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2. O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

2.7. A reserva do possível

2.7.1. Crítica à reserva do possível

2.7.1.1. Escassez de recursos e escolhas trágicas

O argumento da escassez de recursos, tal como é utilizado nas discussões sobre a judicialização da saúde, pode conduzir a uma forma de raciocínio fundado na análise de custo-benefício tendente a afastar a proteção dos direitos fundamentais sociais com base na utilidade geral do orçamento público.270 Essa análise tenta maximizar os resultados sociais decorrentes da utilização de recursos sociais finitos porém, ela provoca três efeitos indesejáveis: i) Ela reduz a questão da ponderação de valores a uma simples questão de maximização monetária dos recursos finitos em atividades que produzam mais resultados sociais. Isso pode levar a conclusões equivocadas especialmente porque muitas vezes os valores não podem ser expressos em uma objetividade monetária, uma vez que possuem valor social intangível); ii) a análise mede o nível de proteção a ser conferido a determinado direito fundamental com base nas consequências advindas de sua proteção. Isso faz com que a garantia de um direito seja avaliada por seus efeitos e não pelo valor em si; iii) Ela desvaloriza de modo geral os direitos fundamentais individuais e privilegia as razões públicas e de Estado. Quem estabelece o que é o interesse da maioria é o Estado. Isso acaba por privilegiar uma noção consequencialista dos direitos fundamentais, em detrimento de uma proteção geral ao verdadeiro destinatário: os indivíduos.271

É verdade que a ideia da escassez traz em si o problema da escolha “do que atender e do que não atender”, na medida em que o emprego dos recursos para um dado fim significa não investi-lo em outros. Isso é um fato verdadeiro quando pensamos nas escolhas do orçamento da saúde. Porém, muitas vezes, a simples transposição desse raciocínio para a área da saúde sem o conhecimento da epidemiologia e do funcionamento do SUS, pode levar a conclusões equivocadas porque não leva em conta os níveis de atenção (básica, média e alta complexidade) e nem a lógica do sistema de saúde.

Isso pode ser constatado, por exemplo, quando Gustavo Amaral e Danielle Melo, afirmam que: “Decidir atender dada pessoa com um órgão para transplante é também decidir não atender todos os demais que poderiam ser beneficiados com aquele órgão específico”.272

270 STONE, Geoffrey R. Individual Rights and Majoritarianism: The Supreme Court in Transition. Cato Policy

Analysis, n. 51, March 29, 1985. Disponível em: <https://store.cato.org/pubs/pas/pa051.html>. Acesso em:

28 out. 2011.

271 CALIENDO, Paulo. Reserva do possível, direitos fundamentais e tributação. In: SARLET, Ingo Wolfgang;

TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 182-183.

272 AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle. Há direitos acima dos orçamentos? In: SARLET, Ingo; TIMM,

Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 92.

Em primeiro lugar, não estamos aqui diante de um serviço ou ação de saúde cujo acesso deva ser garantido a todas as pessoas, mas somente àqueles que dele necessitam. Em segundo lugar, atender a um transplantado não significa a exclusão do outro, uma vez que nem todos os que esperam um transplante teriam compatibilidade sanguínea com o órgão disponível para transplante. Em terceiro lugar, o fato de ter a mesma doença não significa obrigatoriamente que ambos os pacientes tenham a mesma urgência em receber o transplante. Em quarto lugar, não estamos falando aqui de um insumo que pode ser adquirido no mercado ou que dependa da opção política de dotação de verbas no orçamento, não sendo comparável às escolhas políticas realizadas na elaboração do orçamento. Por fim, ainda que admitíssemos que ambos os pacientes tivessem compatibilidade e a mesma necessidade, então, o desempate seria feito pelo critério de antecedência na lista de espera por transplante, o que não deixa de ser um critério democrático de escolha.

Enfim, o que se quer aqui combater é a utilização do exemplo acima mencionado como argumento de que a escassez de recursos (de órgãos para transplante) é um limite à concretização do direito à saúde, da mesma maneira como a falta de recursos financeiros seria um limite para a concretização dos direitos sociais. Não podemos equiparar órgãos transplantáveis a dinheiro alocado em orçamento, e tampouco podemos igualar as escolhas políticas orçamentárias para alocar recursos financeiros em várias áreas como saúde, educação, habitação e outros itens, com a escolha de transplantar o órgão neste e não naquele paciente.

O número de órgãos disponíveis para transplante é uma grandeza sobre a qual o Estado não detém o controle. No máximo o que se pode fazer é uma campanha política para a sensibilização do cidadão no sentido de deixar autorizado o transplante de seus órgãos após a morte. No entanto, com relação ao orçamento, o Estado tem o poder de alocar os recursos e escolher para que áreas pretende encaminhá-los.As situações são tão diversas que não servem como termo de comparação para a reflexão sobre a escassez de recursos, as escolhas trágicas, e para a argumentação com base na teoria da reserva do possível.

A escusa do Poder Público de que o direito à saúde é apenas um direito prima

facie sujeito à existência de condições fáticas (recursos financeiros, infraestrutura material e

recursos humanos) e jurídicas (previsão das despesas com saúde no orçamento – lei orçamentária) desvia o foco da questão principal, que é a ausência de políticas de saúde, e causa um círculo vicioso e um raciocínio tautológico que pode ser constatado quando discutimos sobre a ausência de leitos hospitalares.

As alegações nos colocam diante de um típico entinema: “A falta de leitos hospitalares deve-se à falta de recursos financeiros, logo, havendo recursos e lei orçamentária, teremos leitos hospitalares”. Isso é uma verdadeira ilusão porque, em primeiro lugar, a correlação entre leitos hospitalares e recursos financeiros é uma relação necessária, mas não suficiente, na medida em que não basta existirem recursos para o fornecimento de leitos. Em segundo lugar, é preciso também que a política de saúde seja feita no sentido de ampliar o número de hospitais públicos. Se os recursos existentes estão sendo sempre empregados em outros itens do orçamento, o que não existe é a opção política de sua destinação para esse fim. E a alegação de falta de recursos para a construção de hospitais perpetuar-se-á como escusa para a não concretização do direito, enquanto existir a opção política de não utilizá-los para esse fim.

Por outro lado, se a opção política de construir hospitais é ato discricionário do Executivo, então o problema principal não é a falta de recursos financeiros e de previsão orçamentária, mas a falta de vontade de investir recursos na área. Ou seja, existem recursos (ainda que limitados) para o aumento de leitos, mas eles não são empregados para este fim. Por isso, antes de se concluir pela impossibilidade de efetivação do direito a um leito de UTI por falta de recursos físicos e financeiros, é preciso aprofundar a análise de qual política está sendo efetivada e como estão sendo gastos os recursos existentes. Ou ainda, se o gestor não está deixando de utilizar recursos das dotações orçamentárias com “a consequência de deixar no limbo uma parcela da receita pública” como muitas vezes ocorre por ineficiência na gestão do sistema.273