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O Eu como Instância Psíquica: A Segunda Tópica

3. O EU E SEU PROCESSO DE ESTRUTURAÇÃO EM FREUD E LACAN

3.10. O Eu como Instância Psíquica: A Segunda Tópica

Relembrando nosso objetivo de elucidar a temática da gênese do Eu e sua constituição, até o presente momento deste trabalho vimos que as principais mudanças teóricas da noção do Eu e de seu processo de estruturação na teoria freudiana se deram em 1914, com advento de seu artigo sobre o narcisismo. Freud (1914/2004) faz do narcisismo uma forma de investimento pulsional necessária ao desenvolvimento do sujeito, tornando- se um dado estrutural. A introdução deste conceito implica a definição de um Eu que não surge desde o princípio da existência do indivíduo, nem é resultado de diferenciações progressivas, mas que exige, para se constituir, uma nova ação psíquica. As viradas iniciadas nesse artigo, juntamente com outras teorizações posteriores – tais como, o segundo dualismo pulsional e a compulsão à repetição como o que está para além do princípio de prazer –, culminaram com a formulação da segunda tópica do aparelho psíquico, em O Eu e o Isso (1923/2007), na qual o Eu adquire o caráter de instância, dentre outros fatores, pela necessidade de um melhor ajuste do conflito psíquico.

Se na primeira tópica o aparelho psíquico era composto pelos sistemas Inconsciente, Consciente e Pré-consciente, com a segunda tópica vemos o surgimento das instâncias: Eu, Isso e Supereu, que reagrupam as características da tópica anterior. Neste modelo, o Eu atuaria como agente de defesa, o Supereu como um agente de interdições e o Isso como um pólo pulsional. Podemos, então, definir as atribuições do Eu nos seguintes termos: proceder ao recalque, ser a sede das resistências, gerir as relações entre o princípio de prazer e realidade, participação da censura onírica, além das funções motoras e

cognitivas. Em linhas gerais, ao Eu cabe o papel de mediador que deve considerar as exigências antagônicas realizadas pelo mundo externo e o Isso. Com essa nova compreensão das relações estruturais que integram a esfera psíquica, a própria noção de conflito do qual a neurose se deriva sofre mudanças; ao invés da oposição se dar entre o consciente e o inconsciente, ela passa a ser considerada como um conflito entre o Eu coeso e um recalcado que dele se cindiu.

Uma importante constatação é feita por Freud em O Eu e o Isso (1923/2007), no que se refere à natureza do Eu. A partir da verificação de processos no Eu que anteriormente eram considerados como exclusivamente do âmbito do sistema inconsciente, Freud (1923/2007) chega à conclusão da existência de um núcleo inconsciente do Eu, que aponta para sua imersão no Isso.

De acordo com Freud (1933/1996), na Conferência XXXI: A Dissecção da Personalidade Psíquica, o Eu é uma parte do Isso que sofreu uma modificação pelo contato com a realidade e que visa representar o mundo externo perante o Isso. Este último é descrito por Freud (1933/1996) como uma instância repleta de energias pulsionais que não possuem organização, sujeitas ao princípio de prazer e, portanto, que lutam para a satisfação de suas necessidades. Com a diferenciação estabelecida entre o Eu e o Isso, surge uma modificação, ou, no dizer do autor, um aprimoramento da teoria sobre o narcisismo. Enquanto em À Guisa de Introdução ao Narcisismo (1914/2004) o Eu era considerado como o grande reservatório da libido, de onde partiam os investimentos para os objetos, agora o Isso passa a ter esse armazenamento libidinal, enviando-a aos objetos. Em O Eu e o Isso o autor nos diz:

De início, toda a libido está ainda acumulada no Id [Isso], enquanto o Eu ou se encontra ainda em processo de formação ou já se formou, mas ainda é frágil. Nessa fase é o Id [Isso] que emite uma parte desta libido, investindo-a nos objetos. Mais adiante, quando já está mais fortalecido, o Eu tenta se apoderar ele mesmo desta libido objetal enviada pelo Id [Isso] e busca se impor como objeto de amor ao Id [Isso]. O narcisismo do Eu é, desta forma, um narcisismo secundário que foi retirado dos objetos (FREUD, 1923/2007, p. 55)

Esses investimentos objetais por parte do Isso procedem de suas exigências pulsionais. A fim de desviar a libido do Isso para si, o Eu identifica-se ao objeto e recomenda-se ao Isso em lugar do objeto. Durante todo o decurso de sua vida, o Eu assume

dentro de si uma grande quantidade de precipitados dos objetos, por esse motivo há a ênfase na identificação como um fator preponderante na gênese do Eu. Colocando-se como objeto de amor para o Isso, o Eu deve buscar a execução de suas intenções, descobrindo a melhor maneira de realizá-las.

3.10.1. O Surgimento do Supereu

Freud (1923/2007) nos indica que a diferenciação entre o Eu e o Isso pelo contato com o ambiente e a origem dos primeiros investimentos objetais no Isso resultam na formação de um precipitado no interior do Eu: o Supereu. A essa nova instância atribui- se as funções de auto-observação, de moralidade e de manter o ideal. Como podemos ver, essas funções assemelham-se àquelas descritas como pertencentes à censura e consciência moral na primeira tópica.

A origem do Supereu remonta ao complexo de Édipo, essa vinculação afetiva tão importante na infância. Freud (1923/2007) descreve esse acontecimento de modo simplificado na criança do sexo masculino. O menino desenvolve pela mãe uma relação baseada num investimento dirigido ao objeto, relacionada com o seio materno. Este é o modelo de escolha objetal que foi denominado de veiculação sustentada, ou anaclítico: a mulher que nutre, ou o homem que protege. Em sentido oposto, o menino visa apoderar-se da figura do pai através da identificação. Estes dois tipos de relacionamento permanecem existindo juntos durante algum tempo, até o momento em que há uma intensificação dos desejos sexuais em relação à mãe e da percepção de que o pai é um obstáculo para a realização desses desejos, constituindo-se, assim, o complexo de Édipo. A identificação ao pai passa a assumir uma nuance hostil que se dirige ao desejo de afastar o pai e substituí-lo junto à mãe. A partir de então, toda a ambivalência presente desde o início da identificação se manifesta, fazendo com que o relacionamento com o pai se torne ambivalente. Desta maneira, vemos que, no caso do menino, o complexo de Édipo simples é composto por uma atitude ambivalente para com o pai e investimentos objetais depositados na mãe.

A dissolução deste complexo relaciona-se com o abandono do investimento objetal dirigido à mãe, que pode ter o seu lugar preenchido por uma identificação com a mãe ou por uma intensificação da identificação com o pai; sendo esta última saída

característica da masculinidade. Na menina, o desfecho do Édipo pode incorrer numa intensificação da identificação com a mãe, estabelecendo uma saída feminina, de modo análogo ao do menino, ou numa identificação ao pai e uma conseqüente saída masculina. “Parece, então, que o fato de a situação edípica resultar em uma identificação com o pai ou com a mãe depende, em ambos os sexos, das inclinações masculinas e femininas presentes na criança desde o início” (FREUD, 1923/2007, p. 43).

Fundamentado na noção de bissexualidade constitucional do indivíduo, Freud (1923/2007) nos indica que o complexo de Édipo se dá de maneira mais complexa e ambivalente do que a descrita acima. Definindo-o como complexo de Édipo completo, o autor explicita: o menino não mantém apenas uma posição ambivalente na relação com o pai e uma escolha objetal afetuosa direcionada à mãe, ele também se comporta como uma “menina”, assumindo conjuntamente “em relação ao pai uma atitude carinhosa e feminina e a correspondente atitude de ciúme e hostilidade em relação à mãe” (FREUD, 1923, p. 43).

Quando da dissolução deste complexo de Édipo completo produzir-se-ia uma identificação paterna e uma identificação materna que se amalgamariam no que Freud (1923/2007) chama de Supereu ou Ideal-de-Eu. No dizer do autor,

Dessa forma, podemos supor que, como resultado mais comum dessa fase sexual regida pelo complexo de Édipo, encontraremos no Eu um precipitado que consiste do produto dessas duas identificações de alguma forma combinadas. Essa mudança que ocorre no Eu terá, dali em diante, um papel especial, apresentando-se frente ao outro conteúdo do Eu na forma de um Ideal-de-Eu ou de um Supra-Eu [Supereu] (FREUD, 1923/2007, p. 44)

Freud (1923/2007) nos alerta que o Supereu (ainda indistinto, aqui, do Ideal-de- Eu) não pode ser considerado somente como um resíduo das primeiras escolhas objetais do Isso, mas que ele representa uma formação reativa a essas escolhas. Portanto, a relação do Supereu com Eu “não se esgota na advertência: ‘você deve ser assim (como o seu pai)’, mas também engloba a proibição: ‘você não pode ser assim (como seu pai); isto é, fazer tudo o que ele faz, algumas coisas permanecem prerrogativas dele’” (FREUD, 1923/2007, p. 44, grifos do autor). Desta forma,

Ambos os pais, mas principalmente o pai, eram vistos como obstáculo à realização dos desejos edípicos, de modo que, para se fortalecer e poder promover o recalque, foi necessário o Eu infantil tomar emprestado esse

obstáculo externo e erigi-lo dentro de si. Em certa medida, empresta para tanto a força do pai (...). (FREUD, 1923/2007, p. 45)

Ao Supereu cabe reter o caráter paterno e, numa proporção, quanto maior for a intensidade do complexo de Édipo e quanto mais rápido for realizado seu recalque (influenciado por autoridade, dogmas religiosos, escola), mais o Eu será dominado pelo Supereu com severidade, sob a forma de consciência moral ou sentimento inconsciente de culpa.

Vemos, então, que a criação de uma nova instância superior dentro do Eu está intimamente ligada ao destino do complexo de Édipo. Dito de outro modo, o Supereu é o “herdeiro” desta vinculação afetiva de suma importância no período infantil, na qual a criança renunciou aos investimentos objetais depositados nos pais. Freud (1923/2007) nos afirma que o Supereu ou Ideal-de-Eu é o representante da nossa relação com os pais. Esses seres superiores são conhecidos na infância e tornam-se admirados, temidos, até a ocasião em que eles se “abrigam” dentro do indivíduo.

A fim de demonstrar como o Ideal-de-Eu ou Supereu correspondem àquilo que há de mais elevado no homem, Freud (1923/2007) declara que esta instância é produto de uma formação substitutiva que entrou no lugar do sentimento de nostalgia e anseio pelo pai, contendo a raiz de formação de todas as religiões. Portanto, a sensação de religiosidade humilde para a qual o fiel se reporta é resultante de seu juízo acerca de suas próprias insuficiências. Estas últimas são provenientes da comparação que o Eu faz com o seu Ideal.