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As garantias previdenciárias já não causavam o mesmo impacto de atenuar os movimentos sociais e seus discursos acerca da expansão do estado como agente de garantias de direitos. Movimentos populares organizados, com representação de trabalhadores e não trabalhadores, passam a se fortalecer nos anos 80, no sentido de garantir uma pauta mínima de demandas de proteção para problemas do cotidiano: água e esgoto, asfaltamento de vias e saúde (CARVALHO, 2002). As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)31, o Movimento dos Favelados e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), embora sem vinculação partidária, começam a articular com grupos políticos para uma mudança de regime com maior participação popular junto as deliberações públicas.

Tal cenário político32, somado à crise do petróleo e às finanças desorganizadas do Estado Autoritário, dá espaço ao Estado Democrático com discurso neoliberal no ano de 1986, após campanha para eleições diretas. Neste contexto, o marco regulatório de maior importância para o cenário econômico e político pós-redemocratização foi a promulgação da

30 Em Rocha (2008) é possível conferir a elevação dos gastos assistenciais do RMV de forma pormenorizada. Ao longo dos anos de 1975-1983, houve uma elevação de cerca 258,9% no número de beneficiários no recorte de tempo prescrito.

31 Sposati (1989) reforça o papel das CEBs como agentes de formação política de base marxista no período. Através das escolas elementares de participação política, o ideal de democracia foi levado a cerca de 80 mil núcleos de formação durante a década de 80.

32Considera-se de valia para a expansão dos direitos sociais no país, a participação sindical no processo de mobilização popular da CF 88. Através dos Comitês Pró-Participação Popular e pela eleição de uma minoria parlamentar ativa de origem trabalhadora, aquisições sociais foram incorporadas no artigo 7º da Lei, entre outros (OLIVEIRA & OLIVEIRA, 2011).

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Constituição Federal (CF) de 1988, apresentada como “cidadã” e “progressista” (SPOSATI, 1995; SILVA, 1997; MEDEIROS, 2001; PEREIRA, 2010; ROCHA, 2013).

Através dela, o Brasil passa a contar com uma série de direitos sociais, de caráter universal, conferindo ao país uma organização legítima de Estado Social de direitos. Na CF 88 encontra o tripé da seguridade social (art.º 194), composto pelas políticas de proteção e direito à saúde, assistência social e previdência social, tendo como objetivos a universalização dos direitos, a equidade e descentralização no financiamento, uniformidade, distributividade e seletividade na execução (BRASIL, 1998).

É de se ter claro que o Estado brasileiro se perfilou ao longo do tempo como um Estado assistencial, ainda que a Constituição de 1988 seja a pedra fundamental para um Estado-providência na medida em que introduziu a seguridade social (SPOSATI, 1995, p.15).

A seguridade social atesta a entrada do país em uma perspectiva integrada de cidadania universal (FLEURY, 1994).

[O Estado], através de uma ação governamental centralizada e unificada, procura garantir à totalidade dos cidadãos um mínimo vital em termos de renda, bens e serviços, voltada para um ideal de justiça social. [...]. Os benefícios são concedidos de acordo com as necessidades, como direitos universalizados em base a um piso mínimo, o que asseguraria um eficiente mecanismo de redistribuição da riqueza social e correção das desigualdades de mercado (FLEURY, 1994, p.110).

A saúde, como direito, é universal a todos brasileiros, enquanto a previdência social passa a ser restrita àqueles que contribuem para o sistema previdenciário. Por sua vez, a assistência social tem por objetivo atender “[...] a quem dela necessitar” (BRASIL, 1988, art.203), independente de contribuição, não se associando à pobreza monetária, mas à demanda de proteção social, no que se refere a garantias e direitos civis, políticos e sociais afiançados por lei.

Partindo desta premissa, esta política aponta objetivos claros:

I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (BRASIL, 1988, art. 203).

Reitera-se aqui, que o parágrafo V, retira o benefício RMV da Previdência Social e o aloca como responsabilidade da Política de Assistência Social e apresenta como mudança fundamental a duplicação de seu valor real (ROCHA, 2013).

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pública de proteção social não-contributiva. Nas palavras de Silva (2007, p. 1431), “isso permitiu que a Assistência Social passasse a ser considerada uma política de direito, procurando romper com a cultura do favor, fazendo de todos, mesmo os excluídos do mercado de trabalho, um cidadão brasileiro”.

Ainda sobre a institucionalização da Assistência Social, Sposati (2009) complementa:

A inclusão da assistência social na seguridade social foi uma decisão plenamente inovadora. Primeiro, por tratar esse campo como de conteúdo da política pública, de responsabilidade estatal, e não como uma nova ação, com atividades e atendimentos eventuais. Segundo, por desnaturalizar o princípio da subsidiariedade, pelo qual a ação da família e da sociedade antecedia a do Estado. O apoio a entidades sociais foi sempre o biombo relacional adotado pelo Estado para não quebrar a mediação da religiosidade posta pelo pacto Igreja-Estado. Terceiro, por introduzir um novo campo em que se efetivam os direitos sociais. (SPOSATI, 2009, p.14)

Em seu pleno entendimento, caberia à Assistência Social estruturar seus afazeres com maior autonomia, através de regulações compartilhadas pelas três esferas de governo, de modo a compor um sistema federativo capaz de atender aos direitos dos cidadãos sobre o prisma do conceito mais avançado de cidadania em Seguridade Social.

Com o novo status, a Assistência Social se integra ao lugar das políticas sociais continuadas. Abaixo segue quadro síntese com o histórico das políticas sociais no Brasil, na perspectiva assinalada até aqui:

Tabela 04: Histórico das Políticas Sociais no Brasil, conforme seu arranjo institucional e características de atuação

Arranjo Institucional

Até República Velha (1500 - 1929)

Era Vargas até D. Militar (1930-1986)

Redemocratização (1986- Proteção Social Assistencialista Seguro Social Seguridade Social

Denominações Residual Meritocrálico Institucional

Ideologia Liberal Corporativa Social-Democrata

Principio Caridade Solidariedade Justiça

Efeito Discriminação Manutenção Redistribuição

Status Desqualificação Privilégio Direito

Finanças Doações % Salário Orçamento público

Atuaria Fundo Acumulação Repartição

Cobertura Alvos Ocupacional Universal

Benefícios Bens/serviços Proporc. Salarial Mínimo Vital

Acesso Teste Meios Filiação Necessidade

Administração Filantrópico Corporativo Público

Cidadania¹ Invertida Regulada Universal

Fonte: Elaboração própria, concatenando as ideias de Fleury (1994, p.108) com o percurso histórico em Carvalho (2002) e Pereira (2002).

Nota: ¹ Cidadania invertida, regulada ou universal dizem de elementos analíticos historicamente construídos para dar conta de assinalar o que estava implícito nos aparatos institucionais dos sistemas de proteção ao longo do tempo. Contudo, estas três categorias não estão tão segmentadas. São categorias cumulativas fluidas, que

70 fazem parte de arranjos sociais particulares e distintos. Ainda hoje, apesar de viver num estado de garantia de direitos, existem pessoas que vivem se inserem nas políticas sociais pela via cidadania invertida ou regulada. Portanto não se trata de uma questão nominalista, mas de uma condição política complexa.

Mesmo após a promulgação da “Constituição Cidadã” (MEDEIRO, 2001; PEREIRA, 2010; ROCHA; 2008; 2013), que trazia consigo um artigo que demandava a organização da Seguridade Social, o Brasil não apresentava capacidade de execução de tais políticas. A Assistência Social acabou permanecendo de forma inoperante, devido ao arrocho econômico do período inicial da redemocratização.

Oliveira (1985, apud YAZBEK, 2006) sinaliza a existência de um Estado de Mal- Estar Social, tendo em vista o crescimento da desigualdade social que marcou a trajetória do país através das organizações políticas e favorecimento das elites nos processos de decisão políticos. Desde a década de 70, o quadro de desigualdade social no país segue dentro de uma “estabilidade inaceitável”, com Índice de Gini entre 0,50 e 0,60 (TAVARES & PAZELLO, 2006).

Ainda no trecho sobre o desenvolvimento das políticas sociais do Estado brasileiro, nos primeiros anos pós-Constituição, Yazbek (2006) sintetiza:

Urna primeira análise sobre a questão mostra que as políticas sociais no Brasil nascem e se desenvolvem na perspectiva de enfrentamento da “questão social”, permitindo, apenas, acesso discriminado a recursos e a serviços sociais. O caráter regulador de intervenção estatal no âmbito das relações sociais na sociedade brasileira vem dando o formato às políticas sociais no país: são políticas casuísticas, inoperantes, fragmentadas, superpostas, sem regras estáveis ou reconhecimento de direitos. (YAZBEK, 2006, p.36-37)

Ainda referente à política pública responsável por gerir o cuidado protetivo aos “necessitados”, assinala uma assistência social duplamente negada: por um lado ela reduziria as tensões entre as classes, traindo os interesses dos trabalhadores por amenizar o caos do sistema de acumulação, e por outro se resignava a ações paliativas e compensatórias sem institucionalidade e empoderamento político e profissional (SPOSATI, 1995).

Tinha-se assistência social no país (assegurada por lei), mas não havia Assistência Social (amparada pela institucionalização) no período. Uma política “sem lugar” para cuidar dos cidadãos também “sem lugar”.