• Nenhum resultado encontrado

O Deus de Schreber: o Pai e a Figura Divina em Freud

4.1. O Caso Schreber

4.1.1. O Deus de Schreber: o Pai e a Figura Divina em Freud

Em decorrência da presença divina nos delírios de emasculação, de redenção e de perseguição, passamos para o segundo ponto, indicado por Freud (1911/1996), do sistema delirante de Schreber: a sua atitude para com Deus, marcada por contradições e singularidade, e que requer um pouco mais de fé para nos mantermos na crença de que há um método na loucura do paciente. Dentre os elementos desta relação, que compõem o sistema “teológico-psicológico”, destacam-se quatro: os nervos, o estado de beatitude, a hierarquia divina e os atributos de Deus.

Os nervos exercem uma função importante na medida em que contém a alma humana. Existem os nervos responsáveis pelo recebimento de percepções sensoriais e aqueles que desempenham as funções da mente, conhecidos como nervos do entendimento. Os nervos apresentam conformidade com a estrutura divina, pois Deus é constituído somente de nervos, enquanto os homens são compostos por nervos e corpo. Os nervos divinos, que são ilimitados, diferenciam-se dos nervos humanos por sua intensidade e

capacidade criativa, através da qual são denominados de raios. Para Schreber, há uma relação intrínseca entre Deus, o Sol e o céu estrelado.

Ao criar algo, Deus fornece para a criatura parte de seus nervos, que deverá ser devolvida após a morte desta. Enquanto estão vivas, Deus não se comunica com as almas humanas, mas depois de sua morte, os nervos humanos passam por uma espécie de purificação, a fim de se reunirem com Deus sob a forma de ante-salas do Céu, completando um ciclo determinado pela Ordem do Mundo. Podemos dizer, então, que desde a criação do mundo, momento em que Deus abandonou-o às suas próprias leis, as atividades divinas se restringem a chamar de volta para Si os nervos dos mortos que ingressaram em estado de beatitude.

Segundo Schreber (1903/1995), o estado de beatitude é o resultado do processo de purificação das almas e se caracteriza essencialmente por um sentimento de voluptuosidade, associado à contemplação de Deus, ou seja, um prosseguimento acentuado do prazer sensual experimentado na Terra. Vale destacar que as almas purificadas aprendem a língua falada pelo próprio Deus, denominada de língua fundamental, uma espécie de alemão arcaico, repleto de eufemismos e constantemente empregado pelo paciente.

O Deus de Schreber é uma entidade complexa, dividida e que comporta uma hierarquia. Enquanto as ante-salas do Céu, ou almas purificadas, compõem os domínios anteriores de Deus, o próprio Deus também é descrito como os domínios posteriores de Deus. Esses domínios posteriores comportam uma subdivisão em duas partes: o Deus inferior, chamado Ariman, que se distinguia do Deus superior, nomeado de Ormuzd. Para diferenciar os dois, Schreber (1903/1995) afirma que o Deus inferior apresenta uma ligação com os povos de uma raça escura (semitas), ao passo que o Deus superior liga-se aos de uma raça loura (arianos). Esses Deuses, superior e inferior, devem ser considerados como Seres separados, apesar do Deus Todo-Poderoso se configurar como uma unidade. Cada uma dessas subdivisões divinas apresenta seu próprio instinto de autopreservação, um em relação ao outro, e seu próprio egoísmo, de forma que eles se encontram em conflito, empenhando-se para realizar uma ultrapassagem à frente do outro.

Esse instinto de preservação foi incitado em Deus no momento em que os nervos de Schreber atingiram um nível tão alto de excitação que se tornaram capazes de

exercer atração sobre os nervos de Deus, da qual ele não consegue se libertar, sob pena de ameaçar a continuidade de sua existência. Tal acontecimento – responsável pelos maiores sofrimentos vivenciados por Schreber – mostra uma falha na Ordem do Mundo, qual seja, uma ameaça para a existência do próprio Deus, já que Ele se achava afastado da perfeição que as religiões Lhe atribuem. Não está entre os atributos divinos a compreensão dos homens vivos, em decorrência do costume de comunicar-se apenas com os mortos.

(...) reina aqui um mal-entendido fundamental, que desde então atravessa toda a minha vida como um fio vermelho, e que consiste justamente no fato de que

Deus, de acordo com a Ordem do Mundo, não conhecia verdadeiramente o homem vivo, nem precisava conhecer, mas sim, de acordo com a Ordem do

Mundo, só tinha relações com cadáveres (SCHREBER, 1903/1995, p. 66, grifos do autor).

Schreber se torna, então, o alvo de uma conspiração empreendida por Deus, como consequência da compreensão errônea que Ele tem dos homens vivos. Sendo assim, a figura divina considera o paciente como um idiota, isto é, um desprovido de entendimento, e o submete a provações violentas, tais como um sistema de pensamento forçado, cujo objetivo é o de comprovar a sua idiotia. As provações divinas, seus milagres e vozes podem se repetir por muito tempo, uma vez que Deus não é capaz de aprender nada através da experiência.

A conduta divina para com o paciente é explicada ora pela natureza das almas, ora pela necessidade de autopreservação divina associada à influência da alma de Flechsig. A doença é concebida, nesse sentido, como uma luta travada entre o homem Schreber e Deus, cuja vitória pertence ao ser humano, ainda que seja mais fraco, pois a Ordem do Mundo está a seu favor. É válido destacar que a Ordem do Mundo nos aparece como uma construção prodigiosa que desempenha uma função reguladora e por diversas vezes transcende aos poderes de Deus.

Com o decorrer dos anos, a influência divina não exercia mais os efeitos anteriormente aterrorizantes, fazendo com que Schreber passasse ao lugar de escarnecedor de Deus. Para o paciente, o direito de escarnecer da figura divina só pertencia a ele, de modo que para todas as outras pessoas Deus continuaria a representar a função de Todo- Poderoso, Criador do Céu e da Terra, a quem se deve prestar reverência e adoração.

Esse relacionamento ambivalente, porém íntimo, com Deus é o alicerce sobre o qual Schreber estabelece uma possibilidade de reconciliação final entre os dois. No momento em que se asseguram de uma experiência de voluptuosidade espiritual ao serem absorvidos pelo corpo do paciente, os raios divinos retiram seu componente hostil. Encontrar a voluptuosidade em Schreber torna-se uma exigência divina e a ausência do cultivo desta volúpia, não oferecendo a Deus o que Ele demanda, é passível de punição por meio da retirada de Seus raios. De acordo com Schreber (1903/1995),

(...) Deus exige um gozo contínuo, correspondente às condições de existência das almas, de acordo com a Ordem do Mundo; é meu dever proporcionar-lhe esse gozo, na forma de um abundante desenvolvimento de volúpia de alma, à medida que isso esteja no que foi criada; se, ao fazê-lo, tenho um pouco de prazer sensual, sinto-me justificado em recebê-lo, a título de um pequeno ressarcimento pelo excesso de sofrimentos e privações que há anos me é imposto (...) (SCHREBER, 1903/1995, p. 219, grifos do autor).

É seguindo esta lógica de construção delirante que Schreber chega à convicção de que Deus lhe exigia a feminilidade para Sua satisfação. Sendo assim, os raios divinos absorvidos se transformaram, no corpo do paciente, em nervos femininos de volúpia e, consequentemente, lhe forneceram um contorno corporal feminil.

Nesta atitude de Schreber para com Deus, Freud (1911/1996) nos chama a atenção para o misto de rebeldia e reverência que podemos claramente encontrar e que não pode ser desconsiderada para a análise do caso. Além disso, outro dado relevante que Schreber nos traz, e que Freud (1911/1996) salienta, diz respeito a sua descrença na referência a Deus, bem como a seu ascetismo sexual anteriormente ao aparecimento da doença. Schreber alega justamente o fato de nunca ter sido capaz de possuir uma crença firme em um Deus pessoal como um argumento em prol da defesa da realidade de seus delírios. Entretanto, após a irrupção da moléstia, o paciente “se torna crente em Deus e devoto da voluptuosidade” (FREUD, 1911/1996, p. 41). Essa fé reconquistada na figura divina apresenta características singulares, assim como a fruição sexual atingida para si era de um raro tipo. Não se tratava da liberdade sexual masculina, mas, sim, dos sentimentos sexuais femininos. Schreber passou a adotar uma postura feminina para com Deus, em virtude se sentir como Sua esposa.

Freud (1911/1996) realiza uma tentativa de interpretação, através da qual há a aproximação entre as figuras divina e a paterna e suas interfaces com a sexualidade, a fim de compreender o delírio de Schreber. Visamos, então, observar como se estabelece essa aproximação entre o Deus e o Pai na história do sujeito, já trabalhada teoricamente no primeiro capítulo.

Com a leitura das Memórias, Freud (1911/1996) percebe que Flechsig e Deus estão alçados à mesma categoria. Como vimos, tanto o primeiro, quanto o segundo desempenharam papéis de perseguidor no decurso do delírio. O que chama a atenção nessa construção é que a figura persecutória se cinde em duas, Flechsig e Deus, da mesma maneira como cada uma delas também se divide em duas personalidades: Flechsig superior e Médio, Deus superior e inferior. Para o autor, esse processo de decomposição caracteriza a paranoia, uma vez que ela reduz os produtos das condensações e identificações realizadas no inconsciente a seus elementos novamente.

Se a decomposição do perseguidor indica uma reação paranoica estabelecida antecipadamente entre as duas figuras e se Flechsig foi inicialmente alguém por quem Schreber nutriu sentimentos afetuosos, então Deus deve corresponder ao aparecimento de alguém que o paciente amou e, possivelmente, alguém com um maior grau de importância. Sobre a relação entre os paranóicos e seus perseguidores, Freud (1911/1996) nos diz,

(...) a pessoa a quem o delírio atribui tanto poder e influência, a cujas mãos todos os fios da conspiração convergem, é, se claramente nomeada, idêntica a alguém que desempenhou papel igualmente importante na vida emocional do paciente antes de sua enfermidade, ou facilmente reconhecida como substituto dela. A intensidade da emoção é projetada sob a forma de poder externo, enquanto sua qualidade é transformada no oposto. A pessoa agora odiada e temida, por ser um perseguidor, foi, noutra época, amada e honrada (FREUD, 1911/1996, p. 50).

Nessa perspectiva, Freud (1911/1996) é levado à conclusão de que essa pessoa de suma importância na vida do paciente possivelmente é o seu pai. Considerando as informações que o autor dispunha acerca do pai de Schreber e a influência deste último enquanto médico reconhecido, Freud (1911/1996) lança a hipótese de que na lembrança afetuosa do filho o pai foi transfigurado para a figura divina.

Por meio da análise da atitude dos meninos para com o pai, Freud (1911/1996) nos indica que ela consiste numa mistura entre subordinação e rebeldia, semelhante a que

verificamos na relação de Schreber com Deus, considerada como uma reprodução da primeira, entre filho e pai. Sendo assim, as diversas particularidades empregadas a Deus são pertencentes, primordialmente, ao seu pai. As atitudes de escárnio e as acusações realizadas tanto a Flechsig, quanto a Deus, consistiriam em respostas às censuras e críticas paternas, um mecanismo utilizado pelas crianças que “quando recebem uma reprovação, dirigem-na de volta, inalterada, à pessoa que a originou” (FREUD, 1911/1996, p. 61). O Sol em muitas situações é associado à figura divina no delírio de Schreber e, em virtude do vínculo peculiar que estabelece com ele, torna-se outro símbolo sublimado do pai.

Dessa maneira, Freud (1911/1996) nos aponta que o caso de Schreber também se encontra sob a égide do complexo paterno, uma vez que ele se encontra no eixo de sua estruturação delirante. O conflito com Deus deve ser explicado por meio do conflito infantil com o pai que amava. Na maioria das experiências infantis, o conflito é oriundo de uma interferência paterna a satisfação, geralmente auto-erótica, que a criança deseja obter. Os detalhes desse conflito, no caso de Schreber, não foram acessados por Freud (1911/1996); no entanto, supõe-se que tenham sido determinantes no conteúdo dos delírios do paciente. O que podemos extrair é que, neste caso, o impulso sexual infantil alcançou a vitória no estágio final de seu delírio, uma vez que “a voluptuosidade tornou-se temente a Deus e o Próprio Deus (o pai) nunca se cansava de exigi-la dele” (FREUD, 1911/1996, p. 64). É a castração, a ameaça paterna mais temida, que proporciona o material para sua fantasia de desejo de emasculação, ainda que de início ela tenha sido rejeitada e apenas posteriormente aceita. A partir das aproximações expostas por Freud (1911/1996) podemos nos questionar, então: quem foi o pai de Schreber?