• Nenhum resultado encontrado

Esclarecimentos sobre os interesses de Kaplan

Como vimos na se¸c˜ao 1.2.1, os contextos pr´oprios, em que o agente do contexto est´a no local, no tempo e no mundo do contexto, permitem que senten¸cas com indexicais sejam verdadeiras a priori, como a senten¸ca em (10), apesar de senten¸cas como a dada em (12) n˜ao serem verdades necess´arias. Nesta se¸c˜ao, conheceremos em de- talhes dois dos principais interesses de Kaplan (1989) e veremos que o comportamento demonstrado pelas senten¸cas com indexicais em rela¸c˜ao aos seus valores de verdade era o almejado por Kaplan para que fosse confirmada sua tese de que os indexicais n˜ao estabelecem rela¸c˜oes de escopo com operadores intensionais.

Conforme Schlenker (2010), Kaplan estava interessado em dois casos espec´ıficos, os quais levam em considera¸c˜ao senten¸cas como (14) e (10): “sentences which are in some sense a priori true, although one would not want to say that they are necessarily true” e tamb´em casos em que

[...] the cognitive significance of a statement does not just encompass information about the world, but also about where in the world the speaker is [...] in wich context the speaker is located [...] (SCHLENKER, 2010, p. 3).

Para elaborar uma explica¸c˜ao sobre o primeiro interesse de Kaplan (1989) vamos tomar novas senten¸cas e em seguida apresentar a deriva¸c˜ao de cada uma delas baseados na proposta de Schlenker (2010), considere as senten¸cas em (14) e (15).

(14) Eu existo.

(15) Eu necessariamente existo.

Uma senten¸ca como em (14) ´e a priori verdadeira porque em todo contexto pr´oprio c, o agente (ca) existe no mundo do contexto (cw)12.No

12Nesse ponto ´e essencial a postula¸ao de Kaplan (1989) de que o contexto de proferimento ´e fixado como o contexto relevante para a avalia¸c˜ao dos indexicais.

entanto, a senten¸ca em (15) n˜ao ´e uma verdade necess´aria, de acordo com a l´ogica de mundos poss´ıveis, pois o agente (ca) n˜ao existe neces- sariamente em todos os mundos que mantˆem rela¸c˜ao de acessibilidade com o mundo do contexto (cw), uma vez que o agente existe, necessa- riamente, somente no mundo do contexto (contexto e mundo poss´ıvel estabelecidos pelo proferimento). Isso se d´a, porque

[...] the circumstance of evaluation is shifted to other situations in order to determine the extension of the predicate [...] at the same time, the referent determined by [eu] in the con- text [...] is retained in all these circumstan- ces(LEEZENBERG, 2001, p. 157).

O que ocorre, nesse caso, ´e que a interpreta¸c˜ao do indexical ‘eu’ n˜ao ´e influenciada pela presen¸ca do operador modal, pois ‘eu’ ´e avaliado em rela¸c˜ao ao parˆametro contextual e ‘x existe’ em rela¸c˜ao ao parˆametro de mundo. Isso prova que indexicais “[...] always take wide scope over intensional operators: no such operators can shift the referent which is fixed in the context of utterance”(LEEZENBERG, 2001, p. 157). Logo, na senten¸ca (15) somente as circunstˆancias de avalia¸c˜ao sofrem varia¸c˜ao e a senten¸ca pode ser avaliada em rela¸c˜ao a algum mundo poss´ıvel que pode n˜ao ser o mundo do contexto, e assim, ser falsa em rela¸c˜ao `aquele mundo. Esse era o comportamento que Kaplan (1989) buscava.

Apresentamos em (16) e (17) as deriva¸c˜oes dessas duas sen- ten¸cas para que se visualize que o contexto ´e respons´avel por fixar os valores semˆanticos dos indexicais e pelas verdades a priori (n´ıvel epistemol´ogico); e as circunstˆancias de avalia¸c˜ao s˜ao equivalentes aos mundos poss´ıveis de uma semˆantica intensional e s˜ao respons´aveis pelas verdades necess´arias (n´ıvel metaf´ısico).

(16) Eu existo.

JEu existoK = V, sse

JexistirKc cw (JeuKc cw) = V, sse JexistirKc cw (c

a) = V, sse

ca existe em cw; que ´e sempre o caso para contextos pr´oprios, de acordo com a defini¸c˜ao de Kaplan (1989).

mento a priori que vem complementar o que Kaplan j´a declarara sobre esse tipo de senten¸ca: “A sentence S is a priori true if and only if for each conceivable context c, S is true in c.” Assim, uma senten¸ca ´

e verdadeira a priori se, ao mudar o contexto, ou seja, nos muitos contextos poss´ıveis, ela ainda permanece verdadeira; o que sempre ´e o caso para senten¸cas com indexicais nos moldes de (16)13.

(17) Eu necessariamente existo.

Jnecessariamente eu existoKc cw= V, sse para todo w(que mant´em uma rela¸c˜ao pr´e-determinada com cw),

Jeu existoKc w′= V, sse para todo w (que mant´em uma rela¸ao pr´e- determinada com cw),

JexistoKc w′(c

a)= V, sse para todo w′ (que mant´em uma rela¸c˜ao pr´e- determinada com cw), ca existe em w′.

E pelo fato de w′ao ser necessariamente o mundo de c (cw), ent˜ao a senten¸ca em (15)/(17) n˜ao ´e necessariamente verdadeira.

Em prosa: o proferimento ‘Eu necessariamente existo’ em rela¸c˜ao ao contexto e ao mundo do contexto ´e verdadeiro, sse em todos os mundos poss´ıveis w′, que mantˆem rela¸c˜ao de acessibilidade com o mundo do contexto (cw), o agente do contexto existe em todos os mundos poss´ıveis

w′. No entanto, pode ser o caso que em um dos mundos poss´ıveis w′, que mant´em rela¸c˜ao de acessibilidade com cw, o agente de c (ca) n˜ao exista, o que leva a senten¸ca a ser falsa.

O segundo aspecto constitutivo da abordagem de Kaplan (1989), que o autor procura elucidar, ´e o que trata da significˆancia cognitiva das senten¸cas com express˜oes indexicais. Segundo ele, para que se modele a significˆancia cognitiva de express˜oes e senten¸cas com indexicais deve- se considerar, al´em de informa¸c˜oes sobre o mundo poss´ıvel, tamb´em informa¸c˜oes sobre o contexto de proferimento. Assim sendo, Schlenker (2010, p. 3) chama a aten¸c˜ao para uma situa¸c˜ao em que uma pessoa conhece tudo o que h´a para conhecer sobre o mundo, mas n˜ao sabe onde no mundo est´a, i.e., em que contexto se encontra. Isso mostra que os contextos s˜ao estruturas mais finas que os mundos poss´ıveis e s˜ao os respons´aveis pela significˆancia cognitiva de senten¸cas com indexicais.

Schlenker (2010) cita uma situa¸c˜ao-exemplo dada por John Perry (1993) e, em seguida, alguns coment´arios feitos por David Lewis (1983), que seguem:

An amnesic, Rudolf Lingens, is lost in the Stan- ford library. He reads a number of things in the library, including a biography of himself, and a detailed account of the library in which he is lost... He still won’t know who he is, and where he is, no matter how much knowledge he piles up, until that moment when he is ready to say, “This place is aisle five, floor six, of Main Library, Stanford. I am Rudolf Lingens.”(PERRY, 1993, p. 21 apud SCHLENKER, 2010, p. 3).

It seems that the Stanford library has plenty of books, but no helpful little maps with a dot marked “location of this map.” Book learning will help Lingens locate himself in logical space. [...] But none of this, by itself, can guarantee that he knows where in the world he is. He needs to locate himself not only in logical space but also in ordinary space. (LEWIS, 1983, p. 138 apud SCHLENKER, 2010, p. 3).

Na situa¸c˜ao trazida por John Perry (1993), Lingens det´em todo o conhecimento sobre o mundo e est´a em condi¸c˜oes de proferir a senten¸ca em (18), que n˜ao tem indexicais, ou seja, n˜ao traz informa¸c˜oes sobre o contexto de proferimento.

(18) Lingens est´a no tempo t na Biblioteca de Stanford.

No entanto n˜ao estaria na posi¸c˜ao de proferir a senten¸ca em (19), pois n˜ao det´em o conhecimento indexical do contexto em que se encontra (n˜ao sabe quem ele ´e, nem onde est´a),

(19) Eu estou aqui agora.

A situa¸c˜ao em que Lingens conhece todas as informa¸c˜oes da vida de Lingens (inclusive onde ele se encontra no momento do contexto), mas n˜ao sabe que ele, de fato, ´e o pr´oprio Lingens, mostra que para um indiv´ıduo (agente do contexto) proferir uma senten¸ca contendo indexi- cais, a significˆancia cognitiva desse sujeito precisa incluir informa¸c˜oes

sobre contextos, e n˜ao somente sobre mundos.

Por ora basta que se entendam esses exemplos como demonstra- ¸c˜oes de que para se modelar a significˆancia cognitiva dos indexicais, al´em de se considerar os mundos poss´ıveis, ´e necess´ario que se conside- rem os contextos de proferimento, pois estes tˆem uma granula¸c˜ao mais fina do que os mundos poss´ıveis.

Esse t´opico abrange, al´em das condi¸c˜oes de verdade para sen- ten¸cas com indexicais, que trataremos nas se¸c˜oes seguintes, uma quest˜ao cara `a semˆantica e `a filosofia, qual seja, como dar conta do conjunto de cren¸cas do indiv´ıduo sobre si, as cren¸cas de se. Os fenˆomenos de se ser˜ao vistos de maneira mais detalhada na se¸c˜ao 1.7.1, no final deste cap´ıtulo, e ser˜ao assunto recorrente ao longo de toda esta disserta¸c˜ao.