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3. O EU E SEU PROCESSO DE ESTRUTURAÇÃO EM FREUD E LACAN

3.5. O Estádio do Espelho

O interesse de Lacan pela questão do narcisismo remonta aos seus estudos sobre a paranoia, mas ganha uma sistematização maior a propósito de sua teoria sobre o Estádio do Espelho como formador da Função do Eu (1949/1998).

A concepção de estádio do espelho parte da observação de um aspecto comportamental do ser humano. Percebe-se que o “filhote do homem” é capaz de reconhecer como sua a imagem que vê no espelho. Este reconhecimento é seguido de um estado de júbilo e de uma série de gestos que são percebidos como redobrados na imagem especular. No momento em que se vê através de uma imagem, a criança julga haver nesta imagem uma certa realidade e começa a investigar qual a relação da realidade refletida com o meio a sua volta.

No momento em que essa experiência acontece, entre o sexto e o décimo oitavo mês de idade, a criança não possui o controle da marcha corporal ou sequer da postura ereta, razão pela qual se encontra “totalmente estreitada por algum suporte humano” (LACAN, 1949/1998, p. 97). No entanto, diante da visão de sua própria imagem no

espelho, a criança supera os entraves desse suporte, a fim de resgatar a sua imagem refletida e fixá-la, sustentando sua postura em uma posição mais ou menos inclinada.

A esse respeito, Jorge (2011) destaca a importância da postura ereta na atração que o adulto desempenha para o infans18. A impotência motora na qual a criança pequena se acha mergulhada, não a impede de se precipitar em direção a uma forma ortopédica representada pela totalidade do corpo. Assim, a prematuração do bebê ao nascer refere-se não somente a uma noção de “inacabamento anatômico do sistema piramidal, bem como a existência de certos resíduos humorais do organismo materno” (LACAN, 1949/1998, p. 100), como também à sua falta de coordenação motora, fazendo com que, ao nascer, o bebê não ande nem fique de pé, mas já perceba os adultos de pé.

Esta prematuração anuncia que a relação do homem com a natureza é alterada. O estádio do espelho não nos remete somente ao problema da significação do espaço pelo organismo vivo, mas evidencia, principalmente, a representação da unidade corporal pela criança através da identificação à imagem do outro, matriz a partir da qual se formará o primeiro esboço do Eu. Essa experiência deve ser entendida “como uma identificação no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN, 1949/1998, p. 97).

Esta fase designada pelo nome de estádio do espelho não revela necessariamente uma situação concreta da criança frente a um espelho. Pode ocorrer tanto em face de um espelho, quanto em face de outra pessoa. Este momento pretende assinalar um tipo de relação da criança com o outro, seu semelhante, por meio da qual constitui uma demarcação de sua totalidade corporal. O que a criança tem devolvido pelo outro é uma forma, cuja função essencial é ser estruturante do Eu, muito embora ainda num nível imaginário19. A vivência da fragmentação corporal, anterior à experiência do espelho, conhece uma primeira delimitação de si por um processo de identificação ao outro.

Se através do narcisismo Freud (1914/2004) nos afirma que uma unidade comparável ao Eu não poderia existir desde o começo, Lacan (1949/1998) também nos diz, por meio do estádio do espelho, que o Eu se constitui e que isso se dá num determinado momento da história do sujeito, através da aquisição de suas funções imaginárias.

18 Bebê ainda não falante, entre o sexto e o décimo oitavo mês de vida.

19 Por imaginário Lacan (1953-54/2009) refere-se a uma relação ilusória do sujeito com a realidade. No

Podemos dizer, então, que o Eu é uma função do imaginário e que por meio dessa função nos é possível perceber o mundo com uma ilusão de unidade. A partir da nomeação do registro imaginário, o sujeito é situado extrinsecamente ao Eu e o Eu é configurado como um objeto imaginário (JORGE, 2011). Para tratarmos desse Eu definido como objeto imaginário, Lacan, em seu Seminário 1 (1953-54/2009), nos diz que o estádio do espelho possui uma apresentação óptica. Numa tentativa de lançar luz sobre essa fase do desenvolvimento humano, Lacan toma emprestado da óptica o experimento do buquê invertido, por meio do qual temos acesso a uma ilusão visual permitida pela produção de uma imagem muito parecida com um objeto real, o que torna impossível distingui-la do mesmo.

Através deste experimento, podemos inferir que as imagens ópticas apresentam características singulares. Algumas são puramente subjetivas, e por isso são chamadas de imagens virtuais, enquanto outras são reais, a saber, “sob certos prismas, se comportam como objetos e podem ser tomadas como tais” (LACAN, 1953-54/2009, p. 105). Uma imagem real é assim chamada porque pode ser tomada como um objeto. Uma vez tomada como tal, essa imagem real pode produzir outra imagem, como se fosse, ela mesma, um objeto produzindo sua respectiva imagem.

Como uma imagem pode ser tomada como um objeto? Lacan (1953-54/2009) nos afirma que o espelho esférico é o dispositivo responsável por esse tipo de imagem. Em um espelho esférico, os raios de um objeto refletem-se até chegar a um ponto simétrico em relação ao objeto refletido. Nesse caso, julgamos real a imagem que vemos, pois ela é vista à frente do espelho e independente dele. O contrário disso acontece quando vemos uma imagem virtual. Nesta última, temos a certeza de que se trata mesmo de uma imagem, uma vez que só podemos vê-la através de um espelho. É o que acontece quando olhamos a nossa própria imagem refletida no espelho plano. Vemo-nos na imagem refletida, mas não temos acesso à imagem produzida pela reflexão de nossos raios, uma vez que ela se forma atrás do espelho.

De posse dessas informações podemos agora situar os elementos presentes no experimento do buquê invertido. Sobre uma caixa coloca-se um vaso. Escondido, dentro da caixa oca, há um buquê. O buquê que aparece “bem no gargalo do vaso” (LACAN, 1953- 54/2009, p. 108) é uma ilusão óptica produzida pela imagem real, gerada pela reflexão dos

raios do buquê real através do espelho esférico. Nossos olhos não têm acesso ao buquê real, pois ele permanece no interior da caixa. Isto nos leva a concluir que não temos acesso ao nosso corpo tal como aquela superfície primitiva sustentada pelo sistema nervoso. No entanto, caso o expectador ocupe uma determinada posição em relação ao centro desse espelho, poderá ter acesso à ilusão produzida pela imagem real, isto é, às flores que aparecem à frente do espelho, bem em cima do gargalo do vaso real, como poderemos ver na ilustração abaixo.

Ilustração 1: Esquema Óptico de Boausse.

Ao ver essa imagem ilusória, o expectador tem uma impressão de realidade. No entanto, ele a vê sem deixar de sentir que alguma coisa nela é estranha, borrada. Dito de outro modo, o espelho côncavo refletirá sempre a imagem real, porém deformada e invertida – o que poderia ser uma ilustração do narcisismo primário. Quanto mais distante estiver do campo de reflexão do espelho esférico, “mais a ilusão será completa” (LACAN, 1953-54/2009, p. 108). Se esse expectador estiver fora do cone de visão, já não verá o que é imaginário, pela simples razão de que nada do cone de emissão virá bater nele. Verá as coisas no seu estado real, totalmente nu, quer dizer, o interior do mecanismo: um pobre vaso vazio, ou flores isoladas.

Um dos pontos de maior importância da teoria lacaniana acerca do estádio do espelho é justamente a antecipação psicológica do sujeito, em detrimento de sua maturação fisiológica, ou seja, só a visualização da forma total do corpo fornece ao sujeito um

domínio imaginário do seu corpo, prematuro em relação ao domínio real, a saber, sua maturação fisiológica e integração das funções motoras. A imagem do corpo é fundamental, pois dá ao sujeito a primeira forma que lhe possibilita situar o que é do Eu e o que não é do Eu. Nesse esquema que apresentamos, a imagem do corpo seria relativa ao vaso real que contém o buquê de flores virtuais.

A concepção de uma organização imaginária da realidade a partir de uma ausência de diferenciação inicial é o que Lacan vai abordar com o estádio do espelho. No Seminário 2, Lacan (1954-55/2010) o resume da seguinte maneira:

Toda a dialética que lhes dei a título de exemplo com o nome de estádio do

espelho está fundamentada sobre a relação entre, de um lado um certo nível das

tendências vivenciadas – digamos por enquanto, num certo momento da vida – como que desconectadas, discordantes, despedaçadas – e sempre fica alguma coisa – e, por outro lado, uma unidade com a qual ele se confunde e se emparelha. Esta unidade é aquilo em que o sujeito se conhece pela primeira vez como unidade, porém, como unidade alienada, virtual. (LACAN, 1954-55/2010, p. 73).

Vemos até aqui que a noção de Eu que surge com o advento do estágio do espelho não é a mesma daquela proposta por Freud no Projeto (1895/1996), um de seus primeiros trabalhos. Neste último, como já dissemos anteriormente, o Eu é uma organização neuronal que provém das primeiras ligações feitas sobre as excitações dispersas e corresponde à passagem de um estado de pura dispersão de excitações a estados de integração ou a organizações parciais, com função de inibição da descarga motora. Vale destacar mais uma vez que esses Eus parciais originais que se formam não são unificados, nem unificadores, correspondem aos primeiros esboços de organização do aparelho psíquico, e, são entendidos por Lacan como o Eu-real, “o real derradeiro da organização psíquica” (GARCIA-ROZA, 1995, p. 56).

Já o Eu do estádio do espelho não é compreendido como uma organização neuronal, mas como uma complexa representação que está diretamente relacionada com a imagem corporal, tendo em vista que esta imagem é a responsável por conferir uma unidade primeira ao sujeito. Essa unidade de representações dispersas, o Eu original que permite a transição do auto-erotismo para o narcisismo, não se configura como uma unidade definitiva que perdura idêntica a si mesma, mas algo que se renova ou se acrescenta traços novos.

De acordo com Garcia-Roza (1995, p. 57), “o Eu é constituído também pelas enunciações, pelos juízos de valor, pelas declarações de preferência ou de rejeição”. Este autor nos diz, ainda, que há uma forma particular tomada pelo Eu: a do Eu-ideal.

A partir dessa afirmação, nos questionamos: o que seria esse Eu-ideal na proposição freudiana e qual a sua relação com o Ideal-de-Eu? Vemos que a teorização realizada por Freud (1914/2004) acerca do Eu-ideal e o Ideal-de-Eu se faz necessária não somente para compreendermos as figuras idealizantes pelas quais o Eu se mede, como também para diferenciar os narcisismos, primário e secundário.