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EPIGRAFIA E SOCIEDADE

Terminus post quem proposto: segunda metade do séc I d.C Terminus ante quem proposto: finais do séc I d.C.

EPIGRAFIA E SOCIEDADE

Considerando as características tipológicas e textuais das placas funerárias provenientes da Rouca, bem como o contexto regional em que se encontraria integrada a necrópole e a respectiva diacronia de utilização, não podemos deixar de assinalar uma identificação com a epigrafia funerária romana do actual território de Elvas e, uma vez mais, com o universo cultural das populações que habitaram aquela região durante a época romana. Da análise das distintas zonas definidas por Encarnação para caracterizar a “primeira idade da epigrafia romana na Lusitânia ocidental” (1998, p. 73), resulta evidente a existência de certos regionalismos no uso preferencial de determinadas tipologias de monumentos funerários, associados a populações com diferentes graus de romanização. De acordo com este autor (ENCARNAÇÃO, 1995, p. 261), o termo do actual concelho de Elvas distinguiu-se, ao longo do século I d.C., pelo uso da placa moldurada, feita em mármore, como monumento funerário predominante. A escolha da matéria-prima terá resultado naturalmente da abundância de mármores na região, e o tipo de monumento adoptado aparece, de um modo geral, associado a uma população de onomástica latina, plenamente romanizada ou em vias de romanização (de que são exemplos IRCP 579, IRCP 451, ou IRCP 594). A este nível é evidente que “independentemente dos factores sócio-culturais, a existência de determinado material terá influenciado também a escolha do tipo de monumento predominante em cada zona” (ENCARNAÇÃO, 1984, p. 843). À semelhança do que sucede no caso da placa epigrafada da Rouca, a estrutura textual dos epitáfios caracteriza-se pela simplicidade e é, grosso modo, composta pelo nome do defunto (em nominativo ou dativo), a idade, e a fórmula H. S. E. (por vezes associada a S. T. T. L.), seguidos do nome do dedicante e respectivo grau de parentesco, e a fórmula final F(aciendum) C(uravit) ou P(onendum) C(uravit). Atente-se para a comum ausência da consagração aos Deuses Manes, aspecto que facilmente se explica se considerarmos que se estima em cerca de 50% a percentagem de monumentos funerários datáveis do século I d.C. identificados nesta área do Nordeste Alentejano. Falamos pois, de uma epigrafia que, apesar de proveniente de villae, acusa claras influências de um ambiente urbano – a precoce e intensa colonização desta zona durante a ocupação romana terá ditado a consequente e quase inevitável recriação dos monumentos funerários familiares à população imigrante (ENCARNAÇÃO, 1995, p. 261).

No que respeita ao aspecto onomástico da epigrafia funerária destas áreas (e pensando especificamente na proximidade geográfica entre os territórios dos actuais concelhos do Alandroal e Redondo), convém notar a frequência do nomen Iulius, também representado na placa epigrafada da Rouca (E 6338 MNA), e

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frequente em contextos recém-romanizados. A partir da análise da antroponímia presente na epigrafia funerária romana do actual Nordeste Alentejano é possível constatar que, à medida que se avança de Sul para Norte, isto é do termo de Elvas para a zona de Marvão e Nisa, a antroponímia indígena assume crescente representatividade no quadro geral da onomástica. Esta constatação vai ao encontro dos dados relativos ao conjunto do Nordeste Alentejano, apresentados por Encarnação (1985, p. 167), de acordo com os quais cerca de 46,5% dos antropónimos correspondem a antropónimos indígenas e latinos em contexto indígena, valor este que ascende para 85, 6% se limitarmos a escala de análise ao conjunto epigráfico da área de Marvão. De acordo com V. Mantas, os valores apresentados não nos colocam perante “uma ilha de lusitanidade onomástica” (2000, p. 399), uma vez que, excluindo-se da amostra de cálculo da média do Nordeste Alentejano as epígrafes da zona de Elvas (apresentam uma média de 51% de antropónimos latinos, revelando assim uma acentuada latinização onomástica), o conjunto de antropónimos indígenas e latinos em contexto indígena perfaz um total de cerca de 62%, verificando-se consequentemente um maior equilíbrio entre a média regional e a de Marvão.

Na verdade, duas influências parecem manifestar-se na onomástica da região do Nordeste Alentejano à época romana, retratando assim o panorama sócio-cultural vigente – por um lado, a influência lusitana ou pré-romana, vinda de Norte; por outro, a influência latina, oriunda do Sul (territorium de Ebora Liberalitas Iulia) e de Este (territorium de Augusta Emerita). Relativamente à primeira, que moldou a identidade onomástica das comunidades na zona junto ao Tejo, duas hipóteses se colocam. Para explicar a grande concentração de antropónimos lusitanos de um lado e outro do antigo Tagus, Alarcão (1985, p. 100) invoca um passo de Estrabão (III, 1, 6) no qual se refere o estabelecimento de Lusitanos na margem esquerda do referido rio, possivelmente após a vitória de Decimus Iunius Brutus sobre Lusitanos e Galaicos em 137 a.C.. De acordo com este autor estaria assim explicada a semelhança do horizonte cultural a Norte e Sul do Tejo e a constatada «lusitanidade» da onomástica local. Por sua vez, Mantas (2000, p. 400) acrescenta uma outra hipótese, baseando-se nos limites entre Celtici e Lusitani apresentados na Geografia de Ptolomeu, segundo os quais a região do actual Alto Alentejo poderia integrar o território dos Lusitanos. Segundo este autor “o limite meridional dos Lusitanos parte do Cabo Espichel (Promontorium Barbaricum), corre ao norte de Caetobriga e de Salacia, englobando o território de Ebora e prosseguindo para o Guadiana (Anas) em direcção a Nertobriga (Frejenal de la Sierra), que Apiano refere como povoação lusitana” (MANTAS, 2000, p. 400). Por sua vez, o achado (no actual concelho de Arronches) e recente estudo de uma epígrafe votiva redigida em língua lusitana, parece ter vindo, não só clarificar (juntamente com as restantes quatro inscrições conhecidas em língua lusitana) os limites da “presença de onomástica „lusitana‟ no Nordeste Alentejano – Lamas de Moledo a ocidente, Cabeço das Fráguas a norte, Arroyo de la Luz a oriente e Arronches a sul” (ENCARNAÇÃO ET AL., 2008, p. 101), mas também reforçar a ideia cada vez mais evidente da persistência do fundo cultural indígena entre as comunidades que habitaram esta região do território actualmente português à época romana. Relativamente à segunda influência, e tendo particular atenção ao posicionamento geográfico do sítio da Rouca, devemos considerar, por um lado, a expansão para Norte de população proveniente do território de Ebora Liberalitas Iulia, e por outro, a colonização a partir de Augusta Emerita. De facto, a capital da

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Lusitânia assumiu-se como nevrálgico centro político-administrativo e económico, simultaneamente pólo de atracção e difusão de populações. No que respeita a Ebora, esta importante cidade de direito latino sob o domínio romano, forneceu um expressivo número de gentilícios itálicos, apontando no sentido da sua ocupação por ramos de algumas conhecidas famílias romanas, como por exemplo Calpurnia ou Catinia. Ambas as cidades controlariam um vasto territorium, marcado pelo desenvolvimento e prosperidade da actividade agrícola (no caso de Emerita, destaque-se a instalação de veteranos das legiões V e X no seu ager), e por um elevado grau de romanização, ao qual não terão ficado indiferentes as populações que habitaram à época o Nordeste Alentejano. Neste âmbito atente-se ainda que, se tomarmos como referência as áreas antroponímicas definidas por Untermann para agrupar o substrato indígena peninsular (1965, p. 19), se verifica que para o estudo da região do Nordeste Alentejano importará considerar fundamentalmente a área II (integra, grosso modo, a parte oriental e setentrional da província da Lusitânia), não descurando contudo a permeabilidade das fronteiras definidas e eventuais relações com a área I (Sudoeste Lusitano). Segundo G. Churruca & Vallejo Ruiz (2003, p. 360), em termos de representatividade da onomástica indígena, desde logo, e à luz dos dados conhecidos, é possível diferenciar as duas áreas referidas: a área II, que engloba território dos conventus Emeritensis e Scallabitanus, e é bastante rica em onomástica pré-romana; e a área I de Untermann, em boa medida coincidente com a divisão administrativa do conventus Pacensis, e que revela relativa escassez de nomes indígenas, fenómeno que os autores atribuem a uma intensa e precoce romanização.

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V. 2. ESPAÇO FUNERÁRIO DA ROUCA: LIMITES CRONOLÓGICOS

Na respectiva Ficha de Sítio da Base de Dados Endovélico (IGESPAR), o sítio arqueológico da Rouca é descrito como “necrópole onde foram recolhidos diversos materiais romanos”, sendo-lhe no entanto atribuída uma cronologia do período Romano/ Idade do Ferro. Apesar das numerosas evidências de ocupação proto-histórica documentadas na área do actual concelho do Alandroal (CALADO, 1993), nada nos permite, em função dos resultados do presente estudo, confirmar uma eventual ocupação da Idade do Ferro para o sítio arqueológico em questão.

A ausência de registos documentais referentes à escavação da necrópole da Rouca, e o decorrente desconhecimento de quaisquer dados ou interpretações de índole estratigráfica, condicionaram a nossa abordagem e implicaram que as datações propostas para o espólio e sepulturas deste espaço funerário se baseassem, exclusivamente, na identificação de eventuais paralelos e na associação de materiais atribuídos ao mesmo contexto de achado. Assim, dos 29 conjuntos estudados, somente 21 se revelaram potencialmente datáveis em função dos materiais disponíveis, e da análise destes resultou a constatação de uma evidente descontinuidade nos conjuntos, e a aparente distinção de dois momentos fundamentais de utilização da necrópole: um primeiro momento compreendido, grosso modo, entre a segunda metade do séc. I d.C. e os inícios/meados do séc. II (documentado por cerca de 15 dos conjuntos funerários estudados), e um momento posterior datável da primeira metade do séc. III d.C., e eventualmente meados do séc. IV. Em relação a este último, o nosso desconhecimento de registos documentais sobre a escavação não nos permite avaliar até que ponto a presença de sigillata clara em três dos conjuntos funerários estudados (sepulturas 6, 30 e 34) é apenas reflexo de contextos de sepultura mais tardios num único espaço funerário estruturado ao longo de um largo e continuado período de utilização (desde a segunda metade do séc. I d.C. até ao séc. III/IV) ou, pelo contrário, é sinónimo de uma distinta realidade arqueológica – uma nova e diferente fase de enterramentos no espaço funerário da Rouca, com limites temporais (e eventualmente espaciais) distintos de um conjunto de enterramentos mais antigos, datáveis de meados do séc. I – séc. II d.C.. Os conjuntos estudados parecem deixar antever uma fase sem registo de deposições, ainda que o espólio atribuído às sepulturas 3 e 32 (datável do séc. II d.C., e da primeira metade do séc. I a meados do séc. III d.C., respectivamente) nos possa sugerir também a possibilidade de uma longa continuidade na utilização da necrópole. Assim, se por um lado, os contextos funerários mais antigos documentados na Rouca parecem corresponder às sepulturas 17 e 29, cujo espólio aponta para cronologias da segunda metade do séc. I d.C.; por outro, o facto de se tratar de uma necrópole de incineração (VASCONCELLOS, 1913, III, p. 370) leva-nos a considerar um terminus ante quem anterior ao séc. IV d.C., encontrando-se a sua utilização durante o séc. III d.C. devidamente atestada pelo achado de sigillata clara A e C.

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VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ausência de fontes documentais sobre a escavação do sítio da Rouca limitou o nosso conhecimento sobre a necrópole, ocultando ao nosso olhar a multiplicidade de variáveis que deram corpo (físico, social, conceptual e simbólico) àquela realidade arqueológica. À luz dos dados disponíveis, mais não pudemos fazer do que ponderar e apresentar um conjunto de hipóteses que, fundamentadas nos paralelos conhecidos (e em especial nos estudos sobre as necrópoles alto-alentejanas), se afiguraram passíveis de nos aproximarem daquilo que poderá ter sido a realidade arqueológica desta necrópole.

Assim, da análise dos conjuntos funerários da Rouca parecem ter resultado duas percepções fundamentais – por um lado, o âmbito cronológico de utilização da necrópole, e, por outro, uma aproximação ao conhecimento sobre a(s) comunidade(s) que terá utilizado este espaço funerário. Em primeiro lugar, e apesar dos condicionalismos inerentes à ausência de dados sobre o processo de escavação e recolha dos materiais, contextos estratigráficos, e real diacronia de constituição e utilização da necrópole, o estudo dos materiais disponíveis permitiu documentar uma utilização daquele espaço funerário entre a segunda metade do séc. I d.C. e a primeira metade do séc. III ou IV. A assinalável descontinuidade evidenciada pelo espólio dos conjuntos funerários sugere a possibilidade de existirem momentos distintos de enterramentos na Rouca, aparentemente entremeados por uma fase sem registo de deposições, ainda que possa também ser defensável uma longa continuidade na utilização da necrópole. Em segundo lugar, e atendendo às características do espólio disponível, resulta inegável um elevado grau de assimilação dos comportamentos e hábitos culturais romanos por parte da comunidade que terá utilizado o espaço funerário da Rouca, realidade à qual certamente não terá sido alheia a proximidade com a então capital de província Augusta Emerita. Esta assimilação está bem patente na cultura material e nos hábitos epigráficos desta população, testemunhos privilegiados de um contexto de plena romanização, ainda que indelevelmente marcado pela perenidade do substrato indígena.

Terminamos o presente estudo, acima de tudo, com a consciência das questões que ficaram em aberto, do quanto ficou por conhecer em relação à necrópole da Rouca, e é nesse sentido que nos revemos nas palavras de Abel Viana – “não acreditamos que no Alto Alentejo somente se tenha de considerar o que se sabe através das explorações de António Dias de Deus, feitas a sós ou connosco, pois, certamente, muito há ali por descobrir, e muitíssimo mais tem de ser o que se perdeu e o que, por falta de vigilância e de providências razoáveis, se continua a perder” (VIANA, 1960-61, p. 22). Fica pois a nossa homenagem a estes estudiosos e a José Leite de Vasconcellos, pelo espírito pioneiro com que se empenharam em conhecer e documentar a realidade arqueológica nacional, e em particular alto-alentejana; mas fica também um alerta para a necessidade de olharmos para as colecções que «teimam» em permanecer esquecidas nas reservas das instituições museológicas, e de trazermos à luz do presente as potencialidades que encerram enquanto ainda é possível resgatá-las aos efeitos inexoráveis da passagem do tempo.

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VOLUME I – ANEXOS 1 E 2

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ANEXO 1

SIGLAS E ABREVIATURAS

Alt.: altura Cont.: contentor D.: diâmetro Drag.: Draggendorf

IRCP: Inscrições romanas do Conventus Pacensis (ENCARNAÇÃO, 1984b) Col. MNA 0156: Colecção 0156 do Museu Nacional de Arqueologia MNA: Museu Nacional de Arqueologia

Nº Inv. MNA: número de inventário das peças de acordo com o Inventário Geral do Museu Nacional de Arqueologia JLV: José Leite de Vasconcellos

Sep.: sepultura Vol.: volume

CRÉDITOS

AUTORIA DOS DESENHOS MANUAIS: Clareana Marques

Mafalda Dias Mónica Rolo

AUTORIA DOS DESENHOS FINAIS: Diogo Oliveira

Mónica Rolo Tânia Dinis

TRATAMENTO GRÁFICO DAS ESTAMPAS: Diogo Oliveira

FOTOGRAFIAS:

Pote com nº de Inv. Geral (MNA) 15 623: Departamento de Inventário MNA Taça com nº de Inv. Geral (MNA) 15 661: Departamento de Inventário MNA

Anel de sinete com nº de Inv. Geral (MNA) 15 817b: Departamento de Inventário MNA Brinco de correr com nº Inv. Au 129 MNA: Departamento de Inventário MNA

Placa Funerária epigrafada com nº Inv. E 6338 MNA: Departamento de Inventário MNA Placa Funerária epigrafada com nº Inv. E 6339 MNA: Departamento de Inventário MNA

Foto de vitrine neo-manuelina com peças da necrópole da Rouca, constante do Álbum de Fotos para o Congresso Arqueológico de Roma (1912): Arquivo Fotográfico MNA

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DOCUMENTAÇÃO E FONTES

CARTOGRAFIA:

Carta Militar de Portugal (C.M.P.), 1: 25 000, Folha 441 – Juromenha (Alandroal), 1970. Carta Militar de Portugal (C.M.P.), 1: 25 000, Folha 440 – Alandroal, 1970.

Carta dos Solos de Portugal, 1: 50 000, Folha 37-C – Juromenha, 1965.

Carta de Capacidade de Uso dos Solos, 1: 50 000, Folha 37-C – Juromenha, 1965. Carta Geológica de Portugal, 1: 50 000, Folha 37-C – Juromenha, 1974.

Carta Mineira de Portugal, 1: 250 000.

ACERVO DOCUMENTAL DO MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA: