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4.1. O Caso Schreber

4.1.4. O Eu na Paranoia: Defesa e Narcisismo

Para defender-se da fantasia de desejo homossexual, o paranoico utiliza o mecanismo da projeção: “uma percepção interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, após sofrer certo tipo de deformação, ingressa na consciência sob forma de percepção externa” (FREUD, 1911/1996, p. 73). No entanto, Freud (1911/1996) nos alerta que há uma insuficiência do mecanismo da projeção, justamente por não ser algo específico das psicoses. Sendo assim, o autor nos fornece uma redefinição acerca da projeção nas psicoses: “foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora”. (FREUD, 1911/1996, p. 78).

Em decorrência da constatação da impossibilidade da projeção se configurar como uma especificidade psicótica, Freud (1911/1996) estabelece a hipótese de que há um recalque particular nesta categoria clínica. Faz-se necessário destacar que Freud (1911/1996) postula suas considerações sobre o Caso Schreber, partindo de uma teoria do recalque, ainda no cerne de sua primeira tópica do aparelho psíquico e do primeiro dualismo pulsional. Por mais que sustente a opinião de que nestes casos se trata de um recalque muito especial, o autor não define em que consiste sua especificidade.

Ainda assim, é possível observar um constante movimento freudiano, desde os primórdios da elaboração da teoria psicanalítica, de tentar encontrar as particularidades de cada processo psíquico, delinear as entidades clínicas e estabelecer um fio condutor para compreensão dos diferentes quadros clínicos. No intuito de realizar esse objetivo, o autor primeiramente confere a cada modalidade das categorias clínicas o seu mecanismo específico de defesa.

Em As Neuropsicoses de Defesa, Freud (1894/1996) concebe os casos de neurose e de psicose como resultado de uma defesa realizada pelo Eu contra as representações que são incompatíveis e, por conseguinte, aflitivas. Para o autor, tanto na histeria quanto nas neuroses obsessivas e fobias a representação inconciliável deixa um símbolo mnêmico24, uma vez que apenas há a separação entre afeto e representação

24 De acordo com Laplance e Pontalis (2004), o símbolo mnêmico é uma expressão usada por Freud nos

incompatível. Já nas psicoses a defesa assume uma postura mais enérgica, de maneira que o Eu rejeita (Verwerfung) a representação incompatível, assim como o afeto que lhe corresponde, comportando-se como se aquela representação nunca tivesse existido. Vale destacar que esta é a primeira vez que Freud (1894/1996) utiliza o termo Verwerfung, para designar e mecanismo de defesa característico das psicoses.

Um dos resultados dessa modalidade de defesa empreendida na psicose é a negação da realidade, ou de parte dela, pelo psicótico, para não ter que lidar com essa representação aflitiva. De acordo com Freud (1894/1996), o Eu também se desliga, total ou parcialmente, da realidade, na medida em que rechaça a representação incompatível, tendo em vista que as representações estão diretamente ligadas a fragmentos de realidade. Por essa razão verifica-se que alguns psicóticos constroem uma nova realidade, não compartilhada, a partir de uma certeza delirante.

Ao ressaltar que a ativação da defesa ocorre sempre que o Eu se depara com excitações de cunho sexual em excesso, Freud (1896/1996), no Rascunho K, nos indica que o insuportável também tem origem na sexualidade. É exatamente essa teoria que corrobora com a hipótese de que o paranoico se defende de um desejo homossexual.

Faz-se importante destacar que essa fantasia homossexual deve ser pensada à luz da noção de narcisismo, tendo em vista que não se trata da homossexualidade enquanto escolha de um objeto sexual, mas como uma direção libidinal que, nas psicoses, volta-se para o Eu, ao invés de dirigir-se aos objetos. Vejamos como se dá a modificação desta compreensão. Destacamos, contudo, que já é possível observar aqui os primeiros apontamentos para a formulação do narcisismo, ainda que só em 1914 Freud o teorize com mais detalhamento.

Utilizando-se do conceito de fixação, trabalhado mais pormenorizadamente nos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905), Freud (1911/1996) afirma que este opera como um ponto disposicional no desenvolvimento libidinal dos psicóticos. Isso significa que é por meio da fixação no estádio do narcisismo que a alienação paranoica ganha forma. Em outras palavras,

resíduos de experiências fantasmáticas do passado ligados à história do sujeito, podendo ter sido vivenciadas de fato ou na fantasia.

O que acontece é o seguinte: chega uma ocasião, no desenvolvimento do indivíduo, em que ele reúne seus instintos [pulsões] sexuais (que até aqui haviam estado empenhados em atividades auto-eróticas), a fim de conseguir um objeto amoroso; e começa por tomar a si próprio, seu próprio corpo, como objeto amoroso, sendo apenas subseqüentemente que passa daí para a escolha de alguma outra pessoa que não ele mesmo, como objeto. Essa fase eqüidistante entre o auto-erotismo e o amor objetal pode, talvez, ser indispensável normalmente; mas parece que muitas pessoas se demoram por tempo inusitadamente longo nesse estado e que muitas de suas características são por elas transportadas para os estádios posteriores de seu desenvolvimento. De importância principal no Eu (self) do sujeito assim escolhido como objeto amoroso já podem ser os órgãos genitais. A linha de desenvolvimento, então, conduz à escolha de um objeto externo com órgãos genitais semelhantes – isto é, a uma escolha objetal homossexual – e daí ao heterossexualismo (FREUD, 1911/1996, p. 68-69).

De posse dessa concepção inicial sobre os estádios de desenvolvimento da libido, Freud (1911/1996) estabelece uma distinção entre a paranoia e a esquizofrenia (demência precoce) fundamentando-se nas fases em que ocorre a fixação libidinal, ainda que o autor aponte para a rejeição como o mecanismo de defesa característico das psicoses, de maneira geral.

Como dissemos acima, na paranoia a libido, quando ativada por alguma circunstância, retorna regressivamente ao narcisismo. No entanto, ao percorrer este caminho, ativa a homossexualidade que até então se encontrava latente e ocasiona a sexualização da pulsão anteriormente inibida em sua finalidade, incorrendo numa consequente sexualização das relações sociais, desfazendo sublimações alcançadas durante o desenvolvimento do indivíduo. Esta trajetória é distinta na esquizofrenia, já que a libido não regride apenas ao narcisismo – que se manifesta sob a forma de megalomania –, mas a um abandono completo do amor objetal e, consequentemente, a um retorno ao auto- erotismo infantil, sem que a homossexualidade seja ativada. As razões desse percurso libidinal diferenciado, Freud (1911/1996) não nos esclarece. O que o autor nos deixa claro é que a homossexualidade não desempenha, na esquizofrenia, a mesma função importante na etiologia da enfermidade, como ocorre na paranoia.

Em 1914, nas formulações sobre o narcisismo, Freud (1914/2004) traz novamente para o primeiro plano as discussões sobre as psicoses, distinguindo-as dos processos neuróticos. Baseado na concepção de libido do Eu, Freud (1914/2004) descreve os mecanismos dessas duas categorias clínicas, demarcando uma separação entre a característica psicótica, a retração da libido para o Eu, e o mecanismo empreendido pela

neurose, qual seja, a introjeção para o campo fantasmático, como já vimos no segundo capítulo.

Leite (2003) nos alerta para uma dos pontos mais relevantes nesta teoria do narcisismo: esclarecer que a questão homossexual na paranoia trata-se, primeiramente, a uma problemática na estruturação do Eu.

O desencadeamento psicótico faz referência a uma sustentação psíquica deficitária do sujeito que necessita do outro, como o duplo de si, a fim de preservar a sua integridade. Portanto, um apelo a uma instância terceira (no caso de Schreber, a assunção a um importante cargo) provoca a desagregação psicótica (fantasia de fim de mundo), uma vez que indica a presença de uma alteridade não suportada pelo Eu.

Ainda nesta obra, Freud (1914/2004), por meio da análise das formações delirantes da paranoia, empreende uma discussão acerca da constituição do agente censor (ainda não denominado de Supereu), cuja função garante a satisfação narcísica decorrente do Ideal-de-Eu. Para tanto, o indivíduo é frequentemente avaliado, observado, medido, por este ideal. Sendo assim, “foi a influência crítica dos pais que levou o doente a formar seu Ideal-de-Eu, que lhe é transmitido pela voz e tutelado pela consciência moral” (FREUD, 1914/2004, p. 114).

Podemos observar, então, a existência de um olhar que provém da voz, ou de uma voz que vê, cujo investimento libidinal é de origem narcísica, libido homossexual. Isto significa que “a interiorização da voz na subjetividade ocorre com base na adjunção de grandes quantidades de libido homossexual à voz ouvida, inicialmente, de fora” (LEITE, 2003, p. 42). A retirada da libido desta voz internalizada promove seu retorno ao lugar originalmente exterior, confrontando o sujeito com essa exterioridade vivida como hostil.

Esse texto freudiano evidencia que a libido homossexual diz respeito ao campo da identificação narcísica, um momento essencial no processo de estruturação do Eu. Sendo assim, há um investimento sexual no Eu, que não se refere a uma escolha homossexual de objeto. No momento em que a libido homossexual é retirada, há um concomitante desmoronamento do Eu, que se apresenta, no Caso Schreber, como a já mencionada fantasia de fim de mundo.

Até o presente momento, os pilares da paranoia constituem-se pela fixação/identificação narcísica, o complexo paterno e modificação da realidade, que

interferem diretamente na construção dos delírios. Veremos também que Freud (1911/1996) desenvolve um interessante pensamento acerca dos delírios nessa afecção psicótica.