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Capítulo IV – Entfremdung: Franz Biberkopf alienado na Metrópole

5. Aspectos da Entfremdung aplicados a Franz Biberkopf

5.2. Entfremdung como crise

Uma das abordagens possíveis do fenômeno da Entfremdung é como sintoma de um contexto de crise. Para Rahel Jaeggi, por exemplo, a Entfremdung é um conceito chave de um “diagnóstico de crise” da Modernidade e um dos conceitos fundamentais da filosofia social moderna (cf. JAEGGI 2005: 23).

Vejamos a seguir, portanto, de que maneira a noção de crise aproxima o conceito de

Entfremdung do corpus de nossa pesquisa.

5.2.1. Crise histórica, crise do romance e crise do sujeito

Berlin Alexanderplatz representa um contexto de crise em pelo menos três níveis: 1) do

contexto histórico da composição e publicação do romance e que é também o da ação, já que ela se desenvolve contemporaneamente à data de publicação; 2) do contexto artístico-literário do mesmo período; e 3) da situação crítica do sujeito moderno, representada na obra pela vida de Franz Biberkopf.

O primeiro nível remete à condição da cidade de Berlim à época da publicação e da ação do romance. A essa condição já nos referimos no capítulo anterior, ao discorrermos sobre a cidade.

O segundo teve como mais conhecido comentador Walter Benjamin, que, em sua resenha crítica “Crise do romance: sobre Berlin Alexanderplatz”, localizou a obra no contexto de uma crise da forma romanesca herdada dos dois séculos anteriores, uma forma que afastara a narrativa romanesca da épica. O romance de Döblin surgiria, então, como indicador de novas possibilidades para o romance moderno na direção da “restituição do épico” (cf.

BENJAMIN 2011: 249). Como o próprio Benjamin ressalta, esse postulado já aparecera antes

nos textos teóricos do próprio Döblin.

O que Döblin aponta como postura equivocada dos fabuladores modernos é certo grau de afastamento da realidade factual, realidade esta que o narrador não pode ignorar (cf. DÖBLIN, “Der Bau des epischen Werks” 2012: 575). Para ele, o escritor produtivo deve, como

primeiro passo, aproximar-se de todo da realidade.

Com essa postura prescritiva a respeito do ofício do fabulador e sua relação com a realidade, porém, Döblin se refere à maneira específica de lidar com a realidade. Em seu texto, ele aborda dois tipos diferentes de relato: o literário e o jornalístico. Para ele, o primeiro apenas simula o relato (cf. DÖBLIN 2012: 569-70).

Mas o que Döblin prescreve aos romancistas para retomar o épico não é a aproximação da realidade no sentido de se prender aos fatos de maneira estrita; o que ele considera essencial é que o escritor consiga “jogar” com a realidade, transformá-la como matéria necessária de seu trabalho. Ou seja, o fabulador precisa da realidade, não importa o uso que faça dela, seja ele jocoso ou até mesmo descaracterizante Nas palavras de Döblin, assim se descreve o que era feito no romance até então:

E no que diz respeito à arte, então fizemos o seguinte: nós empurramos as obras de arte da realidade para o reino da ilusão, digamos simplesmente: para o reino da enganação. Nós chamamos a “vida” de séria e reservamos para a arte uma amenidade muito mesquinha e estranha.43

(DÖBLIN 2012: 574)

Döblin vê na ruptura da rigidez do modelo realidade/seriedade versus arte/ilusão a fórmula para o retorno ao épico. Nos seguintes termos ele coloca a maneira como isso deveria ser feito:

O que é o fabular, o atrevido e desenfreado relatar de não-fatos, de notórios não-fatos? É o jogo com a realidade, nas palavras de Nietzsche, o riso de superioridade sobre os fatos, e até mesmo sobre a realidade como tal. Daí a consciência: isso não é verdade, e isto: ainda assim, preciso da forma do relato.44 (DÖBLIN 2012: 575)

43 „Und was die Kunst anlangt, so haben wir Folgendes getan: Wir haben die Kunstwerke aus der Realität in das Reich der Illusion, sagen wir einfach: in das Reich der Täuschung gestoßen. Wir nennen das ‚Leben‘ ernst und haben für die Kunst eine sehr dürftige und komische Heiterkeit reserviert.“

44 „Was ist das Fabulieren, das freche fessellose Berichten von Nichtfakta, von notorischen Nichtfakta? Es ist das Spiel mit der Realität, mit Nietzsches Worten ein Überlegenheitsgelächter über die Fakta, ja über die Realität als solche. Darum das Wissen: es ist nicht wahr, und dieses: trotzdem brauche ich die Berichtform.“

A crise do sujeito também é de matriz histórica. Ela é consequência da perda de status do sujeito na filosofia ocidental. De acordo com Waldenfels, passa a haver um novo papel do sujeito: o homem deixa de ser o centro do mundo: “Não há mundo no qual estejamos totalmente em casa, e não há sujeito que seja soberano na própria casa”45 (WALDENFELS 1999a: 11). A posição do sujeito será abordada com maior profundidade nos itens subsequentes, sobre os demais aspectos da Entfremdung.

5.2.2. Crise e técnica

Relacionada a todos os níveis de crise apontados no subitem anterior, a técnica surge na Modernidade como um fator de intensas mudanças em diversos aspectos. O avanço da técnica ocasionado pela intensificação do processo de modernização na virada do século XIX para o XX exigia dos indivíduos e da sociedade transformações de comportamentos e hábitos.

As formas artísticas também foram instadas a responder ao novo cenário: “A ‘literatura da Modernidade’ deve ser analisada no contexto dos desenvolvimentos histórico- sociais condicionados pela Revolução Industrial, isto é, em conexão com a tecnicização e urbanização da sociedade”46 (BECKER 1993: 14-5).

Sabina Becker define o conceito de literatura da Modernidade no contexto dos processos de transformação:

Como uma “literatura da Modernidade”, são compreendidos aqueles movimentos literários que integram suas atividades no contexto desses processos de transformação de toda a sociedade desde os anos oitenta do século XIX para, dessa maneira, desenvolver novas formas estéticas de expressão na arte e na literatura para um mundo da vida e da experiência modificado pela tecnicização.47 (BECKER 1993: 16)

A modernização e urbanização das grandes cidades marcaram de forma profunda também as representações artísticas.

45 „Es gibt keine Welt, in der wir je völlig zu Hause sind, und es gibt kein Subjekt, das je Herr im eigenen Haus wäre.“

46 „Die ‚Literatur der Moderne’ soll im Kontext der durch die industrielle Revolution bedingten sozialgeschichtlichen Entwicklungen, d.h. im Zusammenhang mit der Technisierung und Urbanisierung der Gesellschaft analysiert werden.“

47 „Als eine ‚Literatur der Moderne’ werden jene literarischen Bewegungen verstanden, die seit den achtziger Jahren des 19. Jahrhunderts ihre Aktivität in den Kontext dieser gesamtgesellschaftlichen Transformationprozesse integrierten, um auf diesem Weg für eine durch Technisierung veränderte Lebens- und Erfahrungswelt neue ästhetische Ausdruckformen in Kunst und Literatur zu entwickeln.“

Para Benjamin, por outro lado, a técnica não trouxe a esperada emancipação ao homem moderno. Pelo contrário, serviu a forças destrutivas e antiemancipatórias à época, a exemplo da Primeira Guerra Mundial (cf. BOLLE 1994: 209-10), cuja letalidade foi ampliada

largamente pela mecanização. Portanto, a despeito do entusiasmo trazido por esses processos, eles contribuíram para compor um cenário de intensa crise.

A crítica ao progresso trazido pela técnica é feita em breves passagens de Berlin

Alexanderplatz, inseridas por meio de montagem para mostrar os efeitos da modernização no

cotidiano da cidade. É o que vemos no trecho a seguir: “Brumm, brumm, martela o bate- estacas a vapor na Alexanderplatz. Muitas pessoas têm tempo e ficam olhando o bate-estacas martelar” (p. 185). O bate-estacas é a técnica, que facilita e acelera o trabalho. Como efeito colateral, o desemprego: as máquinas fazem o trabalho que antes era feito pelas mãos dos homens. As pessoas “têm tempo”, ou seja, estão desempregadas e observam o funcionamento do bate-estacas. A máquina trabalha, enquanto as pessoas não encontram emprego.

Para Hans-Peter Bayerdörfer, Döblin respondeu a esse estado de coisas da forma adequada:

Todavia, a impenetrável supremacia do falso coletivo não é consequência de circunstâncias naturais, e sim resultado de concentração de poder industrial, organizacional e político-militar, cuja gênese na formação da sociedade capitalista e do moderno Estado industrial, com sua tecnicização, sua massificação e burocratização, Döblin apresenta em análises histórico-sociais pormenorizadas. O cartaz mais visível de todo o desenvolvimento é a forma de vida da grande cidade moderna, paradigma assustador da violência organizada é a absoluta inumanidade da guerra moderna e suas justificações ideológicas, que conduzem, ainda, ao entusiasmo deslumbrado por guerra, por “armamentos e marcha”48 [...].

(BAYERDÖRFER 1975: 169)

A técnica contribui para compor o contexto de crise da ação de Berlin Alexanderplatz, um ambiente propício para a existência de subjetividades alienadas, e o romance de Döblin é uma resposta estética às demandas da sociedade moderna.

48 „Dennoch ist die undurchschaubare Übermacht der falschen Kollektive nicht die Folge von Naturumständen, sondern Resultat industrieller, organisatorischer und politisch-militärischer Machtkonzentration, deren Genese in der Entstehung der kapitalistischen Gesellschaft und des modernen Industriestaates mit seiner Technisierung, seiner Vermassung und Bürokratisierung Döblin in eingehenden sozialgeschichtlichen Analysen aufweist. Sichtbarstes Aushängeschild der ganzen Entwicklung ist die Lebensform der modernen Großstadt, erschreckendes Paradigma der organisierten Gewalt ist die absolute Unmenschlichkeit des modernen Krieges und seiner ideologischen Rechtfertigungen, welche auch noch zur verblendeten Begeisterung für Krieg, für ‚Rüstungen und Marschieren’ führen [...].“