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Capítulo IV – Entfremdung: Franz Biberkopf alienado na Metrópole

5. Aspectos da Entfremdung aplicados a Franz Biberkopf

5.5. Entfremdung como inautenticidade

Outra das manifestações da Entfremdung apontadas e estudadas por Rahel Jaeggi é a inautenticidade do sujeito. O tema é abordado na obra da autora no contexto da definição dos “papéis sociais”. Discute-se sobre a possibilidade do desenvolvimento de uma personalidade autêntica mesmo com a obrigatoriedade de assumir e desempenhar papéis na sociedade. Esses papéis, geralmente impostos por instâncias alheias ao sujeito, representariam um obstáculo ao desenvolvimento e à realização do “verdadeiro eu”. Esse, pelo menos, é o pensamento mais imediato quanto aos tais papéis.

A autora, porém, relativiza essa conclusão, apontando que os papéis sociais são um elemento constituinte da formação da personalidade autêntica: “A escolha e configuração de papéis é que dão ao indivíduo oportunidade para a autoapresentação e o autodesenvolvimento individual. A busca por autenticidade além de tais formas seria, aliás, um empreendimento inócuo”56 (JAEGGI 2005: 111). A limitação dos desejos do sujeito por meio dos papéis sociais não seria, necessariamente, um fator de inautenticidade.

Jaeggi desenvolve ainda mais o tópico:

Como pessoas, não somos determinados pelo “material bruto” de nossos desejos, e sim pela maneira como damos forma a ele (e, com isso, a nós mesmos). Logo, desejos autênticos não são desejos “naturais”, pré- encontrados, e sim aprimorados, formados; ser “si mesmo” ou “estar conforme si mesmo” não são dados naturais ou diretos, e sim processos aprimorados, resultado do que Hegel chama de “depuração das pulsões”.57

(JAEGGI 2005: 133)

O sujeito autêntico como individualidade não é aquele cujos desejos não são limitados por nada. Nesse sentido, os papéis sociais são corresponsáveis pela depuração dos anseios.

Um exemplo disso é Franz Biberkopf. Em sua busca por conquista, ele não se vê constrangido a assumir papéis sociais. Porém, como vimos, isso não lhe confere uma

56 „Die Wahl und Ausgestaltung von Rollen ist es dann, die dem Individuum Gelegenheit zu individueller Selbstdarstellung und -entfaltung gibt. Die Suche nach Authentizität jenseits solcher Formen wäre also ein sinnloses Unterfangen.“

57 „Als Person ist man nicht bestimmt durch das ‚Rohmaterial‘ seiner Wünsche, sondern durch die Weise, wie man sie (und damit sich) formt. Authentische Wünsche sind demnach nicht ‚natürliche‘, vorgefundene, sondern höherstufige, geformte Wünsche; ‚man selbst‘ zu sein oder ‚mit sich übereinstimmen‘ sind keine natürlichen oder unmittelbaren Gegebenheiten, sondern höherstufige Prozesse, Resultat dessen, was bei Hegel ‚Reinigung der Triebe‘ heißt.“

personalidade autêntica, já que se vê constantemente frustrado em seus intentos por forças externas a ele.

Observando o sujeito Franz Biberkopf diante da cidade e de outras instâncias – por exemplo, o narrador –, Günther Anders chega a uma conclusão parecida a respeito da personalidade do protagonista de Berlin Alexanderplatz:

Biberkopf é apenas espaço de encontro e jogo de sensações que se passam com ele, assim ele confirma, de certo modo, a posteriori, o sensualismo: nenhuma tradição marcou sua alma previamente, nenhuma se apresentou a ele como ideia unigênita, ele realmente não é nada mais que oportunidade do mundo. E a duração de sua vida não é nada mais que o período probatório para o reconhecimento dessa soberania. Como ele é

vivido, ele é vítima constante do mero decurso do tempo, que faz com que

sempre lhe aconteça algo, que faz com que ele sempre esteja em algum lugar, o transforma em alguém e que sempre o atira em situações que ele nunca havia procurado. Assim, ele não sabe não apenas o que deve fazer, com o que deve se ocupar, mas também se deve absolutamente fazer algo; nenhum mundo pré-concebido lhe dá tarefas claras, que ocupem o tempo.58

(ANDERS 1984: 6-7)

Essa análise contundente da inautenticidade do sujeito Franz Biberkopf se aproxima do conceito de “pessoa-cobaia” (tradução nossa para Versuchsperson), usado por Sabina Becker:

O herói Biberkopf não possui, como sua oponente, a cidade, a autonomia de um autor (ou um narrador), ele é seu objeto de experimento, é entregue a ela arbitrariamente e não é imune a seus comentários e juízos mordazes, frequentemente não muito benevolentes a ele. Diante do sujeito autônomo cidade, Biberkopf apresenta-se como o marionete de um autor soberbo, que tem nas mãos todos os fios da história do Biberkopfzinho e pretende controlá-los, invulnerável, através do campo de experimentação da grande cidade, um experimento que, no fim das contas, malogra na força superior cidade, já que nem Biberkopf nem o narrador parecem estar à altura de sua história de subjugação pela realidade metropolitana.59 (BECKER 1993:

310)

58 „Ist Biberkopf nur Treff- und Spielplatz der Empfindungen, die ihm passieren, so bewahrheitet er gewissermaßen nachträglich den Sensualismus: keine Tradition hat seine Seele vorgeprägt, keine gab sich ihm aus als eingeborene Vorstellung, er ist wirklich nichts als die Gelegenheit der Welt. Und die Dauer seines Lebens nichts als die Bewährungsfrist, um deren Übermacht anzuerkennen. Da er gelebt wird, ist er das ständige Opfer der einfach weitergehenden Zeit, die ihm immer etwas passieren läßt, die ihm immer irgendwo sein läßt, zu irgendwem macht, und die ihn immer in Situationen hineinreißt, die er niemals gesucht hatte. So weiß er nicht nur nicht, was er tun, womit er sich beschäftigen solle, sondern ob er überhaupt etwas tun soll; keine vorgegebene Welt gibt ihm selbstverständliche, die Zeit ausfüllende Aufgaben.“

59 „Der Held Biberkopf besitzt nicht wie sein Gegenspieler Stadt Autonomie von einem Autor (oder einem Erzähler), sondern ist dessen Versuchsobjekt, ist ihm willkürlich ausgeliefert und vor seinen bissigen, ihm oft nicht sehr wohlgesonnenen Kommentaren und Urteilen nicht gefeit. Gegenüber dem autonomen Sujet Stadt nimmt sich Biberkopf wie die Marionette eines selbstgerechten Autors aus, der alle Fäden der Biberkopfschen Geschichte in Händen hat und diesen unbeschadet durch das großstädtische Experimentierfeld führen will, ein

Biberkopf é reduzido, assim, a uma espécie de “campo de provas” da dominadora Berlim. De uma perspectiva parecida, Keller vê o personagem como experimento de Döblin no campo da linguagem e da técnica narrativa: “Que Döblin, nesse sentido, utilizou seu Biberkopf como ‘sonda’ para testar a linguagem e os textos, a multiplicidade dos discursos de sua época fica comprovado pelo contexto de Berlin Alexanderplatz”60 (KELLER 1990: 163). Aqui, mais uma vez Franz é colocado como objeto de uma instância superior que o ultrapassa. O sujeito não possui autonomia nenhuma, tampouco autenticidade.

A falta de autonomia de Franz sobre sua vida, como na passagem em que ele é primeiro iludido e depois obrigado a participar dos negócios escusos de Pums, reafirma a ideia de experiência quase passiva postulada por Waldenfels:

A instância que, na Modernidade, usa o título “sujeito” se adianta como paciente e como respondente; ou seja, na medida em que eu participo, mas não como iniciador, e sim como alguém literalmente subordinado a determinadas experiências, como sujeito no sentido não usual da palavra, de que Lacan e Levinas se utilizam.61 (WALDENFELS 2006: 45)

No sentido filosófico, portanto, Franz não pode ser chamado propriamente de um sujeito, já que a experiência o ultrapassa, ainda que se trate de sua própria história.