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Ensino religioso e formação básica do cidadão

No documento giselidopradosiqueira (páginas 168-175)

PARTE II FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS DO ENSINO RELIGIOSO COMO ÁREA DO CONHECIMENTO

CAPÍTULO 2 DAS EXPERIÊNCIAS SIGNIFICATIVAS AOS FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS

2. Ensino religioso e formação básica do cidadão

A educação como um direito social é garantida pela Constituição brasileira e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n° 9.394/96. Também aparece nessa condição no Plano Nacional de Educação (2001-2010) e com estatuto de direito humano consignado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, bem como no Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966. Cabe verificar como tem sido, historicamente, a postura do Estado brasileiro no cumprimento de seu dever diante dos desafios da pluralidade e da diversidade.

Parte desses desafios reflete as discussões e os avanços na luta pelo ‘direito à diferença’ que se consolida nos mais diversos campos sociais, inclusive no campo

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O art. 5º, item I da Lei nº 15.434 de 05 de fevereiro de 2005, publicada no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, 06 jan. 2005, confirma tal prioridade.

educacional. No Documento Final proposto na Conferência Nacional de Educação, fica expresso:

Vivemos, no terceiro milênio, um momento histórico, em que as questões de reconhecimento, justiça social, igualdade, diversidade e inclusão são colocadas na agenda social e política, na mídia, na esfera jurídica e também na política educacional. Embora tais questões sempre fizessem parte do desenvolvimento da própria educação brasileira, nem sempre elas foram reconhecidas pelo poder público como merecedoras de políticas compreendidas como direito ao qual se devem respostas públicas e democráticas.324

O ‘direito à diferença’ apresenta-se num contexto desafiador de superação das desigualdades e de reconhecimento e respeito à diversidade. E, na realidade, a escola, como espaço educacional, espaço de diálogo, de relações e de construção de saberes, é um local privilegiado, mas não exclusivo, de efetivar a garantia de direitos e da formação básica do cidadão. Na sua função social, nesse aspecto, o Documento Final apresenta a educação como:

[...] processo e prática constituída e constituinte das relações sociais mais amplas. Esta concepção de educação, além de ampliar espaços, sinaliza para a importância de que tal processo de formação se dê de forma contínua ao longo da vida. Assim, para se concretizar como direito humano inalienável do cidadão, em consonância com o artigo 1º da LDB, a práxis social da educação deve ocorrer em espaços e tempos pedagógicos diferentes, atendendo às diferençadas demandas, sempre que justificada sua necessidade.325

No que concerne a seus fins, no espaço escolar, como instituição educativa definida pelas relações sociais que desenvolve, a educação deve buscar sempre o que lhe é específico, a tríade ensino, pesquisa e extensão, não deixando perder de vista o ideal da aprendizagem como direito humano, social e democrático. Nesse aspecto, a escola, como:

[...] lugar de pessoas e de relações, é também um lugar de representações sociais. Dessa forma, a formação, na sua integralidade, dentre outras intenções, deve: contribuir para o desenvolvimento humano, primando por relações pautadas por uma postura ética; ampliar o universo sociocultural dos sujeitos da educação; fortalecer relações de não-violência e o reconhecimento das diferenças com aquilo

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BRASIL. Ministério da Educação. CONAE. Documento Final. Portal do Mec Brasília, 27 maio 2010, p. 124 Disponível em: <http://conae.mec.gov.br/images/stories/pdf/pdf/documetos/documento_final_sl.pdf >. Acesso em 28 dez. 2011.

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que nos torna iguais. [...] Diante dessas considerações, torna-se essencial viabilizar um projeto de educação integral voltado para a ampliação de tempos, espaços e oportunidades educacionais, como importantes alternativas para a democratização da educação, a inclusão social e para a diminuição das desigualdades educacionais. Nessa linha de pensamento, compreende-se que a escola não é o único espaço formativo da nossa sociedade. Mesmo sendo a sua ação necessária e insubstituível, ela não é suficiente para dar conta da educação integral. Assim, a escola é constantemente desafiada a reconhecer os saberes da comunidade, os espaços sociais e os diferentes atores sociais que podem promover diálogos, trocas e transformações, tanto dos conteúdos escolares, quanto da vida social. E, nesse sentido, o desafio da escola é articular e coordenar o conjunto de esforços dos diferentes atores, políticas sociais e equipamentos públicos, para cumprir o projeto de educação integral.326

Em termos objetivos, no tocante à educação básica, a legislação vigente que institui as diretrizes curriculares nacionais diz que a educação integral deve ser dotada de qualidade social, ou seja, com padrões adequados de oferta do ensino, perpassando a adequação da infraestrutura, a qualificação adequada dos profissionais da educação e as condições de aprendizagem, que, diante desse quadro educacional, exige: “a superação do rito escolar, desde a construção do currículo até os critérios que orientam a organização do trabalho escolar em sua multidimensionalidade, privilegia trocas, acolhimento e aconchego, para garantir o bem-estar de crianças, adolescentes, jovens e adultos, no relacionamento entre todas as pessoas.”327

É necessário também considerar: “as dimensões do educar e do cuidar, em sua inseparabilidade, buscando recuperar, para a função social desse nível da educação, a sua centralidade, que é o educando, pessoa em formação na sua essência humana.”328

Nessa perspectiva o ensino religioso, como as demais áreas do conhecimento tem um importante papel na formação básica do cidadão como ser de relações.

Educação, formação humana e contribuições do ensino religioso nessa reflexão

Pode-se definir educação sob várias perspectivas e sob a inspiração de diversos pensadores, mas é importante destacar que só faz sentido falar em educação quando se fala de ser humano, de novas possibilidades de aprendizagem, de oportunidades de construção da

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BRASIL. Ministério da Educação. CONAE. Documento Final. Portal do Mec Brasília, 27 maio 2010, p. 56s. Disponível em: <http://conae.mec.gov.br/images/stories/pdf/pdf/documetos/documento_final_sl.pdf >. Acesso em 28 dez. 2011

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Cf. Anexo U. 328

identidade pessoal, caracterizada pela integridade, a autonomia, a responsabilidade, a sensibilidade e a solidariedade.

A identidade do ser humano se manifesta não tanto por suas habilidades profissionais, mas muito mais pela qualidade da sua formação humana. Esse pressuposto encontra ressonância na fala de Maturana, que afirma que os homens e as mulheres “crescem no respeito a si mesmo e aos outros, capazes de aprender qualquer ocupação, porque sua identidade não está no fazer; mas no seu ser humano.”329

Diante do outro é que se percebe o ser humano como um ser em evolução e como ser de relações. Gonçalves Filho ressalta que: “cada homem é gerador do ser de si no outro e do ser do outro em si, pois cada um só se conhece no encontro com o outro.”330

E acrescenta, “somos todos iguais enquanto humanidade, sendo diferentes enquanto cada um é uma identidade, uma personalidade, um nome. Tal diferenciação promove a sedução de uns para com os outros, pois cada um é o outro, não um outro. A essa extraordinariedade inesgotável do ser humano chamamos de ‘poiésis’.”331

Em outras palavras, Morin também apresenta a essência desse pensamento quando diz que: “cada indivíduo é uno, singular, irredutível. Contudo é, ao mesmo tempo, duplo, plural, incontável e diverso”.332

. O autor esclarece que a unidade plural da nossa identidade pessoal consiste na referência aos ancestrais, aos pais e depois a outros dados como: cidade, estado, nação, religião, etc.

O processo de formação da identidade possibilita que o ser humano seja visto como alguém consciente de sua existência, que busca as razões de ser dessa realidade. Isso acontece em meio a um contínuo interrogar sobre si mesmo, sobre a vida e seu significado último nas interrelações estabelecidas consigo mesmo, com seus semelhantes e demais componentes de um mundo que tem origem, que evolui e que transforma, nas mais diversificadas formas e níveis de ser no mundo, e com o Transcendente.

329

MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na política.Trad. José Fernando Campos Fortes. Belo Horizonte, UFMG, 1998, p. 31.

330

GONÇALVES FILHO, Tarcizo. Ensino Religioso e a formação do ser político: uma proposta para a consciência de cidadania. Petrópolis, Vozes, 1998, p. 37.

331

O autor destaca em vários momentos do texto o termo poiésis. Propõe no final do livro um glossário com intuito de facilitar a leitura e compreensão de certos termos técnicos, no qual se inclui a poiésis. Cf. GONÇALVES FILHO, Tarcizo. Ensino Religioso e a formação do ser político: uma proposta para a consciência de cidadania. Petrópolis, Vozes, 1998, p. 38.

332

MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. Tad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre, Sulina, 2002, p. 82.

Ressalta-se que essa experiência de busca pelo sentido da vida é algo próprio do ser humano e que o impulsiona à transcendência em busca de plenitude, sem perder sua condição de imanência.333 Sung acrescenta que:

O questionamento sobre o sentido das coisas e dos fatos para além do empiricamente mensurável, sobre o que a coisa é “em si”, é uma das características que diferencia a espécie humana das outras espécies vivas. Por isso, a humanidade vem produzindo, há milhares de anos, religiões, filosofias, poesias, artes, etc. Ernest Cassirer nos diz: “É evidente que este mundo [humano] não constitui exceção às regras biológicas que governam a vida de todos os outros organismos. Entretanto, no mundo humano encontramos uma nova característica, que parece ser a marca distintiva da vida humana. O círculo funcional do homem não foi apenas quantitativamente aumentado; sofreu também uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer, descobriu um novo método de adaptar-se ao meio. Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se encontram em todas as espécies animais, encontramos no homem um terceiro elo, que podemos descrever como o sistema simbólico. Esta nova aquisição transforma toda a vida humana. Em confronto com os outros animais, o homem não vive apenas numa realidade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova dimensão da realidade. [...] [O homem] Já não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste universo.” Isto significa que o ser humano não tem um conhecimento imediato, direto, da realidade, mas todo conhecimento é mediado por sua cultura e por seu mundo simbólico. Nesse sentido, todo conhecimento é ao mesmo tempo uma tradução e reconstrução do mundo que existe fora e dentro de nós.334

Um dos espaços de construção do conhecimento é a escola, que, inserida no contexto social, reflete suas diferenças e desigualdades. Percebe-se que, em nossa realidade, o sistema dominante deslocou o ser humano para uma esfera secundário, prevalecendo o ter ao invés do ser, ou mesmo onde o mercado não se compatibiliza com a dignidade humana. Por isso, torna- se necessário atuar e resgatar a perspectiva antropológica, na qual o ser humano é visto como totalidade, especialmente em se tratando do ambiente educacional do qual também se esperam mudanças.

Essas mudanças são concebidas como passos para a evolução e para a transformação dessa realidade. Para Morin, o processo de educar não consiste apenas na construção do conhecimento. Ele diz que a educação deve mostrar que “ensinar a viver necessita não só dos

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Em outras palavras é o que Wolfgang Gruen denomina religiosidade. 334

SUNG, Jung Mo. Prefácio ao livro PUGLIESI, Márcio. Mitologia grego-romana: arquétipos dos deuses e heróis, São Paulo: Masdras, 2003, p. 16.

conhecimentos, mas também da transformação, em seu próprio ser mental, do conhecimento adquirido em sapiência e da incorporação dessa sapiência para toda vida.”335

Portanto, valorizar a formação humana, compreendida como o pleno desenvolvimento do educando, por meio de um constante processo de ‘aprender a aprender’ vem sendo a preocupação demonstrada por educadores, alvo também de iniciativas internacionais, principalmente da Organização das Nações Unidas (ONU). A Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada em 10 de dezembro de 1948, no artigo 26, afirma que “a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao reforço do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais”.336

A declaração é inspirada fundamentalmente no pensamento de Piaget, quando fala “em formar pessoas capazes de autonomia intelectual e moral e respeitadores dessa autonomia em outrem, em decorrência precisamente da regra de reciprocidade que a torna legítima para eles mesmos.”337

O repensar da educação com enfoque na formação humana é, no dizer de Libanio, o edifício que ostenta “a visibilidade por meio do pensar, do fazer, do conviver, do ser e do discernir ao longo da vida da pessoa. No entanto, ele se sustenta sobre o alicerce profundo e sólido construído nos anos iniciais da formação. É ele que permite acesso a sempre novos andares do saber, do viver, da ação.”338

Nesse contexto, o ensino religioso, compreendido como ‘parte da formação básica do cidadão’, deverá possibilitar a formação humana, baseada na relação dialógica entre a práxis e a poiésis. Assim contribuirá para a formação integral e a realização completa diante da complexidade da existência.

Compreender que o ser humano não é, a priori, aquilo que está destinado a ser, uma vez que é portador de potencialidades próprias está em contínuo processo de desenvolvimento. Isto ocorre dentro das possibilidades que lhe são oferecidas, em ordem à maturidade pessoal e inserção na comunidade mais próxima até o mundo mais amplo.

Na busca da construção e afirmação de sua própria identidade, pergunta-se pelo significado de sua essência e existência, pelo sentido de sua vida.

335

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. 5ª ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001, p. 47.

336

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Declaração dos Direitos do Homem, aprovada em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: <www.mj.gov.br/sedh/dpdh/gpdh/ddh_inter.universal.htm>. Acesso em: 22 jul. 2008.

337

PIAGET, Jean. Para onde vai a educação? 14 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998, p.53. 338

Para Sung, “um dos problemas fundamentais que decorre da nossa condição humana é o de dar sentido à vida, sob duas perspectivas: uma é a direção e outra é o significado.”339 Alves diz algo semelhante, de forma poética:

dizer que a vida faz sentido, que vale a pena viver e morrer,é crer que aqueles valores, objetos do nosso amor e desejo, são poderosos para viver e sobreviver, ainda que, no presente , eles sejam esmagados pela brutalidade: depois da cruz, a ressurreição, depois do incêndio que esturrica os pastos, o renascer milagroso do verde sob a chuva.340

Essa busca constante pelo sentido da vida, seja ele qual for, é designado por Gruen como religiosidade, a qual, no entanto, só tem sentido quando esse ser humano se coloca diante do outro. Na percepção e na relação com o outro, o ser humano busca compreender a si mesmo. Nesse processo de busca e encontro, o redirecionamento e as novas possibilidades de busca é que constituem a complexidade humana. Essa complexidade é individual e ao mesmo tempo social. A educação é uma das chances de consciência das relações complexas e de intervenção nessa realidade.

A educação escolar ocupa, nesse sentido, um papel significativo. Tem presente a trajetória do educando na construção de um projeto de vida que vise a plenitude de sua existência, o que é impossível sem a aquisição de habilidades, hábitos, concepções favoráveis a isso. A escola tem como tarefa capacitar o ser humano para a melhoria da qualidade de sua existência, tendo como pressuposto o desenvolvimento de suas potencialidades naturais, entre as quais a religiosa.

Ao mesmo tempo, a escola se ocupa do cuidado e da preservação do que é universal, normalmente atribuído pela cultura. Assim, deve captar o que se tem a transmitir como valores, como força de transformação social, geradora de seres humanos abertos à renovação de seus princípios, diante de uma sociedade que precisa evoluir constantemente em suas concepções de ser humano e de mundo.

Para garantir que o conhecimento historicamente construído e acumulado pela humanidade seja disponibilizado aos educandos, a escola está organizada curricularmente em

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SUNG, Jun Mo. A religião e o sentido da vida. Diálogo – Revista de Ensino Religioso, São Paulo, Paulinas, nº 0, out. 1995, p. 41.

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áreas do conhecimento, seguindo as diretrizes nacionais instituídas pelo Conselho Nacional de Educação.

No documento giselidopradosiqueira (páginas 168-175)