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4.2. Lacan e as Psicoses: Uma leitura a partir do Caso Schreber

4.2.1. O Outro nas Psicoses

Como já vimos, o Estádio do Espelho é período do desenvolvimento responsável pela formação do Eu através da imagem do outro. Como nos diz Quinet (2011, p. 10), “trata-se da constituição do Eu como imagem antecipada onde se encontram unificadas as pulsões auto-eróticas que cortam o corpo em figuras que encontramos na clínica como imagens do corpo despedaçado”. Portanto, o Eu é estruturado por uma imagem que o semelhante lhe fornece como um corpo unificado. Essa primeira imagem do sujeito refere-se ao Eu-ideal, por meio do qual o sujeito se apreende enquanto humano. Podemos afirmar que a unidade do Eu é completamente imaginária, uma vez que ela se estabelece por uma imagem, a do semelhante e não equivale a unidade de maturação corporal.

O mecanismo de formação do Eu por intermédio da imagem do outro oferece uma característica ao Eu, a saber: a de ser essencialmente paranoico, pois o Eu nunca está só, mas sempre na companhia de seu duplo especular, o Eu-ideal. Por essa razão, a identificação ao outro é imediata, fazendo com que este se torne concomitantemente rival e igual, inserindo o sujeito numa identidade alienante. A alienação ao outro com quem rivaliza e a partir do qual é formado, demarca o aspecto de desconhecimento constitutivo do Eu. O outro se torna, então, um objeto de identificação, agressão e paixão. Nesses termos, observamos que o par a – a’, o outro – eu mesmo, presente no estádio do espelho, corresponde ao modelo do registro imaginário no sujeito.

Como a prematuridade no estádio do espelho não é apenas biológica, mas também simbólica, a criança necessita do Outro no lugar do código. Não que o simbólico não estivesse presente antes mesmo de seu advento, mas é nesse momento que o Outro aparece – enquanto alteridade totalmente reportada à linguagem – convocando a inserção do indivíduo nos sistemas significantes, com a finalidade de organizar uma representação apresentada pela imagem. Sendo assim, dizemos que não existe o Eu sem uma referência ao Outro, uma vez que é exatamente o Outro que marca o indivíduo pelo significante.

Podemos nos questionar: como o Outro aparece no decurso do desenvolvimento individual? Lembremos que o período relativo ao estádio do espelho insere-se naquilo que Lacan, em seu Seminário 5 (1957-58/1999), denomina como o primeiro tempo lógico do

Édipo. Nesse tempo, a criança é identificada ao objeto de desejo da mãe. Uma construção como esta se torna possível por intermédio da equivalência simbólica postulada por Freud (1924/1996), em A Dissolução do Complexo de Édipo, que corresponde o bebê ao pênis, ou o bebê ao falo, considerando o pênis enquanto função e que coloca a criança em posição de identificação ao falo materno. Temos, assim, três elementos, quais sejam: a mãe, a criança e o falo, sendo equivalentes a criança e o falo. Como ser falante, a mãe é submetida a uma Lei simbólica e é através dela que a criança recebe a influência dessa lei. Porém, precisamos lembrar que, como pessoa responsável pelos primeiros cuidados da criança, a lei da mãe é onipotente, já que só ela é capaz de suprir e satisfazer as necessidades da criança, tendo a opção de satisfazê-las, ou não. Isso significa que a lei materna onipotente é uma lei que não pode ser controlada e que está sujeita as vontades da própria mãe. “Trata- se de uma lei de caprichos, à qual a criança acha-se assujeitada” (QUINET, 2011, p. 10). Nesse primeiro tempo edípico a mãe se configura para a criança como um Outro absoluto, sem lei. Como nos diz Lacan (1955-56/2008), em seu Seminário 3, “absoluto, isto é, que ele é reconhecido, mas que ele não é conhecido”.

No segundo tempo, Lacan (1957-58/1999) declara que esta reintegração da criança por parte da mãe sofre um impedimento, há a intervenção de um terceiro que introduz uma lei de interdição, isto é, uma proibição de que a criança se torne um objeto de uso da mãe. Este terceiro aparece pelo discurso da mãe, é evocado por ela, mostrando para a criança que o desejo da mãe se encontra em outro lugar e que ela também é submetida a uma lei.

Configurada como uma intervenção na ordem da palavra, esta lei é realizada pelo pai. “Não o pai natural, mas do que se chama o pai” (LACAN, 1955-56/2008, p. 118), ou seja, aquilo que no discurso da mãe representa o pai. E é justamente por intermédio da intervenção paterna que há inserção da lei no lugar do Outro, permitindo consistência à simbolização. Em outras palavras, o que ocorre é uma castração simbólica, uma castração no Outro, que constitui o inconsciente como barrado ao sujeito, momento que corresponde ao recalque originário. O efeito desta castração simbólica comparece no imaginário enquanto falta. Diante disso, Lacan (1957-58/1999, p. 558) nos alerta: “o estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A. O que nele se desenrola articula-se como um discurso (...)”.

A inclusão da castração no Outro o faz calar, mas também o torna inconsciente. O Outro do neurótico é inconsciente, pois é barrado pelo significante da castração, acarretando em uma falta. “O Outro falta para o neurótico, falta por ele ser inconsistente” (QUINET, 2011, p. 18). Mas, o que ocorre no caso das psicoses?

O Outro para os psicóticos não é barrado, ele é consistente. O paranoico lhe oferece um papel subjetivo, nomeando aquele que ordena coisas através de emissão de ondas que se transformam em vozes, ainda que distantes, como no caso de Schreber. O Outro nas psicoses é absoluto, que submete o sujeito aos seus caprichos. Considerando que nas neuroses e psicoses o Outro representa o tesouro dos significantes, o que distingue essas duas estruturas é justamente a inserção da lei no Outro, que é ausente no caso das psicoses. Isso ocorre porque a mãe, em sua relação com própria falta, coloca a criança no lugar de objeto cuja função é tamponar esse vazio, comprometendo uma possível intervenção paterna que indique um para além da criança. Como nos esclarece Souza (1999),

Na psicose o Outro é diferente. Ostensivo, constrange o sujeito com sua presença maciça, inundante e opressora. Presença de ameaça e perigo, o Outro se faz perceber e, em especial, se faz ouvir. Deixa de ser quieto e mudo e passa a se mexer, a fazer barulho: fala, grita, impõe sua voz, interpela o sujeito. Acossa-o com observações e comentários de seus pensamentos, palavras e atos; decreta ordens, juízos e condensações; brada injúrias e aviltam o sujeito em seu ser e, eis o pior, goza. Na psicose, o Outro goza do sujeito, do espírito ou do corpo do sujeito (SOUZA, 1999, p. 84).

A exclusão da lei no campo do Outro, faz com que o psicótico seja defrontado com o Outro absoluto que lhe fornece ordens a todo tempo. Assim, vemos que a posição estrutural na qual o psicótico se coloca é a de ser o objeto de uso do Outro, submetido à onipotência e aos imperativos deste. Segundo Quinet (2011, p. 33), “o sujeito é perseguido pelo Supereu personificado”.

Esse Outro absoluto que não contém a inscrição da lei foi tornado mito por Freud (1913/1996) na figura do pai da horda primeva, como já vimos em Totem e Tabu. O assassinato do pai primitivo cometido pelos irmãos e a posterior elevação do totem que o representa referem-se à transição do pai à metáfora da lei, ou seja, à introdução da lei simbólica. O Outro nas psicoses, por sua vez, em virtude de não comportar essa lei,

manifesta-se como uma figura que goza do psicótico como um objeto que lhe pertence. No caso Schreber, podemos ver isso claramente retratado na figura divina.