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Capítulo IV – Entfremdung: Franz Biberkopf alienado na Metrópole

3. Franz Biberkopf vítima e perpetrador

3.1. Posição de vítima: relativização

3.1.1. Exemplaridade: Franz Biberkopf e Jó

O romance Berlin Alexanderplatz é permeado de referências a Jó como paralelo a seu protagonista, e essas referências, por sua importância, foram transpostas à adaptação feita por Fassbinder. Veremos neste tópico que o ponto de contato entre os dois personagens é o sofrimento imposto a ambos. Com apoio em nossa análise e na fortuna crítica, por outro lado, propomos também a problematização dessa comparação, levando em conta, sobretudo, o que já explanamos a respeito da personalidade de Franz Biberkopf.

Em primeiro lugar, é importante destacar o papel que os textos bíblicos desempenham no romance e no filme. Para Celeste Sousa, como textos pertencentes à tradição religiosa, eles conferem caráter exemplar ao fato narrado, conforme vemos a seguir:

As citações bíblicas alimentam a exemplaridade dos acontecimentos, pois estas, ao contrário das canções e poesias, abrem um novo espaço, ultrapassam o plano do cotidiano. A história de Biberkopf atinge, desta forma, as raias da exemplaridade, ao ser intertextualizada em meio a citações do livro de Jó, do livro de Jeremias, do sacrifício de Isaac, do paraíso, da prostituta Babilônia e outros trechos apocalípticos. (SOUSA 1995: 520)

A exemplaridade bíblica, portanto, inserida na ação narrativa por montagem, ajuda a representar o que se abate sobre Biberkopf. Um exemplo disso é a seguinte passagem do

romance, em que o narrador se dirige ao protagonista: “Você não perdeu tanto quanto Jó de Hus, Franz Biberkopf, as coisas recaem lentamente sobre você. [...] Você não perderá riqueza, Franz, você mesmo será queimado até o fundo da alma!” (p. 436). A menção direta de uma figura bíblica e, mais que isso, a comparação dessa figura com o protagonista do romance conferem exemplaridade à obra ao inseri-la na tradição judaico-cristã. Por meio desse recurso, o autor oferece um modelo ao seu personagem, mesmo que este aja de forma contrária a ele. Esses textos oferecem lastro à narrativa – mas não necessariamente à vida de Biberkopf que, mesmo com isso, não ganha individualidade.

Essa referência encontra forte ressonância na fortuna crítica do romance Berlin

Alexanderplatz. É bastante recorrente a comparação de Franz Biberkopf com a figura de Jó,

com referência às agruras a que ambas as figuras são submetidas. Peter Bekes, por exemplo, considera que a relação entre Jó e Biberkopf vai além da superficialidade de observá-los como dois sofredores: “O imbricamento do tema de Jó com a história de paraíso e pecado original elaborada por Döblin nos dá um primeiro indício da afinidade intrínseca de ambos os personagens”17 (BEKES 1995: 86). Porém Bekes não deixa de apontar também diferenças importantes entre eles:

O Jó bíblico é [...] rico, respeitado e pio, vive em relações sociais organizadas sem máculas morais, sem qualquer tipo de estigma social. Biberkopf é completamente diferente: ele é um pobre zé-ninguém, um “lumpemproletário”, embora seja bondoso, mas quando se irrita tende a atos de violência. Além disso, tem maus antecedentes.18 (BEKES 1995: 86)

Bekes problematiza a comparação, ressalvando que, embora o sofrimento as aproxime, trata- se de duas figuras diametralmente opostas em sua personalidade e comportamento.

No contexto do sofrimento, outro aspecto que liga Biberkopf a Jó é a lamentação. Como reação humana natural a atribulações impostas de forma injusta, Jó questiona Deus, revolta-se contra Ele e até mesmo duvida de Sua existência, em uma situação de extrema desesperança. Afinal, tudo lhe foi tirado. Ele perdeu toda a sua riqueza, seus criados, seus filhos, teve seu corpo coberto de chagas e foi condenado pelos próprios amigos. Tudo aconteceu sem que ele tenha se desviado do “caminho correto”, sem que tenha pecado. Mesmo assim, mantém sua fidelidade a Deus. O que faz, quando as chagas já tomaram todo o

17 „Ein erster Hinweis auf die innere Verwandtschaft beider Figuren gibt uns die Verzahnung des Hiobthemas mit der von Döblin bearbeiteten Paradies- und Sündenfallgeschichte.“

18 „Der biblische Hiob ist [...] reich, angesehen und fromm, lebt in geordneten gesellschaftlichen Verhältnissen ohne moralischen Makel, ohne jegliches soziales Stigma. Ganz anders Biberkopf: er ist ein armer Schlucker, ein ‚Lumpenproletarier’, ist zwar gutmütig, neigt aber, wenn er gereizt wird, zu Gewalttätigkeiten. Zudem ist er vorbelastet.“

seu corpo, é questionar: “Ó Deus, por que me deixaste nascer? Eu deveria ter morrido antes mesmo que alguém me visse” (JÓ, 10, 18).

Franz Biberkopf, por outro lado, em sua busca por se recolocar na sociedade como ex- presidiário, também passa por muitas agruras, apesar de, diferentemente de Jó, não ter muito o que perder e não contar com a virtude de Jó. Vemos na Bíblia que Deus fala sobre Jó: “No mundo inteiro não há ninguém tão bom e honesto como ele. Ele me teme e procura não fazer nada que seja errado” (2005: 507). Biberkopf também procura se manter decente, mas não consegue, é impedido pelo ambiente que o cerca e também por suas próprias atitudes. Jó passa por uma espécie de teste imposto por Satanás, com o consentimento de Deus. Já Biberkopf sofre com um “algo” que se impõe sobre sua vida.

Com tanto sofrimento, Jó amaldiçoa o dia em que nasceu. Em Berlin Alexanderplatz, o equivalente disso é o fato de Biberkopf, que está passando por diversos sofrimentos na cidade de Berlim – como a amputação de um de seus braços –, lamentar sua própria libertação e desejar voltar para a cadeia.

Vemos, portanto, que tanto a Jó como a Biberkopf são impostos sofrimentos que partem de forças supremas que os ultrapassam, que estão além de sua compreensão e de suas capacidades: Deus é quem permite o sofrimento de Jó, enquanto Franz é assolado por um “algo”; algo indefinível, mas que “parece com um destino” (p. 9). No decorrer do enredo, sabemos que esse algo é a disputa entre a Prostituta Babilônia e a morte pelo destino do personagem. O destino é usado aqui com todo o seu status inegociável, inexorável e irrevogável.

A diferença fundamental é que o lamento de Jó parece justo, enquanto o de Biberkopf, que é corresponsável pela própria situação, apenas vitimismo de um sujeito que se sente injustiçado pela vida.