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2. O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

2.7. A reserva do possível

2.7.1. Crítica à reserva do possível

2.7.1.2. Sentenças aditivas:impacto no orçamento

A discussão centrada na teoria da reserva do possível traz consigo o problema das sentenças aditivas. Nas demandas sobre saúde pode ocorrer que o Estado seja condenado a realizar algum gasto ou a fazer algum investimento público no futuro. A questão, no entanto, não é tão simples assim, uma vez que não é possível garantir que, após a condenação, o Poder Executivo irá incluir a previsão de despesas no orçamento do ano seguinte. Para Lobo Torres, “ainda falta no direito positivo brasileiro, instrumento semelhante ao do mandado de injunção americano, que permita ao Judiciário vincular o Legislativo na feitura do orçamento do ano seguinte, em homenagem a direitos fundamentais sociais (mínimo existencial), que necessitam do controle jurisdicional contramajoritário típico dos direitos essencialmente

273 MENDONÇA, Eduardo. Da faculdade de gastar ao dever de agir: o esvaziamento contramajoritário de

políticas públicas. In: SARLET, Ingo; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 376.

constitucionais”.274 Concordamos com o autor de que é urgente uma reforma na legislação para que, uma vez esgotadas as dotações, seja possível utilizar créditos adicionais (suplementares e especiais). Uma reforma nos moldes da realizada nos Estados Unidos, na qual o Judiciário passou a ter poderes para alocação de recursos e manipulação de verbas, através do mandado de injunção, especialmente nas decisões em que houve a afirmação dos direitos fundamentais dos presos e dos negros.275

Mas a questão crucial do tema se dá com as sentenças aditivas que determinam o desembolso imediato de um valor em favor de alguém, ou a realização imediata de determinada obra, compra ou serviço. Se para o pagamento imediato de pequenos valores (abaixo de 60 salários mínimos) a União conta com um sistema de pagamento através da criação de um fundo financeiro na Lei Orçamentária Anual (LOA),276 a dificuldade está nas condenações que excedem esse valor.

Na prática judicial brasileira, o bloqueio de dinheiro público por aplicação analógica do art. 100, §2º da Constituição Federal, que prevê a hipótese de sequestro de quantia para a satisfação do crédito do credor preterido em seu direito de precedência em precatórios, nos parece adequada.277 Em se tratando do mínimo existencial do direito à saúde, o que está em jogo é o direito de sobreviver com qualidade de vida e com dignidade, situação semelhante à de todos aqueles que possuem créditos de natureza alimentar. Assim, se neste último caso, a Constituição autoriza o sequestro de quantia para a satisfação do direito, nada mais justo que, no caso do direito ao mínimo existencial do direito à saúde ela também permita o seqüestro de recursos públicos para garantir um direito social fundamental. Logo, a aplicação analógica do art. 100 parágrafo 2º ao caso em questão é uma questão de justiça e de concretização de um dos objetivos da República, que é a efetivação dos direitos sociais.

Apesar de ser excepcional, esta é uma medida que a nosso ver pode e deve ser utilizada para a satisfação do mínimo existencial do direito à saúde quando o Executivo insistir em descumprir a ordem judicial. Neste ponto, discordamos de Lobo Torres que

274 TORRES, Ricardo Lobo Torres. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios da natureza

orçamentária. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 76.

275 Id. Ibid.

276 SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível. In: SARLET, Ingo

Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 142.

277 Uma interpretação ampliada do dispositivo autorizou, em outra situação, o sequestro de recursos públicos

também para o caso de não pagamento de precatório alimentício à pessoa idosa. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Reclamação 3034-2, Voto-Vista do Ministro Eros Grau. Disponível em: <http://www.stf.gov/noticias>. Acesso em: 10 out. 2008.

defende a posição de que mesmo em relação ao mínimo existencial a concessão das prestações pelo Estado deve sempre se realizar por instrumentos orçamentários e nunca às margens das regras constitucionais que regulam lei de meios.278

O impacto das condenações judiciais nas finanças públicas é uma alegação frequente do Poder Público. Entretanto, ao relacionarem as despesas totais não financeiras consolidadas dos três entes de governo279 com as despesas judiciais, Fernando Moutinho Ramalho e Luis Otavio Barroso Graça constataram que as despesas judiciais representam um montante que corresponde a uma média de 1,82% no período de 2003 a 2006.280 Ao compararem o impacto no orçamento das sentenças judiciais com as emendas dos parlamentares, os autores constataram que, em média, o Legislativo dispõe acerca de 2,96% do orçamento federal. Ou seja, o Judiciário, por meio de sentenças, interfere no orçamento em proporção menor do que aquela introduzida pelo Congresso quando de sua elaboração.

Interessante notar que o impacto financeiro das emendas parlamentares é maior do que o impacto financeiro das sentenças e com relação às emendas ao orçamento ninguém se insurge para alegar a reserva do possível ou qualquer desequilíbrio na peça orçamentária. Apenas quando se trata da concretização dos direitos fundamentais sociais é que o argumento das escolhas trágicas, da escassez de recursos e da separação e independência entre os Poderes surge para colocar limites à efetivação de direitos fundamentais. O que dizer das emendas casuísticas dos parlamentares? Será que elas não estão a desequilibrar o orçamento e a desviar recursos importantes para a concretização dos direitos fundamentais sociais?

Ninguém questiona a legitimidade do Legislativo para alterar o projeto de lei orçamentária elaborado pelo Executivo. Mas há uma grita geral quanto à legitimidade do Judiciário para julgar inconstitucionais políticas públicas do Executivo e para prolatar sentenças aditivas que interferem no orçamento. Ao contrário de ofensa ao princípio da separação dos poderes, não estariam os juízes através de sua atuação demonstrando um eficiente e desejado mecanismo de pesos e contrapesos que deve existir em um Estado Democrático de Direito?

278 TORRES, Ricardo Lobo Torres. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios da natureza

orçamentária. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 75.

279 Por “Despesas totais não financeiras” entendam-se as despesas totais excluídas e aquelas resultantes de

pagamento de juros e amortização da dívida pública de natureza financeira (GND 2 e 6, respectivamente).

280 BITTENCOURT, Fernando Moutinho Ramalho; GRAÇA, Luis Otavio Barroso. Decisões judiciais e

orçamento público no Brasil: aproximação empírica a uma relação emergente. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 217.

Além disto, o estudo acima mencionado constatou que a maior concentração de despesas judiciais está no Ministério da Previdência Social e na Justiça Federal, estando o Ministério da Saúde apenas em 4º lugar, bem ao lado do Ministério da Fazenda (5º lugar).281 E que o grande montante das despesas federais devido a sentenças judiciais estava relacionado a pagamentos correspondentes a pessoal e encargos sociais- grupo de natureza da despesa- (GND 1), oscilando entre 60,91% em 2003 e 47,72% em 2006.282

O mais importante revelado pelo estudo é o fato de que a mensuração do impacto das sentenças judiciais no orçamento público é ainda um dado incipiente e pouco estudado,283 quer porque existe dificuldade na coleta dos dados, pois as fontes primárias de consulta são diferentes e heterogêneas,284 quer porque a maioria das despesas contabilizadas refere-se a pagamento de pessoal e dívidas configuradas como tais, pouco restando de registro de qualquer outra obrigação de fazer, a exemplo da obrigação imposta por sentenças judiciais ao poder público de custear tratamentos de saúde não previstos nas políticas de saúde pública.285

Se os gastos com as ações judiciais não estão devidamente quantificados, como é possível aceitar a justificativa do impacto sobre o orçamento decorrente das sentenças aditivas, frequentemente alegada pelo Poder Público para negar a efetivação do direito fundamental à saúde? Ainda mais quando sabemos que o próprio Executivo, em várias ocasiões acaba por não utilizar o dinheiro arrecadado para determinada dotação orçamentária sem que seja necessária qualquer motivação para isso.

O contingenciamento de verbas previstas no orçamento realizado pelo Executivo é uma outra questão não muito discutida. Analisando o orçamento do governo federal de 2005, Eduardo Mendonça demonstra o corte de 4,7 milhões de reais que, embora previstos, não

281 BITTENCOURT, Fernando Moutinho Ramalho; GRAÇA, Luis Otavio Barroso. Decisões judiciais e

orçamento público no Brasil: aproximação empírica a uma relação emergente. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 213-214.

282 Id. Ibid., p. 204.

283 “No entanto, não encontramos estudos que enfocassem um dos elementos fáticos centrais desse campo: o

impacto direto da ação judicial sobre os recursos comuns da coletividade reunidos no orçamento público.” Id. Ibid., p. 193-194.

284 Fontes: i) o SIAFI (sistema integrado de informação financeira), sistema informatizado que gera a execução

orçamentária, financeira e contábil do governo federal para os dados relativos ao orçamento da União; e ii) a consolidação das contas públicas dos entes subnacionais realizada pela Secretaria do Tesouro Nacional em cumprimento ao artigo 51 da Lei de Responsabilidade Fiscal, para as informações das finanças públicas estaduais e municipais. Essa dicotomia de fontes traz uma grande alteração no grau de detalhamento e de acessibilidade dos dados. Enquanto a fonte de dados federais permite uma melhor informação, os dados municipais e estaduais são recolhidos de um conjunto heterogêneo de milhares de fontes (o que corresponde a praticamente um sistema informatizado diferente para cada ente subnacional, totalizando mais de cinco mil fontes primárias distintas) Id. Ibid., p. 201.

foram gastos em áreas essenciais.286 Aponta o autor que “a consequência é deixar no limbo uma parcela da receita pública”.287 O resultado é que as prioridades definidas no processo deliberativo do orçamento são redesenhadas por ato unilateral da Administração. Ou seja, a execução real do orçamento é caracterizada por ampla discricionariedade do Poder Executivo na liberação das dotações inicialmente previstas.288 Isso ocorre de tal forma que, após poucos dias do orçamento ser aprovado, o Presidente edita um decreto limitando a liberação dos recursos, sem qualquer motivação, o que é inadmissível especialmente quando se consolida a percepção de que as instâncias formais de decisão devem ser transparentes e permeáveis à opinião pública.289

Fala-se tanto na importância de políticas públicas, mas não podemos nos esquecer de que elas são definidas na lei orçamentária em função das possibilidades financeiras do Estado. Embora a qualidade e eficiência de um programa estatal não dependam apenas da quantidade dos recursos disponíveis, a retenção de verbas pelo Executivo terá como resultado programas governamentais menos abrangentes. Quanto da verba inicialmente prevista para cada item do orçamento deixou de ser utilizado para o fim a que destinava? Quanto foi contingenciado por ato unilateral do Executivo e passou a fazer parte “do limbo”? São questões a serem respondidas no caso concreto especialmente quando um dos entes da Federação está em juízo contestando a ação e esquivando-se de satisfazer o direito à saúde sob a alegação de que não há recursos e nem lei orçamentária que preveja aquela despesa. A análise dessas questões concretas em vez de discussões teóricas a respeito da escassez de recursos certamente irá auxiliar o julgamento do caso.

Diante dessa situação, Mendonça faz uma reflexão sobre a necessidade de uma correlação entre a legalidade tributária e a legalidade orçamentária, lembrando que nas Constituições de 1946 e 1967 a lógica do sistema era de que as receitas eram autorizadas em função das despesas também autorizadas. O sistema tinha o mérito de colocar em evidência a correlação entre receita e despesa. E o orçamento funcionava como uma forma de controle do Legislativo sobre a atividade administrativa.290

Ana Paula de Barcellos também critica o fato de que embora a Constituição se preocupe em impor limites ao poder de tributar, ela pouco se importa em disciplinar a despesa

286 MENDONÇA, Eduardo. Da faculdade de gastar ao dever de agir: o esvaziamento contramajoritário de

políticas públicas. In: SARLET, Ingo; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 379-381.

287 Id. Ibid. 288 Id. Ibid., p. 378. 289 Id. Ibid., p. 391. 290 Id. Ibid., p. 385.

pública. Para ela é inconcebível que a Constituição não tenha qualquer regulamentação ou exigência de controle do conteúdo das decisões a respeito das despesas públicas.291

Em nosso entender, esta solução poderia engessar a execução do orçamento em saúde na medida em que não deixaria margem de flexibilidade para o remanejamento de verbas que pudessem estar superestimadas para a realização de determinada despesa. Por esta razão, defendemos a posição de que os recursos possam ser remanejados de forma autônoma pelo Executivo a fim de impedir que os valores não gastos permaneçam “no limbo”.Para isso, bastaria que a hipótese fosse enquadrada no regime dos créditos suplementares. E, se isso não fosse possível, ainda haveria a via dos créditos especiais, que podem ser requisitados ao legislador.

Esta é uma das razões pelas quais a discussão da judicialização da saúde, especialmente quando faz a análise do orçamento da saúde, deve levar em conta a estrutura e o funcionamento do SUS concreto na região do litígio, bem como as metas estabelecidas no plano de saúde municipal e estadual para aferir a adequação dos investimentos e identificar possíveis omissões do Poder Público na concretização da política de saúde estabelecida no Plano de Saúde elaborado nos vários níveis de governo.

Concordamos que há de se regulamentar a forma como o Judiciário em suas decisões possa intervir de forma cogente na alocação de verbas, quando se fizer necessário. Também entendemos que a questão orçamentária não é uma questão menor e que precisamos reforçar mecanismos de participação da sociedade na elaboração e no controle da execução do orçamento. Mas não podemos limitar a questão da judicialização ao tema da reserva do possível, no sentido de que ela se transforme em mera alegação do Poder Público para justificar a negação do direito à saúde. É preciso que em juízo essa alegação seja comprovada documentalmente e mais, que o Executivo comprove onde “concretamente” deixou de investir para atender ao determinado na sentença judicial,292 e de onde retirou o dinheiro para realizar

291 Este paradoxo é apontado por Ana Paula de Barcellos ao afirmar: “A apuração de recursos pelo Poder

Público é tema amplamente regulamentado pelo direito constitucional, desde as clássicas limitações ao poder de tributar, até as modernas regras que regem o endividamento público. Em suma: para a apuração de receitas, o Estado deverá obediência às normas jurídicas pertinentes. O que dizer da despesa? Ora, a despesa pública é exatamente o mecanismo pelo qual o Estado, além de sustentar sua própria estrutura de funcionamento, procura realizar seus fins e objetivos. Do ponto de vista formal, as despesas públicas deverão estar previstas no orçamento, nos termos constitucionais e legais. Mas o que deverá constar do orçamento? Em que se deverá investir? Em que os recursos públicos devem ser aplicados? Com muito maior razão, também o conteúdo das despesas haverá de estar vinculado juridicamente às prioridades eleitas pelo constituinte originário”. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 240-241.

292 “O espaço para argumentos puramente formais ou etéreos, como separação de poderes, mérito do ato

as despesas com as sentenças judiciais. Neste sentido, pertinente é a observação de Gustavo Amaral e Danielle Melo no sentido de que parece “impressionante que mesmo após anos de ativismo judicial quanto a medicamentos não sejam conhecidos estudos que apontem de onde vieram os recursos para a compra”.293

2.8. Complementaridade, indissociabilidade, unidade e indivisibilidade dos direitos