• Nenhum resultado encontrado

Capítulo IV – Entfremdung: Franz Biberkopf alienado na Metrópole

3. Franz Biberkopf vítima e perpetrador

3.2. Franz Biberkopf conquistador (Eroberer)

3.2.2. A postura violenta de Franz Biberkopf

O desejo de conquista de Franz Biberkopf e a responsabilidade própria por sua condição, que discutimos neste item, têm seu ápice na conduta violenta do personagem.

A violência de Biberkopf se manifesta, sobretudo, na sua postura em relação às mulheres de seu convívio. Como objetos inferiorizados de sua posição de conquistador, as mulheres servem para marcar a atitude violenta do protagonista em relação ao mundo, como vimos nos casos de Ida e Minna. A atitude violenta constitui sua própria definição como ser.

Após a vergonhosa demonstração de impotência sexual com uma prostituta, Franz vai à casa de Minna e a violenta. Terminado o ato, ele comemora uma espécie de renascimento: a sentença “Franz Biberkopf está de volta” marca uma reviravolta, a renovação da atitude de

24 „Doch bewirkt dieser dritte Schlag zunächst ähnlich wie die beiden früheren bloss die Reaktion einer Selbstmitleidung.“

conquistador. Otto Keller vê nessa atitude mais uma das facetas da postura de conquistador: “A recuperação da potência sexual é, assim, para Franz, uma conquista bem-sucedida, uma entrada em um tipo de condição de felicidade em ‘volúpia’ e ‘bem-aventurança’”25 (KELLER 1990: 29).

Mesmo quando o ato não se consuma, percebe-se a violência de seu pensamento no discurso indireto livre. Um exemplo disso é quando ele retorna à casa da viúva – a do primeiro golpe –, crente de que será novamente bem recebido. Diante da recusa da mulher, pensa o seguinte: “Caramba, peste, se você soubesse quem sou, o que uma de vocês já levou de mim, aí você não iria fazer isso. Bem, vamos cuidar disso. A gente deveria pegar um machado e acabar com a porta. Enfia silenciosamente o bilhete debaixo da porta” (p. 123). Franz se refere ao risco que a viúva correu, tendo em vista o fato de ele ter matado sua companheira Ida.

Além das demonstrações diretas de violência, há também referências simbólicas. No Episódio 13 da série de TV, por exemplo, vemos simbolizados a culpa e o caráter violento de Franz na cena com um pássaro, já após a morte de Mieze. Nessa cena, o discurso da “Morte ceifeira” (Schnitter Tod) está na voz de Franz. No meio do discurso, ele pega um passarinho da gaiola e o aperta até que morra, diante de Eva e da senhora Bast, que choram de pavor (cf. Figura 28). Esse pássaro, presente de Mieze para Franz, aparece em algumas passagens como uma representação da própria Mieze. Sendo assim, esse ato de Franz surge como uma confirmação simbólica de sua corresponsabilidade pela morte violenta de Mieze. Biberkopf é culpado pela morte de Mieze – afinal, como vimos, vaidoso, não resistiu a apresentar Mieze a Reinhold e aos outros ladrões26 –, assim como pela morte do passarinho, que representa Mieze. Para Klaus Biesenbach: “Biberkopf mata na gaiola o pássaro que sua amada havia lhe dado e, com isso, mata metaforicamente Mieze e, em última análise, como analogia, a si mesmo” (BIESENBACH apud FASSBINDER 2007: 41).27

A atitude de violência com o pássaro confirma também a interpretação de Biesenbach sobre o comportamento do protagonista, expressa pela sentença: “Cada homem mata aquilo

25 „Die Wiedergewinnung der sexuellen Potenz ist daher für Franz eine geglückte Eroberung, ein Eintritt in eine Art Glückszustand in ‚Wonne‘ und ‚Seligkeit‘.“

26 Essa hipótese é discutível: se Franz não tivesse apresentado sua mulher a Reinhold, a morte dela teria mesmo sido evitada? Afinal, Reinhold já tivera contato com Mieze e esta estava obcecada por retirar de Reinhold informações sobre a vida de seu companheiro. Uma resposta possível é que sim, Franz é culpado por não ter alertado Mieze do perigo que Reinhold representava, sendo este, inclusive, o responsável por Franz ter tido de amputar o braço direito. Mieze não sabia de nada disso, estava entregue ao “covil dos ladrões”. Além disso, Franz a fizera acreditar que Reinhold era um bom amigo.

27 „Biberkopf tötet den Vogel im Käfig, den seine Geliebte Mieze ihm gebracht hat, damit tötet er bildlich Mieze und in letzter Konsequenz als Analogie sich selbst.“

que ama”28 (BIESENBACH apud FASSBINDER 2007: 34). Os principais alvos da violência de Franz são, portanto, as pessoas que ele ama.

Depois desse ato terrível, Franz parece estranhar a si mesmo, não reconhecendo o que acabara de fazer como um ato seu. Ele segue não reconhecendo a própria culpa pelo destino de Mieze, demonstrando, mais uma vez, seu egocentrismo.

Neste item, procuramos demonstrar os aspectos da corresponsabilidade de Biberkopf pela própria condição. Pode-se dizer, feita essa análise, que, assim como a sociedade em que vive, Biberkopf também não cria as condições necessárias para a apropriação de sua personalidade, e consequentemente, de uma vida não alienada; muito pelo contrário, sua postura egocêntrica contribui, em grande medida, para impossibilitá-la. A relação violenta do personagem com os outros atores é mútua, e a alienação resultante dela é tanto própria – do personagem consigo mesmo – como também em relação ao mundo concreto e social.

A análise que propusemos aqui, junto da que fizemos dos atores em conflito no capítulo anterior, compõe a base do estudo da situação de Franz Biberkopf como uma subjetividade alienada. A compreensão da Entfremdung nas teorias sociais e filosóficas das últimas décadas abrange esse aspecto. Essa perspectiva está representada na obra de Rahel Jaeggi, como na passagem a seguir:

É que alienamo-nos sempre de algo que nos é, ao mesmo tempo,

próprio e estranho. Envolvidos em relações alienadas, parecemos sempre, de

uma maneira complicada, ao mesmo tempo vítimas e perpetradores. Instituições sociais que se colocam diante de nós de forma estarrecedora e estranha são, ao mesmo tempo, criadas por nós.29 (JAEGGI 2005: 42)

Ou seja, conforme vimos nas diferentes definições de Entfremdung, sujeito e mundo estão intrinsecamente ligados entre si em uma estrutura maior e são entes atuantes dentro dessa estrutura. Portanto, o sujeito não é unicamente vítima da estrutura ou da sociedade em que vive, e sim vítima e também autor, já que contribui para a criação e manutenção das instituições que o oprimem e lhe retiram – ou impossibilitam – a autonomia. O não reconhecimento dessa corresponsabilidade redunda, no caso de Biberkopf, em mero vitimismo. Como vimos, a atitude arrogante de Biberkopf é um dos principais elementos

28 “Each man kills the thing he loves.”

29 „Entfremdet nämlich sind wir immer von etwas, das uns zugleich eigen und fremd ist. In entfremdete Verhältnisse involviert, scheinen wir auf komplizierte Weise immer zugleich Opfer und Täter zu sein. [...] Soziale Institutionen, die uns erstarrt und fremd gegenüberstehen, sind gleichzeitig von uns geschaffen.“

causadores de Entfremdung em sua trajetória. Seu comportamento é autoalienante, ainda que as condições de seu entorno não possam ser ignoradas em nosso estudo como componentes da alienação.