• Nenhum resultado encontrado

2.2. RELAÇÕES ENTRE ESTÁDIOS, CIDADES E AS PESSOAS 1 ESTÁDIO E O CONTEXTO URBANO

2.2.2 OS ESTÁDIOS E SEUS USUÁRIOS

Conforme demonstrado no capítulo anterior, desde a antiguidade, estádios e arenas foram palcos de manifestações políticas e sociais, tanto nas votações e anúncios políticos da Grécia Antiga, como sendo ferramentas na política de “pão e circo” dos romanos. Além disso, são agentes no desenvolvimento urbano e auxiliam no reconhecimento de identidade das cidades e suas comunidades, conforme analisado no tópico anterior a este capítulo.

Essa importância dos estádios, da antiguidade aos dias atuais, sempre esteve relacionada a um elemento básico de sua existência: a presença de grandes públicos nas arquibancadas.

Então, a fim de compreender melhor o que atrai e como se comportam esses públicos, usuários dos estádios modernos, devemos ir além da simples questão da busca por entretenimento, analisando como os torcedores dos times de futebol se relacionam com a arquitetura, local e história de seus estádios, como estabelecem rotinas, noções de pertencimento, raízes culturais, identidade, senso de comunidade, entre outros fatores.

Segundo Bettina Kratzmüller, os primeiros registros da existência de torcidas de clubes específicos e não apenas espectadores neutros vem da Roma Antiga, quando após a separação dos corredores de bigas em grupos com nomes de cores (semelhante a ideia de clubes esportivos), iniciou-se um processo de divisão do público quanto aos seus competidores favoritos. De acordo com Kratzmüller, os Verdes e os Azuis tornaram-se os clubes mais fortes e, como consequência disso, a competitividade esportiva teve como reflexo a rivalidade entre as torcidas.

Como resultado dessa rivalidade, autoridades decidiram alocar os torcedores de cada grupo em locais separados e opostos dos estádios e arenas, visando amenizar possíveis hostilidades e atos de violência. No entanto, a divisão demonstrou ter um efeito contrário, acirrando ainda mais os ânimos, gerando

conflitos, invasões do setor rival e “pichações” com mensagens negativas para o time rival (KRAZMÜLLER, 2010).

Já nos estádios modernos, outras mudanças na organização e arquitetura demonstraram ter efeito sobre o comportamento dos públicos. Conforme relatado por Anthony King, nos anos 90, tanto a FIFA quanto o governo britânico passaram a controlar e regulamentar a configuração dos estádios visando obter maior controle das massas e segurança durante os jogos.

A obrigatoriedade das cadeiras em todos os estádios ingleses, além dos reflexos financeiros e sociais, refletiu também no modo como o público se manifestava. Segundo King, baseando-se em observações e em algumas ideias de Foucault, as cadeiras de plástico tiveram um efeito disciplinador e de controle sobre a plateia.

Ao invés da extrema proximidade e contato físico entre os torcedores, as cadeiras sutilmente levam o indivíduo a um certo isolamento do restante da “massa”. Somando isso à instalação de câmeras e obrigatoriedade de se assistir às partidas sentado, gerou-se a sensação de se estar sendo observado e controlado, mesmo que se esteja em meio a uma grande massa de pessoas. Tal fenômeno, apesar dos resultados positivos quanto à redução de violência nos estádios europeus, cria um certo paradoxo no qual os estádios, além de serem locais de liberdade por permitir comportamentos não aceitos pela sociedade no cotidiano, também tornaram-se locais nos quais há sensação de vigilância e controle (KING, 2010).

A falta de liberdade para assistir às partidas, do modo que o torcedor julga melhor, levou à revolta de muitos torcedores e é motivação de muitos protestos ao redor do mundo. Alguns exemplos interessantes disso são os casos recentes do Celtic e de alguns clubes brasileiros.

O Celtic FC é um clube escocês, portando parte do Reino Unido, que conseguiu autorização para criar novamente um setor destinado ao que não desejam assistir jogos sentados. Através da instalação de corrimãos, o setor evita tanto riscos de queda em momentos de euforia quanto a superlotação. Segundo matéria da ESPN, diversos clubes ingleses já planejam seguir o exemplo e pressionam as autoridades por uma liberação legal. Um exemplo desse movimento é o Liverpool FC que realizou uma pesquisa com sua torcida e constatou que 88%

(dos mais de 18 mil participantes) aprovam a volta desse tipo de setor (ESPN.COM.BR, 2017).

Fotografia 4 - O setor chamado de ​Safe Standing

​ ​ ou ​Rail Seatings Area no estádio do

Celtic FC.

Fonte: SHP. Disponível em:

<https://www.shponline.co.uk/safe-standing-coming-premier-league/>

No Brasil, após o fim da Copa do Mundo, alguns clubes retiraram as cadeiras de suas arenas, criando setores especiais para suas torcidas organizadas atrás de algum dos gols. Este foi o caso da Arena Grêmio, Arena Corinthians e Arena da Baixada (estádio do Atlético Paranaense).

Fotografia 5 - Setor sem cadeiras azuis, onde é permitido ficar em pé, na Arena Grêmio.

Fonte: Eduardo Moura / Globo Esporte

<http://globoesporte.globo.com/rs/futebol/campeonato-gaucho/noticia/2015/04/gremio -abre-venda-de-ingressos-para-jogo-da-volta-contra-o-juventude.html>

Fotografia 6 - Vista oposta ao setor de arquibancada com proteções do Signal Iduna Park Stadium.

Fonte:<https://hellovacation.wordpress.com/2015/09/01/day-trip-borussia-dortmund- signal-iduna-park-stadium-tour/>

Ao ler, escutar ou assistir reportagens e matérias a respeito de futebol, é certo que em boa parte delas alguém se depare com os termos “casa” e “visitante”. Essas palavras, além de definirem qual time é o “dono” do terreno e será apoiado pela comunidade local contra uma minoria de “estrangeiros”, também demonstra um sentimento, na maioria dos casos, de pertencimento e relação afetiva dos torcedores para com o local em que seu clube está estabelecido. Mas afinal, que fatores levam torcedores a sentirem-se em casa? A arquitetura? O local? As memórias?

Dois estudos de caso, presentes no livro ​Stadium Worlds: Football, Space

and the Built Environment

​ , trazem casos opostos sobre esse mesmo assunto,

coincidentemente, entre clubes da mesma cidade. No primeiro, o artigo ​Going to the Match: The Transformation of the Match-day Routine at Manchester City FC (já

mencionado anteriormente), Edensor e Millington trazem diversas consequências da mudança do Manchester City para um estádio moderno em outra área da cidade. Já no segundo, Adam Brown traz o caso em que torcedores do Manchester United optam por buscar uma nova casa, devido a diversas mudanças no seu tradicional estádio Old Trafford.

Em ambos trabalhos citados, os autores utilizam os termos “topofilia” e “topofobia” para definir a relação dos torcedores com as “casas” de seus clubes. Aquela remete a um sentimento positivo, de afeto e pertencimento para com algum lugar, enquanto esta traz o sentido oposto, o de rejeição, medo e desconforto das pessoas com relação a um lugar estranho a elas.

No caso do Manchester City, Edensor e Millington demonstram um cenário de existência mútua entre os sentimentos de nostalgia, insatisfação, alienação e compreensão. Este último devido à necessidade do clube de ter um estádio moderno que possibilite a adaptação e crescimento enquanto marca forte na competição esportiva e de mercado internacional. Enquanto o lado negativo consiste num cenário de difícil criação de raízes e rotinas dos torcedores em dias de jogos.

Como a maioria dos clubes ingleses, a origem do Manchester City está muito relacionada à comunidade que se desenvolveu ao redor do seu campo. O estádio Maine Road, localizado na região centro-sul da cidade, num bairro pós era industrial residencial de trabalhadores de classe média-baixa, foi durante 80 anos o local para

o qual torcedores do clube acostumaram a se deslocar e estabelecer rotinas em dias de jogos, nos quais conquistas, derrotas, amizades e outros detalhes consolidaram-se como memórias que fortaleceram a relação afetiva entre os ​citizens e sua casa, o Maine Road Stadium (EDENSOR, T; MILLINGTON, S. 2010).

Essa história teve fim com a mudança, no ano de 2003, do clube para o City of Manchester Stadium, um estádio moderno na região leste de Manchester, numa área que passava por processo de regeneração e que não possuía uma comunidade local estabelecida tão próxima ao terreno do estádio. Para o clube, a mudança simbolizou a concretização de uma nova era, em que o time deixava de ser visto como “o vizinho pobre” do poderoso Manchester United e passava ser visto como potencial concorrente aos títulos nacionais e internacionais. Além de comportar confortavelmente 48.000 torcedores (na época), o estádio passava atrair grandes eventos e novos investimentos para o clube. Por isso, a mudança enfrentou pouca resistência por parte da torcida, uma vez que o Maine Road Stadium não tinha mais espaço para grandes reformas e ampliações (EDENSOR, T; MILLINGTON, S. 2010).

Apesar de não ter demonstrado muita resistência à mudança, com o passar dos anos, os torcedores do Manchester City passaram a demonstrar certa frustração com diversos fatores do novo estádio. Devido à grande área controlada e acesso restrito aos arredores do estádio, não há locais propícios para confraternização e criação de rotinas de forma espontânea em dias de jogo. Edensor e Millington trazem inúmeros depoimentos de torcedores lamentando a impossível criação de uma rotina de jogo e criação de laços com os caminhos e o entorno do estádio, fatores essenciais para a sensação de pertencimento e construção de raízes e laços afetivos com o local, ou seja, impossibilitando a existência de topofilia.

Numa tentativa de amenizar esses problemas, a diretoria do Manchester City tenta compensar através de ​food trucks

​ , lanchonetes, bares, lojas oficiais, além de

pequenos palcos para realização de pequenos eventos de entretenimento que criem alguma atmosfera de pré-jogo para seus torcedores. De acordo com alguns dos relatos trazidos por Edensor e Millington, os torcedores demonstram reconhecer o esforço do clube e importância do novo estádio, mas muitos ainda optariam pela

velha rotina no Maine Road Stadium, pois ainda não conseguiram sentir-se em casa no novo estádio.

Resumidamente, mesmo após uma década, os torcedores do Manchester City ainda não conseguiram sentir topofilia com relação ao City of Manchester Stadium, pois perderam muitos dos fatores que faziam o Maine Road Stadium ser “o local que traduz a alma do clube” (expressão encontrada em alguns dos depoimentos), fazendo deste caso, um exemplo da relação entre torcedores, clube e local do estádio (EDENSOR, T; MILLINGTON, S. 2010).

Do outro lado da cidade, Adam Brown analisa a saga do FC United of Manchester em busca de uma casa, sendo um caso interessante em que torcedores do Manchester United optaram por deixar seu clube do coração, fundando um próprio, e sua tradicional casa devido a diversos fatores que fizeram o Old Trafford Stadium se tornar um local de repressão aos costumes que fizeram tantos torcedores sentirem topofilia durante tantos anos.

Segundo Brown, tudo começou quando, em 1998, torcedores do Manchester United fundaram a IMUSA (​Independent Manchester United Supporters Association

​ ),

motivados pela luta contra a transformação do clube numa marca global sem identidade e pela volta dos “​terraces

​ ” (setores sem cadeiras e em que se permitia

torcer em pé, extintos após o Relatório de Taylor).

Embora os membros da IMUSA realizassem constantes protestos contra a repressão e falta de liberdade para se torcer, não havia, até então, qualquer intenção de abandonar o clube. Ocorreram muitos casos de torcedores sendo retirados de dentro do Old Trafford por portar bandeiras e cartazes de protesto e até mesmo por recusarem-se a sentar (BROWN, 2010).

Brown relata que o estopim para o rompimento de muitos torcedores com o Manchester United ocorreu em 2004, quando o Old Trafford voltou a ser palco de muitos protestos, liderados pela IMUSA, contrários à venda do clube para a família americana Glazer. Cartazes e bandeiras eram muitas vezes tomados pela polícia e por seguranças já do lado de fora do estádio, mas os protestos continuavam do lado de dentro quando torcedores levantavam e cantavam ​“Stand up if you’re not for sale”

Conforme a venda do Manchester United para os Glazers se concretizou, os torcedores membros da IMUSA decidiram por abandonar o Old Trafford, uma vez que este já não era mais a casa na qual seus torcedores tinham voz e poderiam se manifestar, buscando formar um clube próprio baseado no respeito e participação da comunidade, como um dia fora o Manchester United (BROWN, 2010).

Em 2005, membros do IMUSA fundaram o FC United of Manchester e, buscando manter clara relação com as comunidades locais e a cidade, adotaram um escudo baseado no brasão de armas de Manchester e as mesmas cores do Manchester United (vermelho, preto e branco). Além disso, Brown destaca que a intenção era de encontrar um campo próximo da região onde a maioria dos torcedores já morava, na região oeste de Manchester, o que só se tornou realidade em 2015 com a inauguração do Moston Community Stadium, no distrito de Moston, no noroeste da cidade.

Conforme relata Adam Brown, foram cerca de 10 anos tendo de pagar aluguel ao Bury FC, pela utilização do Gigg Lane Stadium, no qual além de prejuízos financeiros, o FC United of Manchester encontrava diversas barreiras na construção de uma relação de topofilia com o local, uma vez que o Bury FC barrava e limitava diversas tentativas de eventos comunitários e até mesmo solidários realizados pelo clube vermelho e seus torcedores. Esse cenário de controle e repressão, levou o clube e seus membros a buscarem um local para desenvolver um projeto que traduzisse suas filosofias e necessidades na forma de estádio de futebol.

O desejo de todos os envolvidos era fazer algo que trouxesse de volta a autenticidade e liberdade um dia existentes no Manchester United e que a comunidade do FC United sonhava resgatar num lugar para, então, poder chamar de “casa”. Para alcançar esse objetivo, a participação da torcida na formulação das diretrizes era realizada por meio de questionários e pesquisas nos fóruns de discussão na internet. Um exemplo disso, trazido por Brown, é uma lista feita por um torcedor com características positivas de outros estádios e que ele identificava como interessantes para uma possível nova casa para o clube. Essa lista envolvia a exigência do setor sem cadeiras atrás dos gols, a hierarquia de tamanhos entre o setor principal do time da casa e o visitante, itens de consumo comuns à estádios

mais “humildes” e até mesmo que os seguranças fossem torcedores voluntários, para que se criasse uma relação mais harmoniosa e compreensiva.

Após algum tempo de estudo, a direção do FC United of Manchester divulgou as diretrizes e programa de necessidades básicas para uma nova casa, incluindo: existência de setores para cada tipo de torcedor, ou seja, tanto as áreas sem cadeiras atrás dos gols, quanto setores com assentos nas laterais; uma grande área de bar no bloco principal; capacidade desejada de 5.000 pessoas; área externa com espaços esportivos para as comunidades locais e também uma praça para realização dos eventos do clube e comunitários, possibilitando confraternizações nos dias de jogos (BROWN, 2010).

Esse contraste entre os casos de perda de topofilia devido à mudança obrigatória de local, ou devido às mudanças no modo como os torcedores podem se comportar e ser tratados em suas “casas” tradicionais, reflete a importância de se estudar como se dá a relação dos estádios de futebol e seus usuários e quais são os limites impostos pela localização e arquitetura que podem levar à sensação de alienação, ou ainda, como o projeto arquitetônico pode facilitar a criação de uma identidade e de topofilia, respeitando as comunidades locais, os diversos tipos de torcedores e também a história do clube e suas necessidades atuais e futuras.

Tendo considerado não apenas os fatores estudados nos capítulos 1 e 2, mas também outros aspectos identificados como relevantes para cada situação (clube, torcida e região), pode-se finalmente analisar o contexto de cada estádio para então propor ideias e projetos de reconstrução ou adaptação aos clubes. Antes disso, no entanto, faz-se necessário também analisar quais são os requisitos mínimos ou os padrões de qualidade e recomendações dados pelas entidades e instituições competentes.

Fotografia 7 - Imagem aérea do extinto Maine Road Stadium e região. Fonte: <http://stadiumdb.com/historical/eng/maine_road>

Fotografia 8 - Imagem da região do City of Manchester Stadium (ou Etihad Stadium), em 2016. Fonte: Alamy Stock Photo. Disponível em:

<http://www.alamy.com/stock-photo-aerial-view-of-manchester-city-football-academy-etihad-st adium-manchester-104863730.html>.