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3. O EU E SEU PROCESSO DE ESTRUTURAÇÃO EM FREUD E LACAN

3.6. O Eu Ideal e o Ideal-de-Eu

Nesse texto de 1914, Freud parece utilizar indiscriminadamente os termos Eu- ideal e Ideal-de-Eu, sem deixar claro para quem lê se são conceitos diferentes ou se houve uma inversão involuntária das palavras. Segundo o autor,

O amor de si mesmo que já foi desfrutado pelo eu verdadeiro na infância dirige- se agora a esse Eu-ideal. O narcisismo surge deslocado desse novo Eu que é ideal e que, como o Eu infantil, se encontra de posse de toda a valiosa perfeição e completude. Como sempre no campo da libido, o ser humano mostra-se aqui incapaz de renunciar à satisfação já uma vez desfrutada. Ele não quer privar-se da perfeição e completude narcísicas de sua infância. Entretanto não poderá manter-se sempre nesse estado, pois as admoestações próprias da educação, bem como o despertar de sua capacidade interna de ajuizar, irão perturbar tal intenção. Ele procurará recuperá-lo então na nova forma de um Ideal-de-Eu. Assim, o que o ser humano projeta diante de si como seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância, durante a qual ele mesmo era seu próprio ideal (FREUD, 1914/2004, p. 112).

A confusão desta passagem é resultante da compreensão de que o Eu-ideal e o Ideal-de-Eu sejam sinônimos e, a partir desse engano, desconsidera-se uma das teorizações mais importantes do artigo sobre o narcisismo.

O Eu-ideal refere-se a uma imagem do Eu provida de todas as perfeições sobre a qual recai o amor de si mesmo de que na infância desfrutou o Eu verdadeiro, no dizer de Freud (1914/2004), ou o Eu-real, para Lacan (1953-54/2009). Dessa asserção podemos inferir que existe um Eu original, primitivo, constituído pela imagem refletida que o indivíduo tem de seu próprio corpo e considerado como uma forma primeira tanto do Eu- ideal, quanto do Ideal-de-Eu, como também há um Eu-ideal, que vem a ser a imagem

idealizada do Eu. Uma imagem como esta é, em grande parte, erigida pelos pais, que a projetam na criança, fazendo com que ressurja o narcisismo abandonado por eles próprios em favor da realidade. Essa formação narcísica de vínculo com o objeto renasce com o amor pelo filho, atribuindo-lhe toda sorte de perfeição e mascarando todos os seus defeitos. Desta maneira, a criança passa a ter direito sobre tudo que os pais tiveram que renunciar. No lugar de sua majestade, o bebê, ela não conhecerá restrições às suas vontades, tampouco estará sujeita às necessidades objetivas.

Sobre esta forma do Eu-ideal, vale destacar que não se trata de uma fase inicial do Eu, posteriormente superada e substituída por outra, a saber, do Ideal-de-Eu, e que uma vez superada tende ao desaparecimento. Ao contrário, o Eu-ideal permanece, transformado, no indivíduo adulto.

Ainda que não totalmente suprimida, nos perguntamos: por que a criança sai do narcisismo primário, atravessando essa posição do Eu-ideal, essa suposta completude imaginária? Tendo visto que os pais idealizam uma criança perfeita, distinta das demais por suas qualidades incomparáveis, fazendo com que renasça o seu próprio narcisismo outrora perdido, nos é possível pensar que os pais não amam exatamente o filho que lhes é apresentado, mas as idealizações que fazem a respeito dele. Assim, a criança ultrapassa o narcisismo primário quando se vê confrontada com um ideal com o qual tem de se comparar.

O Ideal-de-Eu, por seu turno, se configura como essa “nova forma” tomada pela libido narcísica, como vimos na citação acima, algo externo ao sujeito, exigências que ele terá que satisfazer e que são situadas no lugar da lei. A descrição fornecida por Freud (1914/2004) do deslocamento da libido para a nova forma do Ideal-de-Eu é seguida, não sem propósito, por uma distinção entre sublimação e idealização. A diferença se coloca da seguinte maneira: enquanto a sublimação refere-se à libido objetal que encontra satisfação num objeto não sexual, a idealização é um processo que envolve o objeto sem provocar modificações em sua natureza, ou seja, sem substituições de um objeto sexual por outro não sexual. Sendo assim, a idealização se torna possível tanto no campo da libido do Eu, quanto na libido de objeto, lançando luz sobre o conceito de Ideal-de-Eu.

O caráter externo do Ideal-de-Eu fica claro na medida em que Freud (1914/2004) elucida a necessidade de distanciamento em relação ao narcisismo primário

para que o Eu prossiga com seu desenvolvimento e declara que esse afastamento ocorre através de um deslocamento da libido para “um Ideal-de-Eu que foi imposto a partir de fora” (FREUD, 1914/2004, p. 117). Para onde aponta essa imposição vinda de fora? Considerando a forma como Lacan (1953-54/2009) distingue o Eu-ideal e o Ideal-de-Eu, no seguinte dito: “um está no plano do imaginário, o outro no plano do simbólico” (LACAN, 1953-54/2009, p. 179), podemos pensar que se trata de um lugar para fora do imaginário, para o lugar das exigências da lei, ou dito de maneira mais explícita, para o lugar do simbólico20. No entanto, Freud (1914/2004) nos coloca que, no processo de desenvolvimento do Eu, assim como há um distanciamento, existe também uma tentativa de recuperar o narcisismo perdido, de forma que a saída para esse exterior é seguida por um retorno à posição primitiva, dando margem ao aparecimento do que definimos como narcisismo secundário. Como nos lembra Garcia-Roza (1995, p. 59), “não se trata de substituir uma imagem primeira do Eu por outra, mas de passar da imagem para a ideia ou, mais precisamente, para um Ideal-de-Eu”.

No Seminário 1, Lacan (1953-54/2009) nos dá um direcionamento para essas formulações freudianas do Eu-ideal, Ideal-de-Eu e do narcisismo por meio das articulações entre o registro imaginário, já trabalhado na formulação sobre seu estádio do espelho, e o registro simbólico, que recebe destaque nessa obra. É com a introdução da dimensão simbólica que Lacan estabelece uma importante distinção entre o Eu e o sujeito: “se o Eu é da ordem do imaginário e do sentido, o sujeito é partido entre os significantes do simbólico. Isso equivale a dizer que a unidade obtida no Eu não o é jamais a nível do sujeito, pois este é sempre dividido, conflitivo, impossível de se identificar de modo absoluto” (JORGE, 2011, p. 46).

Com o estádio do espelho vimos que, a criança é cativada e capturada pela imagem do outro numa relação alienante. Lacan (1953-54/2009) denomina este tipo de relação imaginária de relação dual, por se fundamentar numa oposição imediata entre a consciência e o outro, se esgotando num jogo especular no qual a consciência se aliena. O outro é quem está de posse da imagem do indivíduo, uma vez que seu próprio corpo é percebido na imagem do outro, promovendo uma identificação alienante produtora de

20 O simbólico, segundo Laplanche e Pontalis (2004, p. 480), “designa a ordem de fenômenos de que trata a

tensão e, como conseqüência, origina-se uma necessidade de destruir esse outro, fonte de alienação. Essa é uma razão pela qual Lacan aponta que o narcisismo e a agressividade são contemporâneos e se relacionam mutuamente. Ora, se o Eu de um indivíduo está fora dele, no outro, se consequentemente o seu desejo é o desejo do outro, logo, faz-se necessário destruir esse outro para que se tome o seu lugar. Por isso, falamos da uma coexistência entre o surgimento do narcisismo e da agressividade.

Uma relação como esta só é superada, dando continuidade ao desenvolvimento do Eu, por meio do deslocamento da libido para um Ideal-de-Eu imposto desde fora. As relações entre o Eu e o Eu-ideal só são reguladas desde fora pelo Ideal-de-Eu. Este último se constitui pelas exigências externas, principalmente os imperativos éticos transmitidos pelos pais, que o indivíduo terá como norma satisfazer. Propagadas pela linguagem, tais exigências realizam a mediação entre o Eu e o outro, necessária para que a relação dual imaginária seja superada. Toda a relação dual é uma relação mortal, somente transponível com o advento do simbólico. Sendo assim, o imaginário passa a ser organizado e predominado pelo simbólico. Nas palavras de Lacan (1954-55/2010, p. 47), “a função simbólica constitui um universo no interior do qual tudo o que é humano tem de ordenar- se”.