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Capítulo IV – Entfremdung: Franz Biberkopf alienado na Metrópole

1. Sujeito e cidade: próprio e estranho

A separação que identificamos entre Franz Biberkopf e a cidade, a que chamamos

Entfremdung, é vista aqui como resultado de uma “falha” na apropriação de seu ambiente por

parte do sujeito. Tendo como base a proposição de Rahel Jaeggi, pensamos que o caso de Biberkopf tem sua origem em “relações sociais que não preenchem as condições necessárias para tal apropriação”1 (JAEGGI 2005: 10).

Como resultado dessa falha representada pela falta das condições necessárias a uma apropriação – que significaria também integração –, temos a Entfremdung. Ela se dá, portanto, na relação entre o personagem e a cidade, relação em que há mútuas agressões: a cidade impede o indivíduo de se realizar (apropriar), e o indivíduo coopera para que as condições não sejam criadas. Nessa relação, não é possível perceber quem desferiu o primeiro “golpe”.

Nesse contexto de inadequação mútua entre o indivíduo e o mundo, a alienação do mundo e de si mesmo não se diferenciam:

Em Marx (como também em Arendt), a alienação de si está inseparavelmente ligada à alienação do mundo concreto e social; é justamente da impossibilidade de se apropriar do “mundo” como resultado da própria atividade que é feita a alienação. Alienação do mundo significa, portanto, alienação de si próprio e vice-versa, o sujeito é alienado “de si” porque está alienado do mundo – e é exatamente essa conexão que torna o conceito interessante.2 (JAEGGI 2005: 13-4)

1 „[...] ihre Ursache in sozialen Verhältnissen, die die notwendigen Bedingungen für solche Aneignungen nicht erfüllen.“

2 „Bei Marx ist (wie bei Arendt auch) die Entfremdung von sich mit der Entfremdung von der dinglichen und sozialen Welt untrennbar verbunden; es ist gerade die Unmöglichkeit, sich die ‚Welt‘ als Resultat der eigenen Tätigkeit anzueignen, die Entfremdung ausmacht. Weltentfremdung bedeutet also Selbstentfremdung und umgekehrt, das Subjekt ist ‚von sich‘ entfremdet, weil es von der Welt entfremdet ist – und es ist genau dieser Zusammenhang, der den Begriff interessant macht.“

Essa indiferenciação entre a alienação em relação “a si” e “ao mundo” está na base da situação de Franz Biberkopf: ele está deslocado como ex-presidiário naquela sociedade, mas não é pura e simplesmente uma vítima do cenário. Com sua postura egocêntrica, covarde e violenta, ele também atua no mundo de maneira alienante. A responsabilidade de Biberkopf para sua própria condição será abordada neste capítulo em subitem próprio, ao analisarmos sua posição de “conquistador” (Eroberer).

O cenário transitório da grande cidade, sobre o qual já discorremos no capítulo III desta tese, também é um dificultador da apropriação das personalidades pelos indivíduos. Ele se reflete nas relações entre as pessoas. Ao se referir à Berlim da época da ação de Berlin

Alexanderplatz, Celeste Sousa aponta o seguinte: “Neste espaço berlinense impera a

impessoalidade, a estranheza entre as partes” (SOUSA 1995: 523). Como ator nos

acontecimentos da obra, a Metrópole constitui um ambiente no qual a única possibilidade é de estranheza nas relações.

Franz Biberkopf é um desses berlinenses envolvidos pelo turbilhão de transformações que envolviam a fundação de uma urbanidade. Tanto no romance de Döblin como no filme de Fassbinder, o que se vê é um sujeito perdido na cidade, buscando um espaço para si. Em algumas passagens, é como se Biberkopf estivesse “tateando” aquele ambiente, a cidade, tentando redescobri-lo após ter passado quatro anos na prisão – alienado, portanto, desse mundo e tendo deixado de participar de quatro anos de mudanças. Entre os muros da prisão, ele não tinha contato nem conhecimento dessas transformações.

Uma vez libertado, o estranhamento se manifesta na vida desse homem de maneira implacável; na vida desse homem que, uma vez fora da prisão, coloca para si, como meta de vida, “manter-se decente”. Assim como acontece com o desenvolvimento de sua personalidade, da mesma forma não há chance de a promessa ser levada a cabo. A Metrópole se apresenta como um microcosmo daquele novo mundo que se urbanizava, um ambiente empobrecido, no que se refere às relações, e que não se oferecia como lar.

Para pensar questões desse indivíduo em seu contexto histórico e social, abordaremos, no próximo subitem, questões intersubjetivas, isto é, as experiências do sujeito em contato com outros e a fluidez das fronteiras entre eles.

1.1. Experiências fronteiriças

Abordar questões de estranheza e identificação e suas inter-relações envolve lidar também com a noção de fronteira entre os conceitos, nos moldes do que já introduzimos no capítulo II.

Como vimos aqui, há uma relação simultânea de propriedade e estranheza entre o sujeito e a sociedade – considerando a metrópole um microcosmo social –, relação essa em que, segundo nossa análise, torna-se difícil até mesmo distinguir a fronteira entre sujeito e mundo como entidades isoladas. Há um paralelo entre essa relação e a determinação da diferença entre próprio e estranho, tomando como base teorias que relativizam essa diferença.

Bernhard Waldenfels, trabalhando com os conceitos no campo da fenomenologia, é um dos teóricos que colocam em discussão as fronteiras entre “próprio” e “estranho”. Para ele, “Tais experiências, nas quais o Próprio é confrontado com o Estranho, são fronteiriças por excelência e [...] também de duplicidade”3 (WALDENFELS 2006: 26). Nessa experiência fronteiriça, o estranho, ao contrário do que se poderia esperar, não é o completamente diferente, e sim aquilo com o que se mantém certa familiaridade: “O estranho não é incomparável porque é completamente diferente, e sim porque a reivindicação do estranho se furta a toda comparação e compensação”4 (WALDENFELS 1999: 13). A estranheza não reside, portanto, na total falta de conciliação. Ela não ocorre no domínio do outro, em um ente totalmente alheio ao sujeito, e sim em uma espécie de duplicação:

O Eu é um Outro porque a estranheza começa na própria casa. A referência ao estranho na autorreferência explicita que ninguém é simplesmente o que ele ou ela é; ela desencadeia uma corrente de autoduplicações, que, em Husserl e Merleau-Ponty, assim como em Foucault e Luhmann emergem sob diferentes condições. Essas duplicações não se confundem com espelhamentos de uma autoconsciência reflexiva, que é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, e elas também não têm nada a ver com uma dialética intersubjetiva do reconhecimento, dentro da qual um sujeito se reencontra em outro sujeito.5 (WALDENFELS 2006: 28-9)

Waldenfels fala de duplicações, porém negando os espelhamentos e a dialética intersubjetiva. Isso porque o que ele chama de “momentos de estranheza” e “privação de si” (2006: 29) ocorrem dentro das fronteiras do próprio sujeito e da ordem em questão, e não fora delas. O estranho não estaria, dessa forma, para fora do sujeito, e sim dentro dele. A seguinte

3 „Solche Erfahrungen, in denen Eigenes mit Fremdem konfrontiert wird, sind grenzgängerisch par excellence und [...] auch doppelgängerisch.“

4 „Fremdes ist nicht deshalb unvergleichlich, weil es ganz anders ist, sondern weil der Anspruch des Fremden sich jedem Vergleich und Ausgleich entzieht.“

5 „Das Ich ist ein Anderer, weil die Fremdheit im eigenen Hause beginnt. Der Fremdbezug im Selbstbezug erklärt, daß niemand einfach ist, was er oder sie ist; er löst jene Kette von Selbstverdoppelungen aus, die bei Husserl und Merleau-Ponty wie bei Foucault und Luhmann unter wechselden Voraussetzungen auftauchen. Diese Verdoppelungen sind nicht zu verwechseln mit Spiegelungen eines reflexiven Selbstbewußtseins, das Subjekt und Objekt zugleich ist, und sie haben auch nichts zu tun mit einer intersubjektiven Dialektik der Anerkennung, innerhalb derer ein Subjekt sich im anderen Subjekt wiederfindet.“

formulação condensa esse pensamento: “Não há mundo em que nós estejamos completamente em casa, e não há sujeito que seja senhor na própria casa”6 (WALDENFELS 1999: 11).

Biberkopf está inserido na sociedade de Berlim no final da década de 1920 de uma maneira que seria bem descrita pelas seguintes definições:

O conceito “alienação” remete a todo um pacote de motivos ligados entre si. Alienação significa indiferença e discórdia, impotência e falta de laços diante de si próprio e de um mundo experimentado como indiferente e estranho. Alienação é a incapacidade de estabelecer relação com outras pessoas, coisas, instituições sociais e com isso também – de acordo com uma intuição fundamental do tema da alienação – consigo próprio. Um mundo alienado se apresenta ao indivíduo como desprovido de sentido e significado, imobilizado ou empobrecido, como um mundo que não é “o seu”, no qual ele não está “em casa” ou sobre o qual não pode exercer nenhuma influência. O sujeito alienado se torna ele mesmo em um estranho, ele não se percebe mais como “sujeito ativamente atuante”, e sim como “objeto passivo” (Israel 1985), entregue a forças que ele não conhece. “Sempre que indivíduos não conseguem se reencontrar em suas próprias ações” (Habermas 1991: 48) ou não conseguimos ser “senhores sobre a força que somos nós mesmos” (Heidegger), pode-se falar de alienação. O alienado é, de acordo com o antigo Alasdair McIntyre, “a stranger in the world that he himself has made” (McIntyre 1953: 23).7 (JAEGGI 2005: 20)

A condição de Biberkopf se enquadra em diversas das conceituações presentes no trecho citado da obra de Jaeggi. Vemos no personagem, de fato, um misto de indiferença, discórdia e impotência diante da vida e, como consequência, de si próprio. Há também a incapacidade de estabelecer relações não prejudicadas com outras pessoas e com as instituições – uma exceção parece ser a cadeia, na qual ele se sente “em casa”. Nesse contexto, Biberkopf perambula pela cidade como um estranho, sem conseguir atuar. Por fim, o personagem se apresenta mesmo como “um estranho no mundo que ele mesmo criou”, levando-se em conta a responsabilidade que ele possui sobre a própria condição.

6 “Es gibt keine Welt, in der wir je völlig zu Hause sind, und es gibt kein Subjekt, das je Herr im eigenen Hause wäre.”

7 „Der Begriff ‚Entfremdung‘ verweist auf ein ganzes Bündel miteinander verbundener Motive. Entfremdung bedeutet Indifferenz und Entzweiung, Machtlosigkeit und Beziehungslosigkeit sich selbst und einer als gleichgültig und fremd erfahrenen Welt gegenüber. Entfremdung ist das Unvermögen, sich zu anderen Menschen, zu Dingen, zu gesellschaftlichen Institutionen und damit auch – so eine Grundintuition des Entfremdungsmotivs – zu sich selbst in Beziehung zu setzen. Eine entfremdete Welt präsentiert sich dem Individuum als sinn- und bedeutungslos, erstarrt oder verarmt, als eine Welt, die nicht ‚die seine‘ ist, in der es nicht ‚zu Hause‘ ist oder auf die es keinen Einfluss nehmen kann. Das enfremdete Subjekt wird sich selbst zum Fremden, es erfährt sich nicht mehr als ‚aktiv wirksames Subjekt‘, sondern als ‚passives Objekt‘ (Israel 1985), das Mächten ausgeliefert ist, die es nicht kennt. ‚Wo immer Individuen sich in ihren eigenen Handlungen nicht wiederfinden‘ (Habermas 1991: 48) oder wir nicht ‚Herr über die Macht, die wir selber sind‘ sein können (Heidegger), kann man von Entfremdung sprechen. Der Entfremdete ist, so der frühe Alasdair MacIntyre, ‚a stranger in the world that he himself has made‘ (MacIntyre 1953: 23).“

Dessa perspectiva, a Entfremdung é um conceito cuja aplicação pressupõe a flexibilização das fronteiras entre o próprio e o alheio (outro). Não há divisão clara entre a alienação do sujeito em relação ao outro e em relação a si mesmo. Quando se fala de

Entfremdung, mesmo tomando como objeto de análise um sujeito, o assunto é a experiência

fronteiriça, já que o fenômeno se manifesta nos limites entre o que é familiar e o que é estranho, limites esses muito difíceis de identificar.