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Estados e qualidades documentais: da leitura documentarizante à documentalidade

3. REFLEXÕES SOBRE O REAL

3.3 Estados e qualidades documentais: da leitura documentarizante à documentalidade

O documentário, território que já nasceu com questões acerca do real, a começar pela sua denominação, atravessou constantes transformações ao longo de sua história, incorporando filmes de vanguarda e do cinema experimental. Esses filmes são considerados os precursores de muitos procedimentos narrativos que se encontram no campo, e, continuamente, assiste-se aos esforços, por parte de teóricos e pesquisadores, para compreendê-lo. Além das considerações trazidas até aqui, existem reflexões que não olham apenas para as estruturas discursivas do documentário nem para suas formas de realização, mas para a recepção dos filmes pelo seu público. Percebendo a existência de um espaço de leitura documentária, esta foi chamada por Roger Odin de leitura documentarizante.

O único critério que, nos parece, deve ser mantido para caracterizar aquilo que advém na hora de executar a leitura documentarizante é que o leitor constrói a imagem do Enunciador, pressupondo a realidade desse Enunciador [...] O que estabelece a leitura documentarizante é a realidade pressuposta do Enunciador, e não a realidade do representado. (ODIN:2012, p. 18)

Roger Odin chama a atenção para imagem que o leitor faz do Enunciador (apresentado em letra maiúscula), construindo, segundo suas palavras, um “eu-origem real”. O Enunciador real pode ser concebido dentro de algumas instâncias da produção de um filme, em que a leitura documentarizante se estabelece. O pesquisador francês aponta algumas possibilidades:

1. O leitor pode tomar a câmera como Enunciador real [...]

2. O leitor pode tomar o cinema como Enunciador real. Evidentemente, esse é o tipo de leitura praticado pelos teóricos (historiadores, semiólogos) do cinema [...]

3. O leitor pode tomar a sociedade na qual o filme é produzido como Enunciador real. Aqui se reconhecem a leitura histórica e a leitura sociológica [...]

4. O leitor pode tomar o cameraman como Enunciador real. É o caso típico do filme de reportagem. O pressuposto do leitor, nesse caso, é o de que o cameraman esteve no local onde os fatos aconteceram [...]

5. O leitor pode tomar o realizador do filme como Enunciador real;

6. O leitor do filme pode tomar o responsável pelo discurso, em posse do filme, como Enunciador real. (ODIN:2012, p.19 -20)

Como se pode observar, não existe uma leitura, mas várias leituras documentarizantes que partem de diversos enunciadores assim como também existem vários níveis de enunciação dentro de um filme, que apontam para diferentes intensidades de realidade. O leitor pode construir um ou mais Enunciadores reais para estabelecer sua leitura documentarizante, a qual pode se apresentar numa única cena de um filme, numa sequência ou mesmo no filme como um todo.

Nada impede que a leitura documentarizante funcione de forma descontínua, tanto em um nível como em outro; tanto de modo prolongado como de modo extremamente pontual. De fato uma grande flexibilidade preside a manifestação e a combinação das diferentes formas de leitura documentarizantes. (ODIN:2012, p.21)

Além da leitura documentarizante realizada pelo leitor-espectador, que identifica os Enunciadores reais, existe uma outra leitura, externa ao filme e produzida pelas instituições. Odin chama-a de instrução institucional. Essa instrução institucional aciona a leitura documentarizante nos festivais e nas mostras, nos eventos promovidos e nos locais em que os filmes circulam. Assim, quando uma instituição indexa um filme como documentário, promovendo sua circulação por um circuito exibidor destinado a essa forma de cinema, o trabalho passa a ser recebido como tal.

A leitura documentarizante pode surgir, ainda, em instruções internas promovidas pelo próprio filme, como a utilização de créditos que o declaram um documentário; as legendas, indicando quem executou a produção; as informações escritas que apresentam os entrevistados, os especialistas em determinados assuntos e os personagens do filme; e a ausência de nomes de atores. E, por fim, um último modo de produção de leitura documentarizante apontado por Odin faz parte de uma instrução textual interna ao filme, que diz respeito ao sistema estilístico reconhecido pela recorrência e pela repetição de procedimentos que representam o real. Pelo uso constante, convencionou-se considerar esse sistema estilístico como uma gramática específica do próprio documentário no nível discursivo, imagético e sonoro. São eles:

- aparição na tela daquele que sabe (o professor ou o especialista);

- remissão direta do detentor do saber ao leitor ou a seu interlocutor no filme (o entrevistador);

- estruturação abstrata do representado pelo discurso: - comentário do tipo explicativo;

- utilização de esquemas ou gráficos;

no nível da imagem: flou [foco embaçado], tremulação da imagem, travellings, aos solavancos, panorâmicas hesitantes, golpes de zoom, rupturas brutais no desenvolvimento dos planos e no encadeamento das sequências, longos planos-sequências, iluminação deficiente, grão da película...

no nível do som: timbre específico do som direto (por oposição ao som de estúdio: ausência de ressonância), ruído, estrutura linguística da palavra “viva”... (esse nível não está, evidentemente, sempre presente nos filmes de reportagem, pois existem reportagens silenciosas);

no nível da imagem e/ou do som: direcionamento para o cameraman (as personagens filmadas olham para o câmera, interpelam-no, tomam partido...) (ODIN:2012, p.25)

Portanto, para Roger Odin, um filme que possui características estilísticas que marcam o cinema documental, que é indexado como tal e circula nos circuitos dedicados aos filmes que declaram algo sobre o real pode ser considerado documentário. Esse deslocamento que aponta para diferentes intensidades de realidade ajuda a compreender o estado documental das ficções que começam a se tornar recorrentes nos festivais de documentários.

Os falsos documentários ou mockumentaries apropriam-se da linguagem e da estilística do documentário moderno (cinema verdade e cinema direto), ou seja, das características mais recorrentes no campo, para elaborar uma narrativa ficcionalizada, promovendo a ilusão de que o espectador está assistindo a um documentário. Os falsos documentários podem ser compreendidos como um trote de uma suposta realidade construída, que é revelado nos créditos finais, ou como uma paródia que brinca com os clichês de um determinado assunto. Muitos se utilizam do efeito reportagem apresentando entrevistas com atores que interpretam supostos especialistas. Os enunciadores reais criados nos falsos documentários acabaram por trazê-los para muitos circuitos de exibição dos documentários, como em mostras e festivais.

Como exemplo de trote e paródia dentro dos mockumentaries, é possível citar This is Spinal Tap (1984), de Rob Reiner, e Brothers of the Head (2005), de Keith Fulton e Louis Pepe. Ambos os filmes abordam o universo das bandas de rock, seguindo os procedimentos estilísticos dos rockumentaries. Fazendo o caminho parecido com o de um dos marcos do cinema direto, Don't look back (1967), em que D.A. Pennebaker acompanha a turnê de Bob Dylan pela Inglaterra, This is Spinal Tap registra a banda homônima inglesa por uma série de shows nos Estados Unidos. Nele, vê-se uma sequência de acontecimentos que ironizam o comportamento e as pretensões musicais dos grupos de heavy metal e do hard rock dos anos 80. Em Brothers of the Head, por meio de supostas imagens de arquivos de um documentário inacabado, entrevistas aparentemente atuais, trechos de um filme de ficção sobre o assunto, o

público é apresentado a uma estranha banda formada por irmãos siameses. Apenas nos créditos finais, depois de muito mistério, surpresa e fascínio, os espectadores descobrem que foram enganados e que tudo não passou de uma grande atuação.

Figura 53 - This is Spinal Tap (1984), de Rob Reiner e Brothers of the Head (2005), de Keith Fulton e Louis Pepe

Um exemplo de falso documentário brasileiro é Recife Frio (2009), de Kleber Mendonça Filho, que parte de um suposto programa de televisão argentino para tratar, de maneira pitoresca, de uma súbita mudança climática que aconteceu em Recife por conta da queda de um meteoro. O filme mescla uma narração, com voz over (modo expositivo) em espanhol, com entrevistas (modo participativo), para abordar, de maneira irônica, o absurdo que se instalou na cidade pernambucana e, assim, discutir as relações socioeconômicas, a especulação imobiliária, o abismo social e o turismo predatório.

Um outro exemplo de falso documentário brasileiro é O Sanduíche (2000), de Jorge Furtado. Com uma engenhosa narrativa, que utiliza uma estrutura metalinguística, o filme começa com um casal prestes a terminar um relacionamento. Em um segundo momento, percebe-se que se trata de dois atores ensaiando uma peça teatral e, quando se escuta um “corta”, inicia-se a terceira camada, que leva o espectador a perceber que tudo se passa dentro de um set de filmagem. Logo na sequência, uma quarta camada é percebida quando a câmera se afasta, revelando um set de filmagem armado numa praça com público assistindo ao que acontecia. Quando, aparentemente, a narrativa já está resolvida, o público é apresentado a uma última instância, em que os espectadores que estão assistindo à história encenada na praça são entrevistados e, surpreendentemente, todos dão a mesma resposta. E, no momento em que um deles erra a frase combinada, sendo prontamente corrigido pelo entrevistador, torna-se claro para o espectador que ele foi, mais uma vez, enganado. O Sanduíche é uma cena dentro de uma cena, dentro de uma cena, dentro de um documentário, dentro de um falso documentário, cheio de camadas, como num sanduíche, um elemento recorrente nas cenas. Misturando

documentário e ficção com atores e não atores, Furtado aborda, num tom de paródia, as relações entre realidade e ficção, discutindo, de maneira autorreflexiva, a problemática da representação da realidade e o ilusionismo cinematográfico.

Figura 54 - Recife Frio (2009), de Kleber Mendonça Filho (acima) e O Sanduíche (2000), de Jorge Furtado (abaixo)

Já que os falsos documentários apresentam realidades fabricadas com base nas gramáticas concebidas ao longo da história da forma documental, podemos afirmar que a leitura documentarizante não está atrelada à produção de “verdades” – como já se acreditou que o documentário fosse capaz de produzir – nem mesmo às construções de realidades de uma voz assertiva sobre o mundo. A leitura documentarizante aponta para instantes documentais formados por um Enunciador real, mesmo que tais elementos ou o próprio enunciador tenham sido forjados.

Existem assim uma escala documentária e níveis de “documentaridade”, avaliáveis em termos do número de níveis convocados para a construção do Enunciador real: dito de outra forma, há documentários que são “mais documentários” que outros (ODIN:2012, p.27).

Percebendo os níveis de um estado documental dentro de um filme, aquilo que Roger Odin chama de leitura documentarizante quando olha exclusivamente para o circuito cinematográfico, a pesquisadora e artista alemã Hito Steyerl, ao olhar para além da sala de cinema, cunha o termo “documentalidade” para se referir aos níveis e qualidades documentais

em diversos segmentos do cinema expandido, como nos filmes de artistas, na lecture performance, no cinema experimental e nas instalações.

Hito Steyerl, que atua como pesquisadora, escritora e artista abordando questões da filosofia e da política, possui uma investigação voltada ao estado documental no campo das artes, já que seu trabalho, constituído por filmes-ensaios, instalações e lecture performances, incorpora elementos e estilísticas recorrentes no documentário.

Em November (2004), Steyerl usa imagens de seu arquivo pessoal, resgatando cenas em super-8 de um antigo filme de artes marciais inacabado que fez ao lado de duas amigas. As sequências funcionam como um ponto de partida para contar a história de sua amiga Andrea Wolf, aspirante à atriz que, no filme, luta com as próprias mãos desarmando inimigos que portam armas de fogo. Entre as cenas de luta, inspiradas em Faster, Pussycat! Kill! Kill! (1965), de Russ Meyer, e a militância política contra a opressão do governo turco imposta ao povo curdo, Andrea Wolf torna-se uma mártir da independência do Curdistão após lutar nas montanhas entre a Turquia e o norte do Iraque, onde foi assassinada em 1998. Com um estilo ensaístico, que inclui narração em primeira pessoa, imagens de arquivo de filmes pessoais em Super-8, imagens da televisão curda, clipes de filmes do Bruce Lee e fotografias, Steyerl investiga o papel das imagens em zonas de conflito para narrar a jornada da sua amiga. November aborda uma série de temas, como os levantes políticos, memória, a estética do protesto e a importância das imagens como ícones de uma resistência.

As referências à Andrea Wolf voltaram a aparecer em Lovely Andrea (2007), filme comissionado pela 12ª Documenta70 e exibido na mostra Time Kills (2019), que reuniu, no Sesc Paulista, em São Paulo, filmes de artistas da Julia Stoschek Collection. Lovely Andrea apresenta a saga de Hito Steyerl para encontrar uma fotografia feita há 20 anos, quando Steyerl era ainda uma jovem estudante. Foi nesse período que ela participou de um Nawa Shibari, ou seja, de uma sessão de bondage, sob o pseudônimo de Andrea, sua amiga de adolescência, sendo fotografada para uma revista independente. A partir da busca dessa foto, o espectador é levado ao universo sadomasoquista japonês, à luta contra o machismo, ao empoderamento feminino e à circulação das imagens eróticas num mundo digitalizado. As narrativas pessoais constroem um autorretrato e uma autoficção da artista, com base em entrevistas com produtores e editores de filmes e fotos da comunidade japonesa de Bondage, que inclui narração em primeira pessoa, fotografias dos anos 80, performances, clipes de desenhos animados do

70 Considerada como uma das mais importantes mostras de arte contemporânea do mundo, a Documenta acontece

a cada cinco anos na cidade de Kassel, na Alemanha, reunindo trabalhos sobre temas socias, que funcionam como o espelho de uma época.

Homem-Aranha e da Mulher-Maravilha e imagens de prisioneiros em Guantanamo. Lovely Andrea é um filme-ensaio de busca em que Steyerl é, ao mesmo tempo, uma espécie de detetive que se procura ao tentar encontrar a sua própria imagem desaparecida. Sobre seu interesse pela figura de Andrea Wolf, Hito Steyerl afirma:

Nos anos 70, Godard decidiu que iria inserir algumas referências à Guerra do Vietnã em todos os seus filmes...Suponho que isso é o que eu estou fazendo inconscientemente agora. Levantar questões repetidas vezes, especialmente em contextos nos quais você nunca suspeitaria, e onde até parece

completamente deslocado (STEYERL:2008, on-line) 71

Figura 55 - November (2004) acima e Lovely Andrea (2007) abaixo, de Hito Steyerl

Tanto em November quanto em Lovely Andrea, vê-se, nos tempos do digital em alta definição, uma quantidade grande de imagens de baixa resolução, tremidas, feitas em VHS, Super-8, produzidas por celulares ou mesmo capturadas da Internet. Para Steyerl, a dúvida, promovida pelas imagens de baixa qualidade e sem nitidez, comumente registradas no calor do

71 Godard decided that he would insert some references to the war in Vietnam into all of his films … I suppose

this is what I am unconsciously doing now. Bringing up the issue over and over again, especially in contexts where you would never suspect it, and where it even seems completely displaced. (STEYERL:2008)

Disponível:<https://www.theguardian.com/culture/2008/dec/30/contemporary-artist-hito-steyerl-new-wave> Acesso em: 10 maio 2019.

momento e em regiões de conflito, torna-se uma marca do documental, pois ela produz uma suposta autenticidade que legitima a existência de uma realidade. Steyerl afirma que “numa estratégia artística, se quiser continuar tendo ambições documentais, não deve eliminar a dúvida, mas sim exibi-la” (2009, on-line), ou seja, a dúvida de uma imagem que não pode ser vista com precisão induz o público a acreditar numa provável realidade. A utilização de imagens de baixa resolução, além de potencializar o estado documental de seus trabalhos, representa um posicionamento político e de resistência contra um sistema capitalista de produção de imagens em movimento.

Obviamente, uma imagem de alta resolução parece mais brilhante e impressionante, mais mimética e mágica, mais assustadora e sedutora[...] Agora, até os formatos de consumo estão se adaptando cada vez mais aos gostos dos cineastas e estetas, que insistiam no filme de 35 mm como garantia de visualidade pura. A insistência no filme analógico como o único meio de importância visual ressoou ao longo dos discursos sobre o cinema, quase independentemente de sua inflexão ideológica. Nunca importou que essas economias baseadas na qualidade da produção cinematográfica estivessem (e ainda estão) firmemente ancoradas [...] num sistema de produção capitalista, num culto à maioria dos gênios [cineastas] masculinos e a versão original e, portanto, muitas vezes conservadora em suas próprias estruturas. A resolução foi fetichizada, como se sua falta representasse a castração do autor. O culto ao cinema dominou até mesmo a produção de filmes independentes

(STEYERL: 2009, on-line) 72.

A busca por um estado documental, seja ele baseado na construção de uma realidade existente ou na ficcionalização que induz o espectador a uma leitura documentarizante, é característica recorrente nos filmes-ensaios de Hito Steyerl. A pesquisadora e artista alemã chama de documentalidade a qualidade documental encontrada em seus trabalhos. Para Steyerl, a documentalidade “descreve a incorporação de formações políticas, sociais e epistemológicas específicas ordenadas em uma política da verdade documental” (STEYERL:2003, on-line). Assim, a documentalidade é um substantivo que expressa uma ideia, um estado ou uma situação da construção de uma verdade, que surge no campo do documentário, aparecendo também em suas formas expandidas. Portanto, a documentalidade aparece como um conceito

72 Obviously, a high-resolution image looks more brilliant and impressive, more mimetic and magic, more scary

and seductive […] Now, even consumer formats are increasingly adapting to the tastes of cineastes and esthetes, who insisted on 35 mm film as a guarantee of pristine visuality. The insistence upon analog film as the sole medium of visual importance resounded throughout discourses on cinema, almost regardless of their ideological inflection. It never mattered that these high-end economies of film production were (and still are) firmly anchored […] in capitalist studio production, the cult of mostly male genius, and the original version, and thus are often conservative in their very structure. Resolution was fetishized as if its lack amounted to castration of the author. The cult of film gauge dominated even independent film production (STEYERL: 2009).

Disponível: <https://www.e-flux.com/journal/10/61362/in-defense-of-the-poor-image/> Acesso em: 10 maio 2019.

que permite compreender a construção de uma verdade dentro de uma forma fílmica e performativa, que vai de procedimentos narrativos e estéticos às políticas reguladoras que autenticam e validam determinados acontecimentos. Dessa forma, a documentalidade pode aparecer em diferentes intensidades, não só no campo do documentário como também nas performances audiovisuais, no cinema de exposição, no filme-ensaio e até mesmo na ficção.

A tomada de consciência das relações de poder foi intensificada não apenas nas articulações documentais, mas em todas as formas de representação e, em muitos casos, também foi transformada por novas formas narrativas que refletiam seu próprio envolvimento com a autoridade e com as hierarquias de produção de conhecimento, com seus efeitos sobre gênero e relações sociais. Todas essas influencias, interligadas e sobrepostas, tornaram o documentário uma das características mais importantes do campo artístico dos anos 90 e inicio o seculo XXI. Mas o que essas evoluções significam? Dentro da excitação generalizada associada ao uso comum do documentário social, muitos produtores negligenciaram aspectos importantes do caráter dos documentos. Como o documentário era automaticamente considerado culto e crítico, a maioria dos produtores prestava pouca atenção aos fatos de que os documentos eram geralmente condensações de poder. Eles cheiravam à autoridade, certificação, perícia e hierarquias epistemológicas concentradas. Lidar com documentos é algo delicado, especialmente se alguém tenta desconstruir o poder, deve-se ter me mente que os documentos existentes são – como Walter Benjamin já escreveu – fabricados e autorizados, principalmente, pelos vencedores e governantes (STEYERL: 2011, on-

line)73.

Hito Steyerl, em seu texto Documentarismo como políticas da verdade (Documentarism as Politics of Truth:2003) faz uma provocação com a pergunta foucaultiana “A verdade determina a política ou a política determina a verdade?”, para, assim, buscar, no próprio filósofo, toda a argumentação que sustenta sua tese. Para Michel Foucault, a produção de uma verdade sempre esteve influenciada e regulada pelas relações de poder. Portando cada discurso, seja ele do campo do audiovisual ou não, deve ser analisado em termos de estratégia,

73 La toma de conciencia de las relaciones de poder se vio intensificada no solo en las articulaciones documentales,

sino en todas las formas de representación y, en muchos casos, también se vio transformada por nuevas formas