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1. O CONCEITO DE SAÚDE

1.7. Saúde e meio-ambiente

O movimento ambientalista ganhou força nos anos sessenta com o livro de Rachel Louise Carson Silent Spring, sobre os impactos do uso do DDT na cadeia alimentar, um trabalho que fazia uma crítica ao setor produtivo e com a fundação do Clube de Roma, em

109 SPERANDIO, Ana Maria Girotti. Caminho para a construção coletiva de ambientes saudáveis. São Paulo -

Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 643-654, 2004. p. 652.

110 MENDES, Rosilda; BÓGUS, Claudia Maria; AKERMAN, Marco. Agendas urbanas intersetoriais em quatro

1968, resultando no relatório “Limites do Crescimento”, que lançava dúvidas sobre a sustentabilidade econômica.111

Em 1972, ocorreu a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio-Ambiente em Estocolmo.112 Em 1987, a Comissão Mundial sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento lançou o termo “desenvolvimento sustentável” no relatório “Nosso Futuro Comum”, também chamado de “Relatório Brundtland”.113 Em 1992, ocorreu a Conferência das Nações Unidas sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento – a Rio 92114 – visando estabelecer um programa de ações em defesa da sustentabilidade socioambiental. Em 2002, a Rio+10 em Johanesburgo, tentou definir meios, metas e prazos para a implantação dos planos de sustentabilidade definidos na “Rio 92”. Desde então o tema da crise ambiental já se estabelecera em nível mundial, sendo que o problema climático passou a ter papel de destaque a partir de 2002. Os desequilíbrios ecológicos passaram a ser analisados como vetores potencializadores de doenças e problemas sociais.

A evolução das cidades rumo ao desenvolvimento equilibrado, saudável e sólido exige da gestão municipal resultados positivos e constantes na dimensão ambiental. Os programas de governo devem buscar o objetivo de preservar os recursos ambientais para as próximas gerações e conservar a biodiversidade e os sistemas de suporte à vida humana. A gestão pública deve, portanto, encarar o ecossistema como uma das prioridades da política.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, em termos globais, cerca de 23% das mortes prematuras podem ser atribuídas a fatores ambientais como poluição do ar, da água e exposição a substâncias químicas.115 Com relação às crianças, encontram-se dentre as mortes os casos de envenenamento, infecções respiratórias, a diarreia e a malária.116

111 MEADOWS, Donella H.; MEADOWS, Dennis L.; RONDERS, Jorgen. Limites do crescimento: um relatório

para o projeto do Clube de Roma sobre um dilema da humanidade. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1978.

112 NATIONS UNIS. Programme des Nations Unis pour l`environment (UNEP). Déclaration finale de la

Conferénce des nations Unies sur l`environment. Disponível em:

<http://www.unep.org/documents.multilingual/default.asp?documentid=97&articleid=1503&l=fr>. Acesso em: 20 jul.2011.

113 UNITED NATIONS. Our common future. Genebra: 1987 (Report of the World Commission on Environment

and Development. Disponível em: <http://www.un-documents.net/wced-ocf.htm>. Acesso em: 20 jul. 2011.

114 UNITED NATIONS. Rio declaration on environment and development. Disponível em:

<http://www.un.org/documents/ga/conf151/aconf15126-1annex1.htm>. Acesso em: 10 jul. 2011.

115 WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Preventing disease through healthy environments: towards

an estimate of the environmental burden of disease. Genebra, 2006. Diponível em: <http://www.who.int/quantifying_ehimpacts/publications/preventingdisease/en/index.html >. Acesso em: 10 jul. 2011.

116 ENVIRONMENTAL PROTECTION AGENCY (EPA). Environment, health, and a focus on children, office

of children`s protection and environmental education. Disponível em:

<http://yosemite.epa.gov/ochp/ochpweb.nsf/content/2008_highlights.htm/$file/OCHP_2008_Highlights_508.

A degradação ambiental, quer seja pelo aumento da população quer pelo aumento dos níveis de pobreza ou de consumo, tem como consequências a deterioração dos ecossistemas, estabilidade geopolítica e segurança econômica.117

Apenas para exemplificar a importância da relação entre meio-ambiente e saúde, faremos referência a dois problemas que têm grande impacto em nossa sociedade atual: as mudanças climáticas e o efeito das radiações não ionizantes nas metrópoles.

Ulisses E.C. Confalonieri e Diana P. Marinho mostram o impacto da mudança climática em algumas regiões do Brasil em relação à ocorrência de doenças infecciosas e parasitárias.118 Ao estudar uma série histórica de casos de leptospirose em um município rural do Rio Grande do Norte e comparar a incidência dos casos com os índices de precipitação pluviométrica, os autores constataram que, nos anos em que ocorreram desvios positivos de precipitação, o número de casos aumentou em relação à media histórica. Os surtos da doença, cujo agente etiológico é veiculado pela água, estavam diretamente relacionados aos períodos de maior precipitação pluviométrica.

Da mesma maneira, verificou-se na região do Alto Solimões (Amazonas) uma estreita relação entre o regime de chuvas e a ocorrência de casos de cólera na área rural, na época da introdução desse agente bacteriano no Brasil, através da fronteira com o Peru, no início dos anos noventa. Aqui, ao contrário, os casos aumentavam durante os curtos períodos sem chuva, época na qual a população utilizava a água contaminada (pela ausência de esgoto sanitário) coletada na margem do rio. Já na época das chuvas, os casos da doença diminuíam, uma vez que, por causa do fluxo rápido e do alto volume do Rio Solimões, a concentração de vibriões coléricos presente na água acabava por ser diluída.

Analisando esses e outros casos de epidemias, os autores trazem à discussão a questão da vulnerabilidade de indivíduos e grupos sociais aos efeitos do clima e fazem referência a um modelo conceitual de vulnerabilidade do tipo “exposição-resposta” desenvolvido por geógrafos preocupados com o impacto de secas prolongadas.119 Assim, a

117 UNITED NATIONS. (UNEP) UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Perspectivas del

medio ambiente mundial GEO4: medio ambiente para el desarrollo. Nairobi, 2007. Disponível em:

<http://www.unep.org/geo/geo4.asp >. Acesso em: 10 jul. 2010.

118 CONFALONIERI, Ulisses E. C.; MARINHO, Diana P. Mudança climática global e saúde: perspectivas para

o Brasil. Multiciência, Campinas, n. 8, p. 48-64, maio 2007.

119 Este modelo admite a existência de fatores tanto estruturais como conjunturais, determinantes de

vulnerabilidade, em dois níveis básicos: determinantes imediatos e determinantes primários. Estes últimos, que incluem renda, cultura, educação e poder político, condicionam os determinantes de ordem mais imediata. Os determinantes imediatos, que incluem desde fatores individuais (capacidade física, idade, etc.), institucionais (serviços de saúde, defesa civil, etc.) e geográficos (local de moradia, topografia, etc.), são os que condicionam a exposição de indivíduos e comunidades a perigos ambientais e também as suas

seca afeta a população rural: perda da colheita que leva à falta de alimentos com o aumento da má nutrição infantil. Da mesma maneira, a seca leva à falta de água e à higiene deficiente com o consequente aumento da mortalidade infantil devido à diarreia. Por outro lado, a falta de assistência governamental à população durante a seca leva à migração com a consequente expansão da leishmaniose visceral nas cidades.

Como se percebe, a ocorrência de agravos à saúde determinados pela exposição aos eventos climáticos nas populações examinadas aponta para uma situação de vulnerabilidade que precisa ser entendida para ser combatida e confirma a estreita relação entre saúde e meio-ambiente.

A polêmica sobre a possibilidade de danos das radiações não ionizantes de baixa frequência, a existência de normas legais e decisões jurisprudenciais estrangeiras em tema de proteção à saúde da população, o tratamento da questão existente no Brasil, e a utilidade do princípio da precaução nos casos em que são alguns dos temas analisados no trabalho de Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux e Fernando Netto Boiteux.120

Os autores apontam que a exposição de pessoas a campos eletromagnéticos de frequências extremamente baixas ocorre em decorrência da geração, transmissão e utilização de energia elétrica. Como a distribuição da energia é feita a partir de estações geradoras até os núcleos urbanos, através de linhas de transmissão de alta voltagem, para que a energia chegue até as linhas de distribuição das residências, a voltagem precisa ser reduzida através de transformadores localizados nas Estações de Transformação e Distribuição (ETDs). Tanto as linhas de transmissão quanto a operação das estações provocam um aumento de indução magnética e consequentemente um aumento do campo magnético, que gera um fluxo de corrente circulando em todo o corpo.121

A radiação de baixa frequência (existente nas linhas de transmissão de energia elétrica) desencadeia impulsos nas células nervosas que podem provocar contração involuntária de membros ou músculos. Essas contrações podem variar de um simples desconforto até a parada do músculo cardíaco. A Comissão Internacional de Proteção das Radiações não ionizantes (ICNIRP) até reconhece que esses efeitos podem ocorrer em

capacidades de resposta. CONFALONIERI, Ulisses E. C.; MARINHO, Diana P. Mudança climática global e saúde: perspectivas para o Brasil. Multiciência, Campinas, n. 8, p. 57-58, maio 2007.

120 BOITEUX, Elza Antonia Pereira Cunha; BOITEUX, Fernando Netto. Poluição eletromagnética e meio

ambiente. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.

exposições acima dos níveis por ela recomendados (1 Hz a 10 Hz),122 mas nega terminantemente a existência de relação entre a radiação eletromagnética e o câncer.

Ocorre que os níveis apresentados como seguros pela ICNIRP somente se referem aos efeitos da exposição de curto prazo sobre o sistema nervoso (contrações musculares involuntárias) das pessoas expostas.123 E os estudos que apontam a relação causal entre o câncer e os campos magnéticos são de pessoas sujeitas à exposição prolongada à radiação não ionizante de baixa frequência. O que torna inadequado o nível de exposição de cem microtesla (100 µT) fixado como seguro pela ICNIRP, e perigosa a sua aceitação como parâmetro de prevenção de danos.

A partir de 2001, a ICNIRP, apesar de manter a sua posição anterior, passou a admitir que algumas pesquisas tenham demonstrado a correlação entre o câncer e a exposição de crianças à radiação superior a quatro décimos de microtesla (0,4 µT), porém alega que isso ocorreu em apenas 0,8% de todas as crianças expostas a esse nível (sem deixar claro qual foi a amostragem).

Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux e Fernando Netto Boiteux citam dois trabalhos importantes em relação ao tema. O primeiro deles realizado por A. Ahlbom, do Instituto Karolinska, que, examinando 3.203 crianças, encontrou um aumento significativo da incidência de leucemia naquelas que residiam em casas cujo nível de exposição à radiação era maior que quatro décimos de microtesla (0,4 µT). E o segundo, realizado por Gerard Draper, que num universo de 29.081 crianças com câncer (sendo 9000 com leucemia), revelou o incremento percentual da incidência de câncer nas crianças que se encontravam em uma distância de até 200 metros em relação às linhas de transmissão.124

Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux e Fernando Netto Boiteux reconhecem que “o estado atual da ciência revela controvérsia sobre os efeitos da radiação eletromagnética de baixa frequência, mas já permite afirmar que a possibilidade de danos não é meramente hipotética. O dano à saúde já deixou de ser considerado um evento aleatório, passando a ser examinado como um risco para a população”.125 A partir dessa constatação, os autores afirmam não ser mais sustentável a aceitação de danos que podem ser irreparáveis e clamam por uma nova postura ética das empresas. Nesse sentido, afirmam: “Esta nova postura ética

122 BOITEUX, Elza Antonia Pereira Cunha; BOITEUX, Fernando Netto. Poluição eletromagnética e meio

ambiente. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.p. 38.

123 Id. Ibid., p. 51. 124 Id. Ibid., p. 70-72. 125 Id. Ibid., p. 25-26.

exige das empresas que ajam segundo o princípio da precaução,126 evitando que a incerteza científica seja usada para postergar medidas eficazes para impedir a degradação do meio ambiente”.127

Esta postura é de extrema importância em nosso país, uma vez que, diante da inexistência de normas regulamentadoras, as empresas (especialmente as de energia elétrica) acabam por instalar torres de transmissão cada vez mais próximas dos aglomerados urbanos utilizando como argumento a incerteza científica a respeito dos danos das radiações e as posições e parâmetros seguros de exposição (100 µT) assumidos pelo ICNIRP e encampados pela Organização Mundial de Saúde (OMS).128

A situação torna-se ainda mais preocupante quando as medições oficiais realizadas pelo Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (IEE/USP) mostraram que “a radiação medida no interior das casas dos moradores de São Paulo próximas às linhas de transmissão ultrapassa, muitas vezes, os 6,6 µT (microtesla) e há casos de áreas de recreio de prédios de apartamentos onde foi registrado um nível de radiação de 34,4 µT”.129

Se comparada a outros países como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido e Suíça, “o nível de radiação encontrado nas moradias paulistanas, próximas das linhas de transmissão de energia elétrica, chega a ser 334 vezes maior que nos demais países”.130

Como se pode perceber, a proximidade das torres de energia e linhas de transmissão na cidade de São Paulo pode ser caracterizada como um problema de saúde pública e como tal precisa ser enfrentado pelos Poderes Públicos. Nesse sentido, a política do Município Saudável poderia render muitos frutos se fosse aplicada à capital paulista.

Apesar do relato de que a cidade de São Paulo foi a primeira cidade brasileira a ingressar no movimento Cidades Saudáveis, em 1990, e deste compromisso ter sido reafirmado com um convênio entre a Prefeitura, a OPAS e a Universidade de São Paulo

126 Os autores referem-se ao Princípio da Precaução, formulado no art. 15 da Declaração do Rio (que se encontra

no Relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento) nos seguintes termos: De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. BOITEUX, Elza Antonia Pereira Cunha; BOITEUX, Fernando Netto. Poluição eletromagnética e meio ambiente. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. p. 145.

127 Id. Ibid., p. 217. 128 Id. Ibid., p. 50-54. 129 Id. Ibid., p. 81.

130 A comparação foi feita com os Estados Unidos (0,38 µT); com a Alemanha (0,1 µT); com o Reino Unido

(USP), em dezembro de 2003, para definir estratégias de ação,131 muito ainda precisa ser feito para que a cidade se aproxime do que a OMS define como saudável. Especificamente no caso da energia elétrica, é preciso haver também o engajamento do Estado de São Paulo, das empresas de energia elétrica e da população, o que reforça a afirmação de que a intersetorialidade e participação popular são essenciais para a implantação da política de Municípios Saudáveis.

Como vimos, a visão ampliada de saúde, com base em tantos e diversos fatores determinantes tais como: renda e posição social, educação, emprego, aspectos biológicos e hereditariedade, estilo de vida, sexo, cultura, acesso aos serviços de saúde, faz com que o bem a ser protegido pelo Direito seja constituído de múltiplos aspectos (biológicos, sociais, econômicos, culturais, entre outros). Por essa razão, entendemos adequada a ideia da complementaridade, indissociabilidade, unidade e indivisibilidade dos direitos humanos defendida pela doutrina que como veremos, se aplica muito bem ao direito à saúde.

131 RIGHETTI, Sabine. Cidades saudáveis. Notícias BR do Brasil. Disponível em:

2. O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE