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O Papel das Identificações na Constituição do Eu

3. O EU E SEU PROCESSO DE ESTRUTURAÇÃO EM FREUD E LACAN

3.8. O Papel das Identificações na Constituição do Eu

Observamos, então, que a identificação apresenta um papel importante no mecanismo de constituição do Eu e não somente o investimento pulsional, tão elucidado no artigo de 1914. Esse elemento não passa despercebido aos olhos de Freud que, na análise dos processos de luto e melancolia, se debruça sobre as relações entre o Eu e os objetos, e consequentemente sobre a identificação, compreendendo-a como processo que propicia o meio pelo qual a unidade do Eu é investida e como decorrente da relação com os objetos.

Em Luto e Melancolia (1917/2006), Freud descreve o que ocorre subsequentemente à perda do objeto, bem como o trabalho relacionado a essa perda. A principal referência é a noção de objeto e a natureza do vínculo entre ele e o sujeito. Trata- se de um vínculo amoroso forte que precisa ser desfeito, no caso da perda de objeto, para que se possa dar lugar a outros vínculos, isto é, para que seja possível a relação amorosa com outros objetos vindouros.

No luto, há um desinteresse pelo mundo exterior no momento seguinte a perda do objeto. Somente os objetos do mundo que estiverem estreitamente ligados ao objeto perdido são capazes de evocar algum interesse por parte do sujeito. Como resultado disso,

há uma impossibilidade de escolha de um novo objeto amoroso, já que essa escolha implicaria a substituição do objeto perdido por outro objeto. E como vimos a propósito do texto sobre o narcisismo, ninguém abandona a satisfação, o objeto de amor, de bom grado, pelo menos de maneira imediata. A dor provocada pela perda é seguida de uma inibição do Eu e de seu campo de atividades.

Esta inibição do Eu, bem como a restrição de sua esfera de atividades se explicam pelo fato do Eu estar absorvido pelo trabalho do luto. A perda do objeto amado exige que o Eu desfaça as suas ligações com ele. No entanto, como o abando é um processo gradativo, há uma perpetuação da existência do objeto perdido. As ligações com o objeto são evocadas e hiperinvestidas, fazendo com que o desligamento tenha que ser realizado a cada uma delas, até que o trabalho de luto se conclua, ou melhor, até o momento em que o Eu se livre das inibições que demarcaram o início deste trabalho.

A melancolia, por sua vez, é um processo muito semelhante ao luto. Também se refere a uma perda objetal e uma ausência de interesse pelo mundo, seguida de uma incapacidade em estabelecer novas relações amorosas. As peculiaridades que a distinguem do luto são relativas à auto-recriminação, depreciação de si acompanhadas de expectativa exagerada de punição. Outra diferença notável é que enquanto no luto o mundo se torna pobre e vazio, na melancolia é o próprio Eu; a auto-degradação e a constante recriminação podem nos indicar isso.

De posse dessas características, questionamo-nos como o trabalho de perda de objeto se opera no melancólico. Freud (1917/2006) nos responde que na melancolia, assim como no luto, existe uma perda objetal, mas na melancolia essa perda incorre na identificação com o objeto perdido. Ao invés da libido que foi investida no objeto perdido se deslocar para outro objeto, ela se recolhe para o Eu e estabelece uma identificação narcísica com o objeto. O que no luto se configura como uma perda de objeto, na melancolia se transforma em perda do Eu. Nessa resposta de Freud (1917/2006) reside o ponto de articulação entre a melancolia e o narcisismo. No entanto, para que as coisas se processem deste modo, o autor pressupõe que a escolha inicial de objeto seja do tipo narcísico, para que haja a possibilidade de conversão da escolha em uma identificação narcísica. Esse é o motivo pelo qual o investimento objetal regressaria ao narcisismo à medida que encontre algum obstáculo. Lembremos que esse tipo de escolha de objeto nos

foi apresentada por Freud (1914/2004) no artigo sobre o narcisismo, a saber, o tipo anaclítico e o tipo narcísico.

Florence (1994) nos alerta para os perigos que a melancolia pode causar a estrutura do Eu. De acordo com o autor, a introjeção da relação que o Eu estabelece com o objeto – relação esta que Freud (1917/2006) declara ser ambivalente – cliva o Eu. No entanto, ao invés da clivagem produzir uma tensão que abriria o Eu para igualar o objeto introjetado e o impeliria a procura de novos objetos, a identificação revela-se mortífera e destrutiva para o Eu. A perda do objeto não daria lugar ao luto, mas a uma ligação sádica – estágio de desenvolvimento que mais se aproxima ao conflito de ambivalência –, delirante, no cenário do Eu, fora de toda obediência à realidade. Dito de outro modo, “a identificação melancólica reconduz aos modos mais arcaicos da ambivalência, cliva o Eu em uma parte sádica, identificada com o objeto, e em uma parte perseguida pela fantasia do objeto” (FLORENCE, 1994, p. 131). Tendo visto que a identificação com o objeto perdido revela uma divisão interna do Eu, já não se pode pensar neste como uma unidade no interior do psiquismo.

Para fins de esclarecimento da pertinência dessa discussão acerca dos processos do luto e da melancolia no presente trabalho, precisaremos evocar quais as contribuições da afecção melancólica para compreendermos a constituição do Eu. A principal relevância deste texto de 1917 diz respeito à ênfase dada ao processo identificatório como essencial à estruturação do Eu. Todavia, é preciso lembrar que a análise da melancolia remete a identificação para uma fase oral de organização da libido, na qual o objeto é assimilado pela ingestão, introjetado, e aniquilado como tal, remontando à situação mítica descrita por Freud (1913/1996) em Totem e Tabu.

A temática da identificação vai reaparecer de maneira ampliada em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/1996) numa tentativa de esclarecer seu mecanismo não apenas vinculado a um caráter regressivo da libido e as configurações patológicas da melancolia, mas como um processo formador do Eu e de seus derivados, bem como dos inúmeros vínculos humanos, públicos e privados. Para tanto, Freud (1921/1996) nos apresenta três etapas da identificação:

[...] primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma

vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio de introjeção de objeto no ego [Eu]; e terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto de instinto [pulsão] sexual. (FREUD, 1921/1996, p. 117)

Tendo em vista traçar a diferença entre as noções de escolha objetal e identificação, Freud (1921/1996. p. 116, grifos do autor) nos diz: “É fácil enunciar numa fórmula a distinção entre a identificação com o pai e a escolha deste como objeto. No primeiro caso, o pai é o que gostaríamos de ser; no segundo, o que gostaríamos de ter, ou seja, a distinção depende de o laço se ligar ao sujeito ou ao objeto do ego [Eu]”.