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Capítulo IV – Entfremdung: Franz Biberkopf alienado na Metrópole

5. Aspectos da Entfremdung aplicados a Franz Biberkopf

5.1. A Entfremdung dentro da ordem

Compreendida a Entfremdung como uma espécie de desajuste na relação do sujeito com seu entorno e consigo mesmo – que é a perspectiva adotada nesta tese –, é importante observar que ela se manifesta no contexto de uma determinada ordem. Afinal, a concepção de ordem envolve e modifica também a concepção de realidade por parte do sujeito:

A ordem desempenha um papel chave na tentativa incessante dos homens de conferir sentido e significado à realidade experimentada por eles (seja ela do tipo física, espiritual ou metafísica). Sem ordem, a realidade permaneceria caótica, não estruturada e, com isso, inexplicável e incompreensível.40 (NAUTA in SANDKÜHLER 2010: 1.885-6)

No contato do sujeito com o mundo (realidade), a ordem é uma espécie de orientação. Em caso de ausência de uma ordem ou de sua incompreensão por parte do indivíduo, inviabiliza- se uma existência não alienada.

Tendo em consideração as conceituações apresentadas no capítulo II desta tese, propomos agora uma discussão mais específica voltada ao caso das obras analisadas. No caso de Berlin Alexanderplatz, dois contextos diferentes se destacam em importância na vida de Franz Biberkopf: a ordem da prisão e a ordem da metrópole.

Nos dois próximos tópicos, portanto, abordaremos o conceito de ordem nesses dois ambientes para, em seguida, expormos os aspectos da Entfremdung pertinentes a Franz Biberkopf.

40 „O. spielt eine Schlüsselrolle im unaufhörlichen Versuch der Menschen, der von ihnen erfahrenen Wirklichkeit (sei sie physischer, geistiger oder metaphysischer Art) Sinn und Bedeutung zu geben. Ohne O. bliebe die Wirklichkeit chaotisch, unstrukturiert und damit unerklärlich und unbegreiflich.“

5.1.1. A ordem na prisão

Em primeiro lugar, abordaremos a ordem imperante na prisão quando do cumprimento da pena de Biberkopf. Ela é fundamentalmente distinta da que o personagem encontraria ao ser libertado, e por esse motivo é importante compreendê-la em retrospecto, tendo como ponto de vista a vida de Franz na cidade, já que a ação da obra se inicia nesse ponto.

Na prisão havia uma ordem que, apesar de muito rígida, se tornou familiar a Franz durante o cumprimento de sua pena. Por esse motivo, era algo previsível a ser seguido. Tanto é que, de volta ao convívio social, ele recorda o presídio de forma saudosa:

É uma grande sorte morar nestes muros, a gente sabe como o dia começa e como ele avança. [...] Cantar, assobiar, fazer barulho, tudo isso é proibido. Os presos têm de ficar de pé imediatamente ao sinal de levantar, arrumar o alojamento, lavar-se, pentear-se, limpar as roupas e vestir-se. Sabão é disponível em quantidade suficiente. Bum, um toque de sino, levantar, bum, cinco e meia, bum, seis e meia, destrancar, bum bum, para fora, tomar o café da manhã, horário de trabalho, hora de recreação, bum

bum bum, almoço, rapaz, não torça a fuça, aqui não há regime de engorda, os

cantores devem apresentar-se, apresentação dos cantores cinco e quarenta, anuncio-me com voz rouca, seis horas, cerrar portas, boa noite, conseguimos. Uma grande sorte morar nestes muros [...]. (p. 18)

Ainda que a prisão não seja algo que se assemelhe a um lar, a ordem distribuída ali é o que um sujeito desajustado como Franz necessita para se sentir em segurança. Em diversas passagens, ele manifesta o desejo de voltar para o presídio, como no exemplo a seguir, em que se dirige à frente do prédio: “Em direção a Tegel, pega o 41. E quando surgem os muros vermelhos, à esquerda os muros vermelhos, os pesados portões de ferro, Franz fica mais calmo. Isto faz parte de minha vida e preciso observar, observar” (p. 445). Franz busca integração no único lugar em que diz sentir-se à vontade.

É provavelmente desse tipo de ordem que ele se ressente quando demonstra certa simpatia por discursos fascistas, expressa pela voz do narrador: “Franz agora vende jornais nacional-populistas. Não tem nada contra os judeus, mas é a favor da ordem” (p. 89). Biberkopf não é um homem de convicções políticas; ele antes se juntara aos comunistas e depois usou a suástica para vender jornais sem conhecer o programa nacional-socialista. O que o atrai no discurso é o apelo à ordem social. Segundo Otto Keller, Franz deseja a ordem apenas para fazer prosperar seus negócios (cf. KELLER 1990: 36).

A afinidade de Franz com a ordem da prisão se evidencia quando ele é libertado. A condição de ex-presidiário, uma vez atirado de volta à cidade, é semelhante à de um estranho,

de alguém alienado de sua condição. Biberkopf, quando a ação de Berlin Alexanderplatz se inicia, já passou por duas alienações: a prisão (privação da liberdade) e, paradoxalmente, a libertação. Passemos, então, a uma exposição da ordem que ele encontra na metrópole.

5.1.2. A ordem na metrópole

A Berlim que Franz encontra ao sair da prisão é uma grande cidade em reconstrução, como vimos no capítulo anterior. Ele imediatamente percebe que a vida na prisão era melhor do que a que se descortina diante dele fora da cadeia: “é a pena, a mim deixaram sair, os outros ainda cavoucam batatas atrás do presídio, junto ao grande monte de lixo, e eu preciso tomar o elétrico, maldição, até que era bom lá” (p. 125). A pena, na verdade, começa a ser cumprida quando Franz recoloca os pés na cidade.

Levando-se em conta que, na Modernidade, passou-se a reconhecer e admitir a existência de múltiplas ordens e que a Berlim dos anos 1920 é uma típica cidade moderna, é importante tentar identificar que ordem – ou ordens – é possível encontrar em Berlin

Alexanderplatz. Considerando também que lidamos com duas autênticas obras da

Modernidade – tanto o romance como a série de TV –, é de se esperar que não haja nelas uma ordem unívoca, e sim algo em construção.

As novas ordens limitadas que se libertam da ordem geral, às quais nos referimos no capítulo II, não decaem, porém, para a arbitrariedade. Afinal, de acordo com Bernhard Waldenfels: “Há conexões laterais, que são mais ricas que todas as ordens ‘piramidais’, que procedem verticalmente de cima para baixo”41 (WALDENFELS 1998: 26).

O importante para nossos objetivos é notar que em Berlin Alexanderplatz a noção de ordem estabelecida é constantemente questionada, em conformidade com a perspectiva fenomenológica, representada por Waldenfels. A começar pela forma, marcada pela simultaneidade e pela polifonia, e seguindo pela temática da obra, em uma Berlim sob os efeitos imediatos da Primeira Guerra Mundial, o romance de Döblin parece representar avant

la lettre na literatura as teorias de Waldenfels a respeito dos limites fluidos e permeáveis das

diversas ordens na Modernidade. Ou seja, a ordem imperante na Berlim do romance de Döblin não pode ser a ordem clássica. A sociedade na qual não há espaço honesto para Franz é um lugar a que podemos chamar de “comum”, “ordinário”, mas é também o submundo, o ambiente dos ladrões e prostitutas. Nenhuma dessas múltiplas ordens acolhe o protagonista.

41 „Es gibt laterale Verbindungen, die reicher sind als alle ‚pyramidalen‘ Ordnungen, die vertikal von oben nach unten hin verlaufen.“

É nesse contexto, de ordens de margens permeáveis, que Biberkopf se encontra. Como corpo estranho, ele representa um elemento perturbador da ordem, a despeito de sua personalidade neutra e até aparentemente desligada dos fatos ao seu redor. Por sua incapacidade de se ajustar, ele incomoda a todas as ordens presentes na obra e é violentamente expelido por sua sociedade, chegando até mesmo ao ponto de sentir falta do tempo que passou na prisão.

Por outro lado, a despeito do ambiente de reconstrução que Franz encontra fora da prisão, ele deve se submeter a uma ordem – o que lhe dá certa segurança, como um guia de acordo com o qual ele deve se mover. No exemplo a seguir, ele tem de se apresentar periodicamente a uma autoridade:

Havia uma boa casa junto à linha urbana, Grunerstrasse 1, junto a Alex, assistência social a presidiários. Olham para Franz, fazem-lhe perguntas e mais perguntas, assinam: o senhor Franz Biberkopf colocou-se sob nossa proteção, investigaremos se o senhor tem um trabalho e o senhor deve se apresentar todos os meses. Feito, ponto, tudo em ordem. (p. 46)

Portanto, há, sim, uma ordem a guiar aquela sociedade. Ainda que o ambiente seja conturbado, a situação não é de caos. Enquanto enquadrado em uma ordem como essa – ou como a da prisão –, Franz se sente seguro. Por outro lado, ele não consegue se adaptar nem à ordem do trabalho, a ordem burguesa, nem à do crime.

A promessa de se manter decente também marca uma tentativa de se adequar à ordem burguesa. O título do segundo capítulo do Segundo Livro do romance indica essa busca: “Franz Biberkopf sai à procura, é preciso ganhar dinheiro, sem dinheiro o homem não vive. Sobre a feira de louças de Frankfurt” (p. 62). Esse título sinaliza um primeiro programa narrativo imposto a Biberkopf. De acordo com Otto Keller: “Pois Franz quer se ater às leis da cidade, à sua ordem; ele quer permanecer decente e trabalhar”42 (KELLER 1990: 33). Keller aponta ainda que, de acordo com Meck, o antigo revolucionário Franz se tornara um lacaio da ordem capitalista (ibidem: 34). Porém, já sabemos que esse programa não é bem-sucedido. Além do comportamento do personagem, a ordem na qual Franz acaba inserido é a criminosa.

O discurso da ordem também se mostra na arrogância de Franz. Em sua confrontação com Reinhold no bar, ele se gaba diante de Meck como herói, como alguém capaz de criar ordem no mundo (cf. KELLER 1990: 64).

42 „Allerdings will Franz sich an die Gesetze der Stadt, an ihre Ordnung halten; er will anständig bleiben und arbeiten.“

A vida de Franz na ordem da cidade não é nada fácil, o que o leva a, em diversos momentos, demonstrar que sente falta da prisão – sempre em comparação com a vida que leva fora dela, na cidade. Isso se revela em flash-backs da época em que esteve preso e também em fluxos de consciência como este: “Eles me prenderam aqui, melhor pão seco e batatas cozidas do que ficar de tocaia para esses malandros” (p. 239). Por mais que esse pensamento seja compreensível para quem sabe das agruras pelas quais Franz passa na cidade de Berlim, é de se estranhar que um ex-detento sinta “saudade” da prisão. Trata-se, afinal, do ponto de vista do ex-presidiário, de confrontar prisão x liberdade e optar pela primeira.

Franz busca integração, sentir-se incluído, amenizar a alienação e o sentimento de não pertencimento, e isso lhe parece possível somente na prisão.