do campo artístico significa trazer para a própria obra aquilo que ela é.316

Pesquisamos a formação do espaço social317 do ensino de piano em Belo Horizonte desde que o arraial – que se chamava Curral Del Rey – recebeu a denominação atual, em 1890, até o ano 1963, quando, na cidade, começa um novo período de crescimento diversificado e quando as questões sociais, culturais e musicais se abrem e desenvolvem em novos rumos.

Ao longo do estudo da formação do espaço social do ensino de piano em Belo Horizonte, abrimos o foco da pesquisa para compreendermos a vida de uma população

315

JORGENSEN, Estelle R. In search of music education, 1997.

316

BOURDIEU, A ilusão biográfica, in Usos e Abusos da História Oral. Organizadoras: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, 1996, p15.

317

Buscamos, com base no conceito de campo, o entendimento de um período determinado de parte da vida musical de Belo Horizonte que liga produção, circulação e consumo da matéria música. Trata-se de uma hipótese traçada desde o começo desta pesquisa. Enquanto não se define, trataremos esta parcela de tecido social pesquisado por espaço social. AUGUSTO (2008) traz uma discussão (p.1 a 16).

recém chegada a uma capital inventada – retalhos em construção –, de uma população que migrou com a mudança da capital e que buscava a música como mediadora de uma possível socialização inicial. Trata-se, aqui, de um conceito de música e uma função social interligados ao espaço e tempo estudados.

Dentre as Artes, é a música a que mais congrega, organisa e exalta os sentimentos colletivos. A sua applicação consciente no exercício dos cultos, nas celebrações sociaes, nos trabalhos colletivos produz aquelle effeito acima assignalado318 e que interessa particularmente a um paiz como o nosso, ainda em formação e em que as manifestações individualistas tendem a exagerar-se.319

Bourdieu, antes de qualquer argumentação, afirma que a arte e a sociologia não fazem um bom par. Segundo o autor, o sociólogo quer compreender, explicar e tornar compreensível, enquanto a arte desenvolve-se em um universo permeado de crenças.

A arte não pode revelar a verdade sobre a arte sem a dissimular, fazendo desse desvelamento uma manifestação artística. E é significativo, ao contrário, que todas as tentativas para colocar em questão o próprio campo de produção artística, a lógica de seu funcionamento e as funções que ele cumpre, ainda que vias altamente sublimadas e ambíguas do discurso ou das “ações artísticas”(...) ao recusar jogar o jogo, contestar a arte nas regras da arte, seus autores põem em questão não uma maneira de jogar o jogo, mas o próprio jogo e a crença que o funda, única transgressão inexpiável.320

Partilhamos da dificuldade de revelar uma verdade, ou até mesmo padrões de verdades, sobre a arte. Acreditamos que o universo da educação musical se aproxima mais da sociologia do que da própria arte, pois busca explicações e não comunga com teorias sobre a arte no que se refere às crenças exclusivas no dom inato e no criador incriado. Entre muitas particularidades, a criação artística apresenta mais reflexões do que explicações, sendo que muitas vezes essas reflexões são muito específicas para o processo de determinado artista. Há alguns artistas que se debruçam sobre a questão reflexiva da criação e trazem alguns esclarecimentos, como: Fayga Ostrower321, nas

318

O efeito acima assinalado refere-se ao ensino de música que interessa ao Estado enquanto a música constituir uma função de cultura, organizando, traduzindo, dando forma, expressão e estilo a estados da alma coletiva.

319 “Decretos ns. 19.850, 19.851 e 19852 de 11 de abril de 1931” da “Organização Universitária

Brasileira” – Precedida da exposição de motivos apresentada ao Exmo. Sr. Chefe de Governo Provisório pelo Sr. Ministro de Estado Dr. Francisco Campos” (páginas 28/29 da exposição de motivos) “Instituto Nacional de Música”. In: PAOLA e GONZALEZ, 1998, p.67.

320

BOURDIEU, 1996, p.195.

321

A artista plástica Fayga Ostrower escreveu sobre os processos criativos principalmente nas artes plásticas: Criatividade e processos de criação, Editora Imago Ltda, Rio de Janeiro, 1976. Já na Introdução do livro, a autora revela nosso interesse na sua obra: “o criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano”.

artes plásticas; Borges322, na literatura; e John Cage323 e Koellreutter324, na música. Buscamos os problemas e os possíveis caminhos que possibilitaram um trabalho esclarecedor sobre a formação do ensino de música e mais especificamente do ensino de piano. Destacamos nosso interesse pelas condições histórico-sociais em que se produziu e reproduziu o trabalho musical em Belo Horizonte, no decorrer da última década do século XIX e da primeira metade do século XX, e pelo desenvolvimento da percepção estético-musical que se impunha325.

A educação musical apresenta uma produção de conhecimento por meio de autores como Koellreutter326, Schafer327, Swanwick328, Santos329 Penna330 que busca esclarecimentos sobre os processos de produção musical de forma mais abrangente e livre de crenças fundadoras no talento e no dom inato. Buscamos esclarecer a formação do músico e a sua produção, em uma simultaneidade de ações e de olhares através da sociologia, da antropologia, da história e da educação. Os processos artísticos de criação partilham de tensões, expectativas e forças de universos sociais comuns, e a formação do artista se dá na busca de autonomia desses universos. Para tanto, nos baseamos em

um espaço comum de atuação, que Bourdieu chama de “campo”:

Os campos se apresentam para a apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas).331

Um campo pode ser reconhecido na interseção e interação com outros. Assim o fizemos no reconhecimento e na tentativa de discorrer sobre o ensino de piano, a

322

Jorge Luis Borges, em seu livro, Esse ofício do verso (Companhia das Letras, São Paulo, 2007), revela: “passei minha vida lendo, analisando, escrevendo (ou treinando minha mão na escrita) e desfrutando”. (p.10).

323 CAGE, John: documentário exibido no canal de TV Bravo/Brasil, Profiles. John Cage (1912— 1992)

nasceu em Los Angeles, Califórnia. Foi definido por Augusto de Campos como musico-poeta-pintor. Teve profunda influência na música do século XX.

324

Koellreutter (1915-2005), compositor, maestro, educador e esteta, nasceu em Freiburg (Alemanha), e veio para o Brasil em novembro de 1937.

325

BOURDIEU. A ilusão biográfica, in: Usos e Abusos da História Oral. Organizadoras: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, 1996, p.320.

326

KOELLREUTTER, H. J. A educação musical no terceiro mundo: função, problemas e possibilidades. In: Cadernos de Estudo: Educação Musical, nº 1, Atravez, São Paulo, agosto de 1990.

327

SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante, UNESP, São Paulo, 1991.

328

SWANWICK, Keith. 2003.

329

SANTOS, Regina Márcia Simão. Repensando o ensino de música. In: Cadernos de Estudo: Educação Musical, nº 1 Atravez, São Paulo, agosto de 1990.

330

PENNA, Maura. Música(s) e seu ensino. Editora Sulina, Porto Alegre, 2008.

331

produção musical e sua circulação. No caso do campo do ensino de música332 em Belo Horizonte, poderíamos dizer de famílias, igrejas, escolas, clubes, bandas de música,

escolas de música, entidades musicais, rádios, orquestras, “classes”333

de professores entre outros. Pretendemos, ainda, não ignorar as políticas públicas ou o campo político, atuando simultaneamente em todos esses campos. Elegemos as escolas de música que tinham o ensino de piano em seus currículos e buscamos o máximo de nomes que trabalharam como professores, em Belo Horizonte.