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Capítulo IV – Entfremdung: Franz Biberkopf alienado na Metrópole

2. Os golpes

2.3. Terceiro golpe: o assassinato de Mieze

A última e mais importante namorada de Franz Biberkopf após a morte de Ida se chama Emilie Parsunke, mas foi rebatizada por ele, passando a se chamar Marie e, depois, pelo diminutivo: Mieze. Menor de idade à época, ela surge na vida de Franz por intermédio de sua benfeitora Eva, que os apresentou (Sexto Livro do romance, Episódio 8 da série). Franz se encanta por ela imediatamente:

Mas a garota é de fato um pitéu, uma beleza, nota dez, uma coisa dessas ainda não constava em sua caderneta de endereços. É uma figurinha pequena, parece uma colegial com seu vestidinho branco e leve, braços de fora, seus gestos são suaves, lentos, imperceptivelmente chega logo perto dele. Está lá há apenas meia hora e ele não pode mais imaginar aquela malandrinha longe de seu quarto. (p. 293)

Na adaptação televisiva, Mieze aparece pela primeira vez igualmente como uma figura que remete à pureza, à inocência, com suas roupas claras e corpo frágil compondo uma figura que busca proteção (cf. Figura 23). Otto Keller aponta para a associação de Mieze a uma figura clara, enxergando também uma contraposição com a outra mulher “dignificada” por Franz: Mieze é uma figura relacionada com a luz e a claridade; Eva, com a escuridão (cf. KELLER

1990: 77).

De fato, tanto no romance como na série, Mieze sempre aparece com roupas claras e associada à luz, como nesta frase dita por Franz ao conhecê-la: “É como o nascer do sol”.10 Keller vê nesse recurso um conteúdo metafórico ligado à claridade e à luz: Mieze, a redentora de Franz, está sempre vestida de branco (cf. KELLER 1990: 130). Até mesmo o quarto de

Franz, sempre tão escuro, com a presença de Mieze passa a contar com uma paleta de cores mais clara na série de TV (cf. Figura 24).

10 “Es ist, wie wenn die Sonne aufgeht.”

Logo no primeiro contato entre os dois, ela demonstra sua devoção a Franz, ajoelhando-se e beijando-lhe a mão. Mieze passa a viver com Franz, e a importância dessa personagem na vida do protagonista está expressa no título do capítulo do romance em que ela é introduzida: “Também entra em cena uma garota, Franz Biberkopf está completo outra vez” (p. 292). A incompletude do sujeito alienado parece se resolver com essa sentença, ainda que o desfecho não tenha sido esse.

A entrada dessa garota na vida de Franz parece ter colocado o personagem no rumo certo, o que vemos no seguinte trecho do romance:

A que altura está agora nosso Franz Biberkopf! Como ele vai bem, como tudo se arranjou! Estava já perto da morte, como se reergueu! Que criatura satisfeita é agora, pois nada lhe falta, desde comida até bebida ou roupa. Tem uma garota que o faz feliz, tem dinheiro, mais do que gasta, já saldou toda a dívida com Herbert, este, Emil, Eva, são seus amigos, querem- lhe bem. Por dias inteiros, fica à toa na casa de Herbert e Eva, espera por Mieze, passeia até o Lago Müggel, onde pratica o remo junto com outros dois: pois Franz fica a cada dia mais ágil e forte do braço esquerdo. Vez por outra, ronda pela Münzstrasse, à escuta junto à Casa de Penhores. (p. 303)

Porém, mais uma vez uma tentativa de se reerguer, de se apropriar de si, tem como resposta um “golpe”. Envaidecido em razão da mulher que tinha a seu lado, Franz quer exibi-la a todos, sobretudo a Reinhold, seu rival, com quem tem uma relação ambígua. A felicidade de Franz com a nova namorada desperta a inveja e a cobiça de Reinhold, que coloca para si o objetivo de roubar-lhe Mieze.

Mieze, até então mostrada como uma figura pura e ingênua, revela-se, no desenvolvimento da trama, como uma mulher ardilosa. Sem compreender a relação de Franz com Pums e a causa da amputação de seu braço direito, ela planeja se aproximar dos homens do bando – principalmente de Reinhold – para obter informações, sempre com a intenção de ajudar seu companheiro. Essa nobre estratégia, porém, terá como fim a ruína da garota.

No filme, a sagacidade de Mieze ao tentar ajudar Franz arrancando informações de Reinhold só se mostra aos poucos, diferentemente do que ocorre no romance, em que ela tem tudo planejado. Senão vejamos: “Terremoto, raios, fumaçada, tudo acabado, mas é bom ter encontrado o tipo, vou espremê-lo a respeito de tudo o que houve com Pums, e o que Franz anda fazendo, com um tipo desses basta um pouco de lábia; deixar que esperneie, então dá certo” (p. 390). Vemos que, ao contrário das primeiras impressões, Mieze está longe de ser uma garota ingênua. Em uma cena do Episódio 12 da série, ela aparece diante do espelho, em um plano que parece indicar que se trata de uma figura ambígua, tanto pura como ardilosa (cf.

Figura 25). Christian Thomsen afirma que o espelho era o símbolo preferido de Fassbinder, sempre a denotar a ambivalência dos personagens, duplicando-os (cf. THOMSEN 1989: 7).

Em um encontro com Reinhold na floresta em que ela costumava se divertir com Franz, Mieze finge gentileza, sempre no intuito de saber mais sobre a vida de Franz. A certo ponto, Reinhold percebe o objetivo de Mieze. Ela é então violentada, morta e enterrada na floresta.

Desesperado com o desaparecimento de Mieze – ele ainda não sabe de sua morte –, Franz retorna ao estado de espírito anterior ao dia em que a conheceu. Esse estado é representado por seu quarto, que volta a ser caótico e escuro (cf. Figura 26).

A postura de Mieze em relação à situação de Franz a coloca em uma posição superior à do herói no que diz respeito à atitude diante da vida. Enquanto Biberkopf se vitimiza cada vez mais, Mieze toma a frente dos acontecimentos para protegê-lo e defendê-lo. Para Otto Keller, Mieze é colocada na série das figuras bíblicas Jó – Isaque – Esther. Mieze é uma espécie de redentora, e seu ato de sacrifício toma o primeiro plano, enquanto Biberkopf se torna cada vez mais queixoso. Trata-se de uma crítica ao herói (cf. KELLER 1990: 97-8).

Também em relação à morte, outro importante ator da ação, a postura da garota seria oposta à de Franz: a atitude corajosa de Mieze se contrapõe ao medo que este sente da morte (cf. KELLER 1990: 99).

Ainda de acordo com Keller, Mieze emerge de sua condição de mulher, cuja posição no romance é sempre rebaixada – todas as mulheres são tratadas como objetos –, e assume posição de destaque:

No sétimo livro, a princípio Reinhold e Franz confrontam-se novamente, porém logo Mieze, inferiorizada como objeto por Franz e Reinhold, intervém em uma ação autônoma, torna-se o ator central de um programa narrativo próprio, heroína, que aspira seu próprio objetivo de maneira consequente e, ainda que com a perda de sua vida, alcança-o.11

(KELLER 1990: 82)

A figura frágil e inferiorizada de Mieze é quem surge em meio ao conflito dos homens e se posiciona de maneira corajosa, à custa de sua própria vida. Mieze se coloca, dessa forma, como uma personagem segura de si e de sua personalidade, oposta ao alienado Biberkopf.

11 „Im siebten Buch stehen zunächst wieder Reinhold und Franz einander gegenüber, doch tritt dann bald die von Franz und Reinhold zum Objekt erniedrigte Mieze in eine selbständige Aktion ein, wird sie zum zentralen Aktor eines eigenen narrativen Programmes, zur Heldin, die ihr eigenes Ziel konsequent anstrebt und dieses, wenn auch mit dem Verlust ihres Lebens, doch erreicht.“

O ato de Mieze se diferencia, ainda, do sacrifício dos animais, mostrado nas referências ao matadouro. No caso dela, não se trata de um destino aceito como irreversível; ela assume, na verdade, uma atitude de desprendimento para ajudar seu companheiro (cf. KELLER 1990: 91). Não se pode esperar uma atitude parecida de Franz, que se mostra uma

figura egocêntrica.

Do ponto de vista da responsabilidade dos outros atores envolvidos, sobretudo o entorno (cidade), na condição de Biberkopf, cada um desses acontecimentos abala a possibilidade de o personagem cumprir a promessa de se manter decente. Eles são as principais demonstrações da força violenta do ambiente histórico sobre o protagonista de Berlin Alexanderplatz.

Por outro lado, do ponto de vista da postura do personagem, vemos que até mesmo sua intenção de “se manter decente” é altamente discutível e contraditória; basta notar suas intenções nada honestas com relação à viúva, antes de receber o primeiro golpe. Na verdade, seus planos eram tão espúrios quanto os de Lüders, Pums e Reinhold, a diferença é que estes saem vitoriosos em seus planos. Franz, na verdade, busca se manter decente lançando mão de meios indecentes. No episódio da amputação, por exemplo, ainda que ludibriado, o fato aconteceu quando ele estava cometendo um crime.

E quanto a seu relacionamento com Mieze, ressalte-se que, ainda que demonstrasse amor pela garota, Franz a explorava, fazendo as vezes de seu cafetão. Além disso, seu comportamento foi decisivo para a morte de Mieze.

Portanto, ainda que se coloque constantemente na posição de vítima, Franz Biberkopf é corresponsável, em grande parte, por sua condição alienada. Esse aspecto será analisado no próximo tópico.