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4.3. O Homem dos Ratos

4.3.5. O Desencadeamento da Neurose Obsessiva

O paciente menciona que foi abordado pela mãe, após o falecimento de seu pai, para uma discussão acerca de seu futuro. Um casamento de negócios com uma prima havia sido arranjado entre os familiares ricos, com o objetivo de oferecer-lhe maiores perspectivas profissionais. Esse plano desenvolvido pela sua família desencadeou um conflito relativo a questão de saber se ele continuaria fiel à sua amada, independentemente de sua situação econômica menos favorecida, ou se seguiria os caminhos de seu pai e se casaria com a rica, bonita e bem relacionada jovem que seus parentes haviam escolhido. Freud (1909/1996) reconhece esse evento como a causa que precipitou a doença do Homem dos Ratos, tendo em vista que diante dessa situação, Ernest resolve o conflito existente entre o seu amor e a influência constante dos desejos de seu pai com a sua doença, isto é, ficando doente evitava a tarefa de fazer uma escolha na vida real.

Freud (1909/1996) nos diz que, enquanto na histeria as causas precipitadoras da doença, assim como as experiências infantis sofrem, dão lugar à amnésia, evidenciando o lugar do recalque, nas neuroses obsessivas há uma diferenciação, pois as precondições infantis da neurose podem ser colhidas pela amnésia, ainda que de forma parcial e as razões

imediatas da doença são retidas na memória. O recalque age por intermédio de outro mecanismo, no qual o trauma é destituído de seu investimento afetivo, em vez de ser esquecido, fazendo com que permaneça na consciência apenas o conteúdo ideativo, considerado desinteressante e sem importância. Sendo assim, “a distinção entre aquilo que ocorre na histeria e numa neurose obsessiva reside nos processos psicológicos que nos é possível reconstruir por trás dos fenômenos” (FREUD, 1909/1996, p. 172).

No caso do Homem dos Ratos observamos que a causa desencadeadora da doença na idade adulta remete-se à infância. O paciente via-se numa situação semelhante à de seu pai antes do casamento, tendo que escolher entre uma moça rica e outra pobre, o que possibilitou a sua identificação com este. Como dissemos acima, o conflito que se apresentava na base da doença era referente a uma luta entre as inclinações amorosas do paciente e a influência dos desejos paternos. Contudo, é válido ressaltar que esta luta é antiga e teve sua origem há bastante tempo, ainda na infância de Ernest.

Assim como no caso Schreber, verificamos também aqui a importância do complexo paterno na análise das manifestações sintomáticas do paciente. Em se tratando dos assuntos militares, também havia uma identificação inconsciente do Homem dos Ratos com seu pai, que, como vimos, prestou serviços militares durante muitos anos. Isso fornece uma luz para a solução da ideia dos ratos. Para compreendê-la, portanto, se faz necessário saber o motivo que levou as duas falas do capitão tcheco – o castigo dos ratos e o pedido de pagamento – a exercerem uma agitação sobre o paciente, acarretando reações patológicas violentas.

O período em que o pai de Ernest serviu como soldado rendeu muitas histórias que foram retidas pelo paciente. Uma dessas histórias, contadas pelo seu pai, tinha um importante elemento comum com o pedido realizado pelo capitão. Na época em que era suboficial, o pai do paciente era responsável por uma pequena quantia de dinheiro que acabou perdendo em um jogo de cartas. Esse fator deve ser levado em consideração, pois quem agia desta forma era conhecido como ‘rato-de-jogo’, um termo alemão coloquial para designar ‘jogador’. Em decorrência dessa perda, o pai de Ernest poderia ter se prejudicado no serviço, mas para evitar isso um de seus amigos lhe emprestou o valor perdido no jogo. Depois de sair do exército, o pai tentou reencontrar o amigo, mas nunca conseguiu encontrá-lo para restituir-lhe o dinheiro emprestado. A recordação dessa falha da juventude

do pai era dolorosa para o paciente, pois, apesar das aparências, seu inconsciente estava repleto de hostilidade ao caráter paterno. Desta maneira, a ordem do capitão, ‘você deve pagar as 3 coroas e 80 florins ao tenente A’, chegam aos ouvidos de Ernest como uma alusão a dívida não quitada pelo pai.

A dívida de Ernest era de menor valor e deveria ser paga para a moça da agência dos correios, logo, de fácil pagamento, já a dívida de seu pai era impossível de pagar. Ele transformou a dívida do pai em sua, a fim de pagá-la e redimir-se com este pelos seus pensamentos hostis. No ato de pagar essa dívida paterna, teria permissão para usufruir a sua sexualidade, desejar, assim como seria liberto da culpa, das obsessões e dos atos punitivos. O único entrave no caminho desta realização é que o pagamento da dívida era impossível. E o próprio Homem dos Ratos atesta isso ao formular a seguinte afirmação mental após o pedido de reembolso do capitão: “‘Está bem. Reembolsarei o dinheiro ao Tenente A. quando meu pai e a dama tiverem filhos!’ ou ‘Tão certo quanto meu pai e a dama possam ter filhos, eu lhe pagarei’” (FREUD, 1909/1996, p. 189). Trata-se de uma asserção grotesca ligada a uma condição absurda que jamais se cumpriria. Ao contrário de um pagamento, o que acontece é a realização de um crime. O paciente insulta as duas pessoas que mais ama, o pai e a dama, e a punição para uma infração deste tipo consiste na obediência à exigência descabida de seu chefe, comprometendo-se com um juramento impossível de ser cumprido, uma vez que se baseava em falsas premissas. O juramento fundamenta-se em realmente reembolsar o dinheiro ao tenente A, ou em outras palavras: “‘Sim, você precisa reembolsar o dinheiro a A., conforme o exigiu o substituto de seu pai. Seu pai não pode estar equivocado; e se ele investe um de seus súditos de um título que não lhe pertence, o súdito passará a trazer sempre esse mesmo título’” (FREUD, 1909/1996, p.190).

A ordem do capitão foi recebida com revolta, fazendo com que primeiramente surgisse na mente do paciente uma ideia de que ele não deveria devolver o dinheiro ou então a punição dos ratos aconteceria ao seu pai e à dama; em seguida, houve a transformação da ideia em seu contrário, isto é, o paciente deveria pagar o tenente A para que o suplício dos ratos não ocorresse às duas pessoas que mais ama.

Como já dissemos anteriormente, a punição com os ratos incita o erotismo anal do paciente, que desempenhou um papel importante durante a sua infância e se manteve ativo por muito tempo. É possível observar que a ideia do castigo com os ratos evoca um

conjunto de recordações em Ernest, atribuindo aos ratos uma diversidade de significados simbólicos, dentre os quais podemos citar a conexão entre a palavra ratos (ratten) com prestações (raten), fazendo com que os ratos adquirissem o significado de dinheiro, ao ponto do paciente criar uma moeda-rato, expressada por ele através de uma equivalência: ‘tantos florins, tantos ratos’. O caráter monetário dos ratos se fortaleceu com o pedido do capitão mediante outra ponte verbal, spielratte (rato-de-jogo), que remetia a dívida contraída por seu pai no jogo. Vemos também uma associação entre ratos e pênis, pois assim como um rato transmite doenças, um pênis transmite sífilis, doença que provocava verdadeiro pavor em Ernest por ocultar todos os tipos de dúvidas sobre a vida que o pai levou durante o tempo de serviço militar. Por fim, temos a vinculação entre ratos e crianças, tendo em vista que a noção acerca dos ratos está relacionada com o fato de que estes possuem dentes afiados, que os ajudam a roer e morder, além de serem devoradores e sujos, exatamente como o paciente quando era criança, “um sujeitinho asqueroso e sujo, sempre pronto a morder as pessoas quando enfurecido, e fora assustadoramente punido por tê-lo feito” (FREUD, 1909/1996, p. 188).

Nós podemos observar a partir desse deslocamento metonímico que o obsessivo apresenta um dialeto próprio. Se a dissolução da ideia dos ratos nos mostra uma relação peculiar do obsessivo com a linguagem, a situação em que Ernest é punido pelo pai resultando no vaticínio ‘ou será um grande homem, ou um grande criminoso’ nos revela que o obsessivo crê na palavra, na força da palavra, no poder desta, fazendo da palavra a sua religião particular.