• Nenhum resultado encontrado

1.1. Por que problematizar a pobreza em ciência? Debatendo os paradigmas de pobreza

1.1.2. A pobreza e seus paradigmas: da representação econômica monetarista ao fenômeno

1.1.2.4. Pobreza Multidimensional

Os três paradigmas anteriores não implicaram em nenhuma revolução de

36

pensamento que se referisse ao fenômeno como uma espécie de extensão da fragilidade monetária. Ora mais ora menos avançados tentam aos poucos incluir a pobreza num debate para além das carências de renda, moradia, emprego e alimentação. Estas abordagens se aproximam, mas não contemplam sua politicidade (DEMO, 2006). “Ser pobre não é somente não ter, mas ser coibido de ter. Pobreza é, em sua essência, repressão, ou seja. resultado da discriminação sobre o terreno das vantagens e oportunidades sociais. Mera carência não gera pobreza necessariamente” (DEMO, 2006, p. 6).

A partir de debates para uma pobreza além da renda, pensando em recursos mas em também em poder, o economista Amartya Sen inicia um desenvolvimento teórico robusto acerca da questão fundante da pobreza. Uma busca por aquilo que estaria inerente como situação em qualquer teorização. Em Sen (1981) a essência absoluta residiria na fome, pois desta substância não implica uma construção relacional ou em desigualdade. Onde há fome, há pobreza.

Mas sua contribuição maior não seria a matéria da pobreza, enquanto essência, mas como esta se relaciona enquanto função, enquanto politicidade. A utilidade e/ou a posse de um bem não delimitariam a atuação deste enquanto fator de pobreza, mas sim as capacidades13 equacionadas entre bem, possibilidade de obtenção, satisfação e prazer para o indivíduo (SEN, 2001). Tais capacidades manifestadas se dão pelo princípio do desenvolvimento/aprimoramento da liberdade e sua relação (estado e ação) com as oportunidades (SEN, 2000).

A pobreza seria composta por dimensões múltiplas, cumulativas e relacionais, que atuam sobre/com o indivíduo/família em seu lugar e espaço de vida, de forma a promover um encurtamento da existência, limitando oportunidades do desenvolvimento das capacidades humanas (CODES, 2008; LAVINAS, 2003).

Nesta incursão, Sen (1981; 2000) contempla os paradigmas anteriores de pobreza em um, sem exigir perdas em conceito, e nesta roupagem constitui um novo paradigma de pobreza estratificado para além da renda. Entende a possibilidade multiescalar, a variabilidade das correntes (subsistência, necessidades básicas, privação relativa e percepção de suficiência) sem perda residual, pois incorpora a questão relacional ao fenômeno.

Ao se orientar pela forma como o indivíduo se relaciona com a situação de pobreza, a teoria não pensa pobreza como resultado de algo, mas enquanto processo de interação entre pessoas e estratégias de superação de riscos e quedas no bem-estar (BRONZO,

37

2009).

Por riscos entende-se uma variedade de situações que englobam os riscos naturais (como terremotos e demais cataclismos), os riscos de saúde (doenças, acidentes, epidemias, deficiências), os riscos ligados ao ciclo de vida (nascimento, maternidade, velhice, morte, ruptura familiar), os riscos sociais (crime, violência doméstica, terrorismo, gangues, exclusão social), os riscos econômicos (choques de mercado, riscos financeiros), os riscos ambientais (poluição, desmatamento, desastre nuclear), os riscos políticos (discriminação, golpes de estado, revoltas) [...] (BRONZO, 2009, p.173)

O conceito de capacidade apresenta este caráter relacional à teoria, e vale uma problematização mais ampla para compreender seu avanço junto com a teoria proposta por Sen (1981).

Capacidade para Sen (1981, 2001) não é o mesmo que competência ou aptidão, pois nele está agregado a oportunidade de fazer algo. Um exemplo: João é capaz de nadar, tem interesse e satisfação em realizar esta experiência, mas as contingências de sua vida não o levam a ter a oportunidade de nadar, o que geraria um efeito em sentimento de privação, quando este reconhece que outras pessoas podem nadar.

O conceito, portanto, congrega “poder” fazer algo enquanto possibilidade e potência. Quando tais faculdades não estão juntas, têm-se situações de subserviência, degradação e humilhação (internalidade) concomitantes à repressão de vantagens e oportunidades sociais (externalidade)14. Capacidade, portanto, unifica o que se é e o que se faz, como em um exercício ontológico em dialogia.

Não ter oportunidade gera um tensionamento de percepção de si no mundo, à medida que reflete uma intencionalidade de privação de possibilidades. Castel (2003) aborda como efeito destas privações a insegurança social. A modernidade no/do projeto liberal gerou relações de poder hierarquizadas e desiguais para a maioria da população, não conseguindo abarcar a proteção prometida pelos princípios da autonomia do indivíduo e da igualdade dos direitos (CASTEL, 2003).

Como externalidade produto/produtora de subjetividade, a modernidade acabou coroando sistemicamente a insegurança social nos espaços de vida, onde ela “[...] age como um princípio de desmoralização, de dissociação social à maneira de um vírus que impregna a vida cotidiana. Dissolve os laços sociais e mina as estruturas psíquicas dos indivíduos” (CASTEL, 2003, p.31).

Outro conceito importante para o campo teórico em pobreza multidimensional,

14 Tal referência aparece como influência da “Teoria de Justiça” de John Rawls, nas obras de Sen relacionada à abordagem em capacidades.

38

associado ao de capacidade, seria o de intitulamentos15. Os intitulamentos seriam o registro de ativos, adquiríveis e gerenciáveis em capacidade, que atuariam na perspectiva de direitos (formais), acordos sociais (informais) e/ou trocas produtivas (econômicas) para sustentar as relações de produção e intersubjetividade em torno da qualidade de vida e desenvolvimento.

Logo, o conjunto capacitário é afetado diretamente pelos intitulamentos, apresentando-se em dupla-expansão: quanto maior os intitulamentos maior o desenvolvimento de capacidades (SEN, 1981). Ou seja, quanto mais o sujeito apresenta/cria estratégias de superação das adversidades em experiência prática, mais se empodera diante frente às garantias em bem-estar. A insegurança alimentar, por exemplo, é vista como produto da incapacidade para alcançar os intitulamentos, em função de fatores legais, econômicos ou situacionais.

Ao fugir da delimitação de renda para pobreza, na perspectiva de escolhas e da possibilidade de viabilizá-las em acesso para uma condição de vida considerada valiosa pelo sujeito, estabelece-se uma característica estrutural de liberdade atrelada ao termo capacidade: é preciso convertê-la em práxis pelo funcionamento16 (SEN, 2001).

Funcionamentos referem-se a ‘atividades’ [activities] (locomover, comer) ou ‘estados de existência ou ser’ [states of existence or being] (como estar bem nutrido, estar livre da malária, não estar envergonhado pela pobreza da roupa vestida) (SEN, 2001, p.236).

A capacidade para realizar funcionamentos (estado-ação) fornece elementos para observar o sistema de valorização das relações sociais e conteúdos significativos. Cada dimensão do conjunto capacitário é trazida enquanto funcionamento, pelo princípio de liberdade. Parte daí a significância do sujeito poder realizar algo, sendo capaz escolher ou não este funcionamento.

O ganho da liberdade é escalonado, não por valorização social, mas pela amplitude de estratégias possíveis para alcançar um estado de bem-estar. Nesta teoria o aumento da oferta quali/quantitativa de intitulamentos ampliaria o conjunto capacitário com uma maior variação de funcionamentos.

A asserção é de que os funcionamentos são constituintes do “estado" [being] de uma pessoa, e uma avaliação do bem-estar tem de assumir a forma de uma apreciação desses elementos constituintes (SEN, 2001, p.79).

Um exemplo esclarecedor de funcionamento e liberdade na obra de Sen, seria a diferença do homem que jejua e o que passa fome: o primeiro o faz por opção escolhida, o segundo não apresenta o funcionamento nutrir-se em quantidade adequada, sendo cerceada

15 Sen (2001) utiliza o termo entitlements, traduzido aqui como intitulamento. 16 Tradução literal de functioning (Sen, 2001).

39

esta possibilidade de desígnio. De pronto é possível deixar-se escapar pela sedução da renda como análise unidirecional neste exemplo. Poderia-se dizer que se ambos tivessem renda, se alimentariam adequadamente. Tal observação é ilusória, pois não complexifica a questão, deixando escapar recortes de tempo, lugar e suas condicionalidades inerentes.

Crespo e Gurovitz (2002) trazem um parágrafo sintético sobre esta leitura em termos da abordagem em capacidade:

A relação entre renda e capacidade é demasiadamente afetada pela idade da pessoa (necessidades específicas dos idosos e muito jovens), pelos papéis sexuais e sociais (por exemplo, as responsabilidades da maternidade e também as obrigações familiares determinadas culturalmente), pela localização (por exemplo, propensão a inundações ou secas, ou insegurança e violência em alguns bairros pobres e muito populosos), pelas condições epidemiológicas (por exemplo, doenças endêmicas em uma região) e por outras variações sobre as quais uma pessoa pode não ter controle ou ter um controle apenas limitado. (CRESPO e GUROVITZ, 2002, p.6)

Trazer o conceito pela sua função e não pela representação é um paradigma mais fluido em um princípio de realidade, quando se propõe constituir um olhar sem efeitos de comparação unidirecional. A mera transferência de renda nesta perspectiva, seria como confundir o fim com os meios. O conjunto capacitário de aquisição de renda para uma pessoa idosa ou com deficiência, por exemplo, é bastante limitado por esta condição o que afeta a forma como a mesma gere seus funcionamentos para garantir seu bem-estar. Da mesma forma como se deve ler a rede de proteção social que envolve e ampara o sujeito condicionado a estas situações.

Da estratificação deste conjunto capacitário e da transversalidade do mesmo para com outros panoramas de qualidade de vida em funcionamentos, emerge o conceito de pobreza multidimensional. Existe, portanto, um encadeamento de significações em diversas dimensões, percebidas no domínio de liberdades substantivas, que geram a compreensão das privações. A expansão da liberdade na perspectiva de Sen (2010) desempenha um duplo papel: o de fim primordial (substantivo) e o principal meio do desenvolvimento (instrumental).

As liberdades substantivas residem na capacidade de realização de diferentes funcionamentos e:

[...]incluem capacidades elementares como, por exemplo, ter condições de evitar privações como a fome, a subnutrição, a morbidez evitável e a morte prematura, bem como as liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política e liberdade de expressão, etc.. (SEN, 2000, p.52)

Nesta formulação o autor elenca cinco liberdades instrumentais que atuariam como oportunidades facilitadoras do desenvolvimento das liberdades substantivas: 1) liberdade política, associada aos direitos políticos e controle social; 2) facilidades econômicas, associada a possibilidade de utilizar recursos econômicos para trocas, produção e consumo; 3)

40

oportunidades sociais, associada a direitos sociais como garantias de acesso à educação, saúde, assistência e previdência social; 4) garantias de transparência; associadas ao acesso amplo à informação no intuito de estabelecer um sentimento de confiança entre sociedade e Estado; 5) segurança protetora, associada a uma rede/sistema de proteção social avançado e irrestrito, de forma a afiançar que as garantias sociais sejam cumpridas (SEN, 2000). As cinco dimensões são complementares e atuariam no sentido de ampliar o conjunto capacitário.

As privações em qualquer uma das cinco dimensões instrumentais limitariam as liberdades substantivas, ao impor um raio de ação restrito, para fora das oportunidades vislumbradas dentro de um sistema de proteção e bem-estar. Uma privação social pode inferir sob uma privação econômica por exemplo, no caso de uma pessoa que, vivendo em um regime autoritário, mesmo com renda e desejo de obter um bem, se priva desta possibilidade por imposição do Estado.

Ao compor sua teoria dentro destes dois planos de liberdade (substantiva e instrumental), Amartya Sen aponta para o indivíduo e coletividade em mutualidade. A abordagem em capacidades mescla apontamentos de percepção e condições oportunizadas numa perspectiva que não atua apenas no subjetivismo. Se partisse apenas das múltiplas concepções do que se considera bom (noção que se aproxima do que se entende como “Qualidade de Vida”) haveria incapacidade analítica com efeito de comparação interpessoal. Para tanto Sen (1993) parte de tais liberdades para pensar os meios, os processos-fim, que as pessoas e cada pessoa tem para atingir seus objetivos de satisfação e bem-estar.

A pauta desta teoria, como agenciamento entre as políticas sociais do Estado e privações relacionais, é constantemente avaliada em Sen (1981, 1983, 2000, 2001). Dentro de um sistema com cadeias de privações, no sentido de orientar um pensamento crítico sobre o efeito substancial de uma abordagem da pobreza para além da renda, o autor sinaliza a inoperância da comparação unidirecional monetária em relação ao aferimento de utilidade e bem-estar.

A abordagem multidimensional consegue aproximar os indivíduos de espaços de fala para compreender com maior clareza a complexidade dos sistemas de proteção sob os quais compartilham suas experiências. Apesar de reconhecidamente compor hoje o conhecimento expoente, reconhece-se que se confunde com outros conceitos interdisciplinares.

Nesta perspectiva se avista certa cumplicidade entre o conceito de pobreza multidimensional e outros egressos de observações sociais complexas como vulnerabilidade social (CASTEL, 2003; HOGAN & MARANDOLA, 2006; CODES, 2008; BRONZO, 2009),

41

bem-estar (SOARES, 2009), desigualdade social (SEN, 2001) e exclusão social (LAVINAS, 2003). Tal aproximação se dá por tratarem de temas aproximados em um formato circunstanciado, sistêmico e relacional, ora com abordagens mais ora menos político- ideológicas, da “questão social”.

Ressaltamos na primeira parada a importância de se executar um movimento que se constitua enquanto “[...] uma atitude epistemológica perante o discurso normal, comensurável, compreensível, e uma atitude hermenêutica perante o discurso anormal, incomensurável, incompreensível”. (SANTOS, 1989, p.10).

Percebe-se a dificuldade e as limitações constantes na composição de um conhecimento sobre o conceito pobreza, principalmente na acepção de pensar seu sentido. A impressão que fica ao final deste primeiro percurso é que se tem um conceito impossível, mas de extrema importância (SOARES, 2009) para o cenário político global.

Como síntese desse percurso epistemológico-histórico, temos o seguinte quadro:

Tabela 01: Síntese dos paradigmas de pobreza

Paradigma Escala Definição Abordagem Princípio

Absoluto Macroescalar

Top Down Subsistência Necessidades básicas Monetarista Quantum mínimo Relativo Multiescalar Privações relativas Monetarista relativa

(bens privados e bens públicos)

Relatividade interna Subjetivo Microescalar

Bottom Up Percepção subjetiva de satisfação Monetarista suficiência por Subjetivo Multidimensional Multiescalar Privação de Capacidades Multidimensional Relacional

Liberdades Substantivas e Instrumentais

Fonte: Elaboração própria

Por ora, assumimos a abordagem multidimensional como sendo um paradigma emergente em pobreza, conforme argumentado por Santos (1988), seguindo os seguintes princípios:

1) todo conhecimento científico-natural é científico-social; a complexificação do conceito de pobreza multidimensional deslocou a perspectiva unidirecional monetarista. Deixa de se pensá-la através como resultado de processos físicos e biológicos, para um pensamento estrutural com orientação para a produção humana em perspectiva de capacidades e liberdade.

42

multidimensional reconhece a influência multiescalar para compor um pensamento transnacional acerca do fenômeno.

3) todo conhecimento é autoconhecimento; a teoria é colocada na perspectiva da pós-modernidade por estar balizada pelo princípio da horizontalidade em relação ao tema para compor sua singularidade e registro intersubjetivo.

4) todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum: O objetivo da teoria se apoia na composição de estratégias mais capilarizadas e instrumentais para se pensar a pobreza localmente.

A pobreza enquanto questão global e transnacional exige uma constante atualização para evitar que se caia na racionalidade positivista produtora de conhecimentos disciplinares (LAVINAS, 2003). Na revisão bibliográfica e epistemológica realizada sobre o tema, tem predominado uma visão economicista da multidimensionalidade (VAZ, 2014). Como efeito a temática apresenta pouca profundidade, apontando para centralidade da renda em sua linha argumentativa e não para as capacidades individuais.

Enquanto paradigma emergente, a multidimensionalidade exige uma interdisciplinaridade para ser pensada. Considerar o caráter relacional de diversas dimensões (saúde, educação, padrão de vida, segurança, ambiente) envolve diálogo entre diversos saberes para a composição do problema, bem como para o subsequente enfrentamento (BRONZO, 2011).

A observação disciplinar da pobreza atua no plano teórico com uma visão marcada pela linearidade dos métodos e análises (CODES, 2008; LAVINAS 2002), enquanto no plano prático é tema recorrente em agendas políticas liberalizantes, através programas sociais da natureza compensatória no que toca às desigualdades (MONTAÑO, 2012).

A interdisciplinaridade daqui interessa-se mais pelo deslocamento destas perspectivas e não responderá às incertezas das ciências com verdades e completude. No seu lugar apresentará uma observação ampliada com orientação para a superação dos efeitos residuais contraindicados, visando sua operacionalização em políticas públicas.

1.2. Indicadores Sociais e Conhecimento Quantitativo: Obstáculos e Saídas para