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3.3 Survey qualitativo: escolhas em campo e a experiência em pobreza

3.3.2 Entrevistas etnográficas: entre a observação participante e riscos em campo

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técnica predominante em pesquisas a utilização de entrevistas (DEMO, 1995). Nelas incorremos constantemente em categorias como entrevistador e entrevistado, inquisidor e inquirido. O risco desta modalidade de escuta é o mesmo já criticado aqui no que se refere à coleta em indicadores: entrevistas podem colocar a pessoa em um lugar definido, sem que esta se abra à experiência. Sabe-se, portanto, que técnicas de entrevistas diretivas constrangeriam o campo, por não permitir o agenciamento dos arguidos como sujeitos no intercambio discursivo.

Uma alternativa possível - em termos éticos, práticos e epistemológicos - a esta “vulnerabilidade da técnica” (GOMES, 2010) de escutar sentidos e temas, seria a abordagem por entrevistas etnográficas não diretivas (GUBER, 2011). Esta abordagem não contem perguntas direcionadas ou então qualquer tipo de roteiro que oriente os sentidos de respostas. A respeito das entrevistas etnográficas, Guber (2011) assinala que:

Ao contrário de outros contextos investigativos, seus temas e questionários são só ligações provisórias, manuais-testes que serão deixados de lado ou reformulados no curso do trabalho. A premissa é que, se só podemos conhecer a partir da nossa bagagem conceitual e de sentido comum, devemos ir em busca de temas e conceitos que a população expressa por associação livre. Isto significa que os informantes introduzem suas prioridades em forma de temas de conversação e práticas observadas pelo pesquisador, e as formas de receber perguntas e de perguntar revelam os nós problemáticos de sua realidade social tal como a percebem de seu universo cultural (GUBER, 2011, p.75, grifo do autor).

Para conseguir captar a associação livre durante as entrevistas, o pesquisador deve manter um estado de vigília constante, chamado de atenção flutuante (GUBER, 2011). Esta atitude exige uma escuta muito característica, de modo a não explicitar conteúdos ou temas referentes ao que se pretende observar, visando que a associação livre se manifeste.

Ambos conceitos86 atuam como par, para favorecer que a pessoa se manifeste num ambiente sem preconceitos ou julgamentos que possam interferir em sua elaboração/fala/escuta acerca do fenômeno a ser tematizado posteriormente. O informante é quem entra prioritariamente no plano de fala com verbalizações mais extensas, enquanto o pesquisador permanece de forma pontual e restrita (GUBER, 2011).

Reconhece que a associação livre não é plenamente livre, pois está associada à situação de pesquisa, o que parte de um direcionamento prévio e interferente da figura do pesquisador diante do sujeito. Portanto durante a aproximação inicial o pesquisador

86 A associação livre e a atenção flutuante são dois princípios básicos da técnica psicanalítica freudiana, chamados de “regras fundamentais”. Apesar de não ser citado em Guber (2011), Freud inicia a psicanálise enquanto prática, a discernindo da hipnose partindo destes dois conceitos. Para Freud a associação livre auxilia na verbalização da relação entre desejo e representação, enquanto a atenção flutuante daria continência a esse conteúdo, favorecendo os apontamentos posteriores (FREUD, 1996a). Outro ponto importante é que para Freud a função destas duas atitudes é apontada como terapêutica, enquanto pela antropologia ela é vista como política e compreensiva.

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permaneceu como um escrevente de histórias de vida e não alguém que buscava conteúdos em pobreza. Na via compreensiva, seguindo a tradição hermenêutica descrita até aqui, não se perguntou o “Por que a pobreza?” ou “O que é pobreza para você?” (perguntas que induziria a associação livre), mas ouviu respostas em “Para que pobreza?” e “Que pobreza?” (orientação para a responsabilização da pobreza e sua matriz ontológica).

Em campo o que se fez / o que foi feito passou por deixar as pessoas se relacionarem enquanto livre falantes. O que esteve preconizado foi um falar à vontade, sem uma escolha prévia de temas ou de uma ação prévia disparadora de discursos. Um deixar-se à vontade faz bem para a incursão no campo de vida, pois a vontade atua na relação entre a representação e a ação, entre o discurso e práticas cotidianas (GOLDMAN, 2006a), entre a história e a ciência, entre o ser e o espaço-tempo (HEIDEGGER, 2000). Falar à vontade marca uma interrupção significativa na lógica pós-moderna para retomar o agenciamento do ritmo da própria história.

O imperativo da vontade aqui se edifica sob uma relação onde a soberba deixa de fazer sentido para dar lugar ao eu no outro. Não se abre espaço autossoberba na esfera de uma relação consigo mesmo, pois demandaria uma cisão do eu em nome de um processo de hierarquização “emsimesmado”.

Falar à vontade é uma dimensão da razão humana, onde a “politicidade detém o signo do sujeito, não mais como soberania do ser humano sobre todos os seres, mas como habilidade de se constituir capaz de conduzir, até certo ponto, sua história ou de fazer história própria” (DEMO, 2003, p. 18-19). Um exercício eterno de construir-se sobre ruínas, através uma tarefa protagônica com relativa autonomia, em termos de significação e ressignificação de si pela comunicação com o outro e consigo.

O vínculo entre encontro de campo e escrita considera o passo relacional daquilo que está composto pela mutualidade da observação, falas, silêncios, gestos e percepções, material do tecido que se constitui a cultura. A interpretação contida no processo de produção de um saber escrito deve permanecer sobre este estatuto, compreendida no desencadeamento intersubjetivo que estrutura cada filamento deste tecido. Compreende-se neste processo o distanciamento entre o dizer (ação) e o que é dito (significação) (RICOUER, 1990).

É importante reconhecer esta matriz simbólica do “entre” propiciada pelo exercício de se escrever: se escreve e inscreve entre pessoas, entre representações, entre observação participante e entre entrevistas. Por ser relacional e socialmente construída (RICOEUR, 1990), qualquer escrita descritiva da realidade é intencional e residual. O exercício de se fazer e de fazer-se em pesquisa pela compreensão intersubjetiva que a compõe,

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“é” uma trajetória autoral de natureza ficcional (CLIFFORD, 1998).

[...]a ficção é o caminho privilegiado da descrição da realidade, e a linguagem poética é aquela que, por excelência, opera o que Aristóteles, refletindo sobre a tragédia, chamava de a mimesis da realidade. A tragédia, com efeito, só imita a realidade, porque a recria através de um mythos, de uma "fábula", que atinge sua mais profunda essência. (RICOEUR, 1990, p.57)

Assim, a intersubjetividade é substancialmente o ponto de partida do exercício de atuação simbólica, à medida que seu sentido só é apropriado quando da lógica do encontro se constitui em atuação social. Freud (1996b) sinaliza esta composição intersubjetiva, ao indicar que o dualismo indivíduo e social, que de tempos em tempos alimenta debates epistemológicos em ciências humanas e sociais, constitui-se através de um nexo único, um continuum. Desta afirmativa, o jogo simbólico, engendrado pelos processos de identificação permite a atuação social dos sujeitos em dialogia entre o “eu” e “nós”.

Este encontro simbólico promovido pelo campo se vê reforçado pela contribuição de DaMatta (1978), em que se busca encontrar no anthropological blues a reverberação necessária para a compreensão do sentido. Pelas fórmulas, “(a) transformar o exótico no familiar e/ou (b) transformar o familiar em exótico (DAMATTA, 1978, p. 28)”, o descrever ganha corpo ao ser capaz de situar, mesmo que anedoticamente, a semântica do plano imaterial.

A repetição das notas deste blues87 , como num exercício de ação em espelhamento (SARTI, 2011), favoreceria que as emoções e sentimentos, até então no plano do obscurantismo, se revelassem como matriz posta do significado não apreendido pelos códigos regimentados do saber científico. O encontro de campo em convivência aparece como confronto de subjetividades. A hermenêutica nesta perspectiva, apresenta severos riscos, pois experiência e interpretação vivem em constante tensionamento dialógico (CLIFFORD, 1998). Associada a abordagem em capacidades em Sen (2000, 2001), a incursão de campo visou constituir narrativas sobre as liberdades encontradas no cotidiano das pessoas. A capacidade de ser e de agir revela-se inseparável das liberdades em garantias políticas e jurídicas locais (RICOEUR, 2006). A imputabilidade passa a ser crucial à escuta para se atender a esta proposta de Sen (2000; 2001) em campo experencial.

A revolução conceitual 'introduzida com o par “direitos" e "capabilidades"88 só pode ser compreendida se oposta à avaliação da ação em termos de utilidade e de bem- estar. É como capacidade real de escolha de vida que a capabilidade é promovida à categoria de critério para avaliar a justiça social (RICOEUR, 2006, 158).

87 No blues é importante saber a escala musical para que notas e acordes fluam em harmonia. Ao mesmo tempo é importante esquecer as notas para que se possa manter o aspecto singular e intuitivo da improvisação.

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É importante aqui reforçar a escolha da hermenêutica e da reflexividade da antropologia implicada nesta tarefa, devido a sua contribuição acerca dos processos interpretativos em um modelo construtivista, que no entender deste pesquisador, apresentam possibilidades de integração com conteúdos em survey para o momento de triangulação.

Em síntese os dois surveys oferecem as seguintes perspectivas de leitura para os métodos mistos proposto em formato sequencial (CRESWELL, 2007):

Tabela 13: Síntese das funções dos surveys construídos pela pesquisa

Função Survey (quanti) Survey (quali)

Relação com o Objeto Dedutiva Indutiva

Perspectiva de Pobreza Pobreza (Top Down) Pobreza (Bottom Up)

Natureza do Dado Dados Quanti (Indicadores) Dado Quali (Escrita de campo)

Formas de Coleta Dados secundários (IBGE, SAGI/MDS, CAGED e Porta a Porta)

Convivência, observação participante e entrevistas etnográficas

Objetivo da Abordagem Mensura a situação de Pobreza Expõe a experiência de Pobreza

Lugar/agenciamento “Pobre” Objeto de Pol.

Públicas

“Pobre” Sujeito em Pol. Públicas

Fonte: Elaboração própria