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Filme-ensaio: a experiência como irradiação do real

3. REFLEXÕES SOBRE O REAL

3.2 Filme-ensaio: a experiência como irradiação do real

As tentativas de datar o nascimento do filme-ensaio são as mais variadas possíveis. Em 2007, o crítico e cineasta Jean-Pierre Gorin realizou a curadoria de uma importante retrospectiva dentro da Viennale – Vienna International Film Festival. Nessa mostra chamada The Way of the Termite: The Essay in Cinema 1909-2004, Gorin selecionou sessenta filmes- ensaios de vinte países diferentes, inclusive os que realizou em parceria com Jean-Luc Godard. O esforço em mapear as diversas possibilidades ensaística do cinema, mesmo – como acontece em toda a lista – deixando muitos filmes importantes de fora, serviu como uma espécie de cartografia do gênero, feita por alguém que já produziu obras significativas. Gorin propôs uma tentativa de esboçar a história do filme-ensaio nas mais variadas culturas. Apesar de não ser fácil criar um inventário de obras com narrativas peculiares, de múltiplas naturezas e variadas constituições, em que as escolhas podem ser questionadas, The Way of the Termite tem seu mérito. Esse agrupamento de filmes serviu como um norte para se transitar em um conceito fugidio (WEINRICHTER:2015), ou seja, uma forma de expressão que “continua a ser tudo, menos autoexplicativa” (CORRIGAN:2015)

No texto de abertura do catálogo de sua mostra, Gorin assinala a dificuldade em definir o que é filme-ensaio, já que qualquer demarcação com fronteiras rígidas pode escapulir por conta do seu caráter nômade.

Introduza uma noção de ensaio e com certeza ela será explodida em pedaços. Esta é uma forma que parece acomodar os dois lados de uma divisão, que ao mesmo tempo, pode transitar do documentário à ficção e voltar, criando outras polaridades neste processo entre as quais ela pode operar. Nada muito diferente do que na literatura, exceto que neste mundo mercantil do cinema, esta radical recusa de uma fidelidade aos gêneros, a atenção dada à individualidade da expressão e a expressividade sem restrições, parece ser

muito mais indelicada do que na literatura(GORIN: 2007).

Os filmes selecionados apresentam uma variedade de afirmações em diferentes estilos que evidenciam a maneira pessoal de cada realizador abordar um determinado tema, com estratégias narrativas muito pessoais, que fogem, muitas vezes, das gramáticas e estilos convencionais. São filmes permeados por rupturas, derivas, elipses, excessos e contínuos retornos aos formatos já estabelecidos. Nessas voltas ao familiar, por exemplo, o ensaio adentra no território do documentário mais convencional, situando o espectador num lugar já habituado e, portanto, confortável, para, de repente, no instante seguinte, conduzi-lo novamente ao

desconhecido. Esses percursos produzem lacunas dentro das narrativas, o que exige do espectador um esforço para preenchê-las por meio de associações, interpretações, conexões ou mesmo por meio da própria imaginação.

Essa seleção fílmica de Jean-Pierre Gorin começou em 1909 com A Corner in Wheat (D.W. Griffith, 1909), período em que o cinema ainda estava se constituindo como linguagem. Porém numa tentativa para definir o campo, Weinrichter parte do experimental para tentar compreender o ensaio apontando o curta-metragem Inflation (Hans Richter, 1928) como o precursor. O filme, carregado de discursos socioeconômicos, é considerado um ensaio pelos “conceitos” que apresenta: seu tema é “o contraste entre o declínio das pessoas e o aumento dos zeros” (WEINRICHTER: 2015, p.69).

Inflation começa com uma sequência de imagens abstratas, luzes desfocadas, cédulas voando, notas girando, sobreposições de mãos em diferentes ângulos contando maços de dinheiro. Uma montagem paralela incorpora planos de pilhas de papel moeda que vão aumentando de tamanho, mediante uma animação stop-motion, e que se intercalam com produtos que podem ser comprados juntamente com close-ups de pessoas que são vítimas do capitalismo. Elas parecem estar abatidas, necessitadas e com um olhar perdido num ponto qualquer no infinito. Logo depois, números atravessam a tela, os zeros aumentam, um magnata muito bem vestido fuma um charuto enquanto um transeunte compra um jornal e, assustado com o que lê, tira o chapéu, momento em que o filme corta para o plano de um mendigo com um chapéu na mão pedindo esmolas. Tem-se, mais uma vez, uma montagem relacional por contraste ligada por um raccord plástico62. Mais sobreposições, números que crescem, imagens de mercado financeiro em que pessoas agitam freneticamente maços de dinheiro na mão. A montagem intensifica-se, torna-se mais veloz, com planos cada vez mais curtos, até que culmina num muro desabando; a casa cai. E finaliza com uma pessoa andando desolada por uma rua vazia.

62 Raccord é um procedimento de ligação entre planos que faz com que a montagem passe desapercebida. O

Figura 49 – Frames de Inflation (Hans Richter, 1928)

Hans Richter, grande entusiasta do cinema experimental e sempre procurando explorar novas possibilidades de linguagem para as imagens em movimento, escreveu dois textos: O ensaio fílmico – uma nova forma de filme documental(1940) e O filme, uma forma original de arte (1955)63. No primeiro, Richter fala da dificuldade do documentário em dar conta de determinados temas, referindo-se ao seu filme Inflation:

Para se entender o funcionamento da Bolsa, deve-se adicionar outras coisas: a economia, as necessidades do público, as leis do mercado, a oferta e a demanda, etc. Em outras palavras, não se pode confiar em apenas registrar o objeto e representá-lo, como no caso de um simples filme documental, mas, com os meios que seja, tentar mostrar a ideia de assunto (RICHTER: 2007, p. 187).

O artista alemão aponta o desafio do documentário ao abordar assuntos que fogem de uma simples documentação de pessoas ou acontecimentos, podendo trabalhar uma dimensão abstrata e intelectual do pensamento. Como representar aquilo de que não se tem provas concretas? Como revelar conceitos, ideias, princípios e/ou convicções? Como transformar determinados pensamentos num encadeamento de imagens e sons? Por meio de qual perspectiva se pode provocar uma reflexão sobre certos assuntos aparentemente abstratos?

63 O ensaio fílmico – uma nova forma de filme documental foi publicado originalmente no suplemento Baseler Nationalzeitung em 25 de abril de 1940. O filme, uma forma original de arte foi publicado originalmente no College Art Journal, v.10, 1955.

Tais perguntas aqui formuladas fazem parte das inquietações de Richter, que, como artista, via os conceitos do cinema documental não darem mais conta daquilo que estava sendo proposto. Ele apontava a dificuldade em representar, como, por exemplo, temas como “a liberdade como meta de um desenvolvimento social” e assim “dar forma aos pensamentos numa tela”.

Neste esforço em tornar visível o mundo invisível dos conceitos, dos pensamentos e das ideias, o cine-ensaio pode recorrer a uma reserva muito maior do que os meios expressivos de um documentário mais puro. Desde que o ensaio fílmico não esta sujeito à reprodução das aparências externas ou a uma série cronológica, mas ao contrário, há que se integrar um material visual de várias procedências, pode-se saltar livremente no espaço e no tempo: por exemplo, uma reprodução objetiva de uma alegoria fantástica, desta para uma cena interpretada; pode-se representar coisas tanto mortas quanto vivas, tanto artificiais como naturais, pode-se utilizar tudo, o que existe e o que se inventa, ele se serve como argumento para se fazer visível

um pensamento de base. (RICHTER: 2007, p.188).

Richter, ao finalizar seu artigo, que aponta pela primeira vez a noção de filme-ensaio nesta tentativa de defini-lo, aproxima-se da ideia de Grierson, que afirmou que o documentário é um “tratamento criativo da realidade”. O realizador alemão conclui dizendo que, com isso, “se abrem grandes possibilidades artísticas para o filme documental” atraindo, assim, muitos dos jovens que se “sentem atraídos pela luz cega do cinema de ficção” e arremata dizendo que o filme-ensaio é “intervir criativamente no mundo da representação de nosso tempo”.

Quinze anos e alguns filmes depois, Hans Richter escreveu o segundo texto, focado na utilização do cinema como um meio de expressão no campo artístico. Em O filme - uma forma original de arte, o autor resgata, na tradição do cinema de vanguarda, a importância e a beleza dos filmes abstratos, instante em que o cinema rompeu por completo a conexão com o teatro e a literatura. Para o autor, o cinema também procurou promover a desnaturalização dos objetos, para recriá-los cinematograficamente por meio da luz como material poético e dramático. Além disso, o cinema buscou, segundo Richter, “as qualidades mágicas para criar o estado original do sonho”, liberando-se completamente “do relato tradicional e de sua cronologia, em desenvolvimentos dadaístas e surrealistas, nos quais os objetos eram separados de seu contexto original e colocado em novas relações, criando dessa forma um novo conteúdo”.

O artista ressalta, ainda, que essa tradição criativa do cinema, que inclui também o documentário, foi interrompida por conta dos acontecimentos políticos pelos quais a Europa

passou, sendo reassumida pouco a pouco por uma nova geração de jovens nos Estados Unidos e também em outras partes do mundo. E por fim, Richter aponta:

Quanto mais vigorosos e independentes possam ser o filme documental e o experimental, e quanto maior a ocasião em que sejam vistos por um público geral, mais poderão se adaptar a um “estilo de tela”, no lugar de um “estilo teatral”. Só depois desta transformação de público, o filme de entretenimento poderá seguir. E nesta época dourada, o filme-entretenimento e o filme-arte

chegarão a ser idênticos (RICHTER:2000, p.282)64.

Inserido na cena do cinema experimental desde os anos 1920, Hans Richter conseguia perceber que algo de diferente estava acontecendo com a imagem em movimento e que, para dar continuidade a isso, esse tipo de cinematografia precisaria encontrar-se com seus interlocutores. Além da importância de se libertar das amarras do teatro e da literatura, o que faria com que o cinema descobrisse a sua própria natureza constitutiva, Richter percebia-o também como um meio para expressar artisticamente o pensamento do realizador por meio de construções discursivas. Porém, como bem apontou, essas formas precisariam ainda da aquisição de um novo público para se consolidarem num “estilo de tela”.

Nesse percurso, surgiu Chris Marker, com seu longa inaugural Carta da Sibéria (1957), que abriu uma nova modalidade de criação dentro do campo do ensaio: o filme-diário ou filme- carta. Antes dele, houve O homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929), em cujos créditos iniciais lia-se “Excertos do diário de um cinegrafista”, porém sua narrativa, marcada por cenas de cidades russas organizadas ao longo de um dia, passou a ser chamada de Sinfonias Urbanas, juntamente com filmes como Berlim – sinfonia de uma grande cidade (Walter Ruttman, 1927) e Rien que les heures (Alberto Cavalcanti, 1926). O homem com uma câmera é um protoensaio não só pelo teor diarístico (apesar de não ser a característica mais marcante de sua narrativa) mas também por conta de sua estrutura metalinguística (modo reflexivo), em que se vê um filme sendo construído dentro do próprio filme, desde sua captação, passando pela montagem, até a exibição.

64 Cuanto más vigorosos e independiente puedan llegar a ser el film documental y el experimental, y cuanto mayor

sea la ocasión de que sean vistos por el público general, más habrán de adaptarse a un “estilo de pantalla” en lugar de un “estilo teatral”. Sólo después de que haya ocurrido tal transformación del publico, el film de entretenimiento podrá seguirle. En esa época dorada, el film-entretenimiento y el film-arte llegarán a se idénticos (RICHTER:2000, p.282).

Figura 50 – Frames de O homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929)

Mas foi em Carta da Sibéria que o filme-diário surgiu com muitas das características de um documentário clássico, numa época em que ainda não havia a possibilidade da entrevista acontecer, já buscando romper com a gramática e a estilística do gênero. Nele, assiste-se a um importante deslocamento do documentário, em que a narrativa em primeira pessoa parte do subjetivo e pessoal para uma abordagem mais ampla, que transborda para a esfera pública. A voz de Cartas da Sibéria não é autoritária nem enfática e não acontece na terceira pessoa; ao contrário, tem-se uma voz que traz uma carga de subjetividade ao filme, ao falar do que gostaria de fazer e daquilo que não foi possível realizar, das imagens e filmes que gostaria de rodar. Observa-se, inclusive, um tom reflexivo, quando se vê a mesma imagem ser repetida por três vezes com diferentes textos, tons de narração e estilos de interpretação, proporcionando diferentes leituras para o filme. Nesse instante, fica evidente o poder de condução do longa, por mais íntimo e pessoal que possa parecer seu narrador. Logo no início, ele já deixa claro seu propósito, afirmando que aquela era uma carta (apesar de se estar assistindo a um filme) que ele escrevia de uma terra distante. Por se tratar de um região remota da ex-União Soviética, em alguns momentos a paisagem reforçada por enquadramentos estratégicos lembra os filmes do Dziga Vertov, como, por exemplo, os closes nos alto-falantes posicionados nas ruas, as paisagens desoladas e o progresso indicado pelas imagens das construções de barragens e usinas de energia termoelétricas. No auge da Guerra Fria, Chris Marker parece fazer uma provocação aos Estados Unidos ao comparar o extremo leste soviético ao oeste americano,

mostrando como aquele território inóspito e um dos mais pobres da ex-URSS estava crescendo, destacando, assim, a potência na qual o país estava se tornando.

O filme chama muito atenção, sobretudo em razão das dúvidas que cria. Muitos críticos indagaram-se se Cartas da Sibéria poderia ou não ser considerado um documentário por conta do excesso de liberdade em relação às regras que regiam o meio e do tratamento demasiadamente artístico e criativo imposto sobre a realidade. O crítico André Bazin escreveu um artigo sobre o Cartas da Sibéria, expondo suas impressões, tentando entender e definir o que seria aquilo que o cineasta francês estava propondo.

Como apresentar Carta da Sibéria? Em primeiro lugar como aquilo que não é, constatando que não se parece em absoluto com nenhum filme do tipo documental do que até agora temos visto. Mas agora temos que tentar dizer aquilo que é [...] Carta da Sibéria é um ensaio em forma de reportagem cinematográfica sobre a realidade siberiana do passado e do presente. Ou melhor, adaptando a fórmula que Vigo aplicava a “À propôs de Nice”, “um ponto de vista documentado”, diria que é um ensaio documentado por um filme. A palavra que importa aqui é “ensaio”, entendida no mesmo sentido que na literatura: um ensaio simultaneamente histórico e político, embora

escrito por um poeta (BAZIN: 1998)65.

Bazin reflete sobre a ideia de filme-ensaio aproximando o cinema, mais uma vez, da literatura, porém de um gênero mais livre, sem muitas regras ou normas, no qual costuma acontecer um “entrecruzamento da expressão pessoal, da experiência pública e do processo do pensamento” (CORRIGAN:2015, p.18). O crítico francês ainda enfatiza alguns comentários irônicos de Marker, que acontecem ao longo do filme e rompem com a imersão cinematográfica, afirmando que o filme demonstra afinal que “a imparcialidade é uma ilusão”.

65 Como presentar Lettre de Siberie? En primer lugar como lo que no es, constatando que no se parece en absoluto

a ningún film de tipo documental de los que hasta ahora hemos visto. Pero ahora hay que intentar decir lo que es […] Lettre de Siberie es un ensayo en forma de reportaje cinematográfico sobre la realidad siberiana del pasado y del presente. O aun mejor, adaptando la formula que Vigo aplicaba a À propos de Nice, "un punto de vista documentado", diré que es un ensayo documentado por el film. La palabra que importa aquí es "ensayo", entendida en el mismo sentido que en literatura: un ensayo a la vez histórico y político, aunque escrito por un poeta (BAZIN: 1998).

Figura 51 – Frames de Cartas da Sibéria (Chris Marker, 1957)

A comparação desse tipo de filme com o ensaio literário abre uma porta que o aproxima de toda uma corrente de pensamento desenvolvida desde Michel de Montaigne, no século XVI. Fazendo um breve recorte que ajudará a compreender o filme-ensaio com apoio na literatura, porém focando apenas o século XX (quando essa forma surgiu no cinema), toma-se, aqui, como ponto de partida, Georg Lukács, que escreveu uma das primeiras publicações sobre ensaio - On the nature and form of the essay (1910) – na qual afirmava que a experiência ensaística é “um acontecimento da alma”, que torna o autor “consciente de seu próprio eu, devendo se encontrar e construir algo a partir de si mesmo” (LUKACS apud CORRIGAN:2015, p.26). Já na época do cinema moderno, em 1947, uma década antes do filme pioneiro de Chris Marker, Max Bense observava:

O ensaísta é um combinador que cria incansavelmente novas configurações ao redor de um objeto dado [...] a configuração é também uma categoria da teoria do conhecimento, uma categoria que não se chega por uma via dedutiva e axiomática, mas tão somente por meio desta combinatória literária que substitui o conhecimento puro pela imaginação (BENSE apud CORRRIGAN: 2015, p. 27).

Essas configurações acontecem de maneira fragmentada, em pedaços que se combinam e recombinam de diversas maneiras, com narrativas em primeira pessoa que abordam experiências vividas ou fabuladas em organizações muito semelhantes àquelas que acontecem na montagem cinematográfica.

Em 1957, Theodor W. Adorno escreveu um texto seminal intitulado O ensaio como forma. Nele, o filósofo alemão aponta que ensaio foi a primeira e única forma literária a postar uma dúvida quanto ao “direito incondicional do método”. A dificuldade em defini-lo de uma maneira objetiva reside no fato de que o ensaio é marcado por uma não identidade, sendo “radical no não radicalismo”, contestando regras previamente estabelecidas, propondo outras formas de estruturas narrativas. Segundo Adorno, o ensaio “não quer procurar o eterno no transitório”, mas sim “eternizar o transitório”. Essa falta de identidade adquirida se dá por conta de uma busca por meio de tentativas para se perpetuar uma experiência.

A relação com a experiência – e o ensaio confere à experiência tanta substância quanto a teoria tradicional às meras categorias – é uma relação com toda a história; a experiência meramente individual, que a consciência toma como ponto de partida por sua proximidade, é ela mesma já mediada pela experiência mais abrangente da humanidade histórica; é um mero- engano da sociedade e da ideologia individualistas conceber a experiência da humanidade histórica como sendo mediada, enquanto o imediato, por sua vez, seria a experiência própria de cada um (ADORNO: 1986, p.26).

Como a experiência parte da subjetividade de cada um que a viveu, suas representações costumam ser fragmentadas, pensadas em partes, organizadas em pedaços, sem uma relação clara e direta entre cada um dos elementos articulados. Portanto a descontinuidade é algo fundamental e essencial a essa prática – afinal “a própria realidade é fragmentada” –, e o ensaio “encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas, e não ao aplainar a realidade fraturada”. A descontinuidade faz parte da sua estrutura, torna-se uma marca, transforma-se em narrativa, tornando seu assunto sempre “um conflito em suspenso”.

Desse modo, o ensaio suspende ao mesmo tempo o conceito tradicional de método. O pensamento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela profundidade com que é capaz de reduzi-lo a uma outra coisa. O ensaio lida com esse critério de maneira polêmica, manejando assuntos que, segundo as regras do jogo, seriam considerados dedutíveis, mas sem buscar a sua dedução definitiva. Ele unifica livremente pelo pensamento o que se encontra unido nos objetos de sua livre escolha. Não insiste caprichosamente em alcançar algo para alem das mediações – e estas são mediações históricas, nas quais está sedimentada a sociedade como um todo -, mas busca o teor de verdade como algo histórico por si mesmo. (ADORNO:1986, p.27)

O cineasta e crítico Jean-Pierre Gorin (2007) aponta as relações entre o ensaio literário e o audiovisual afirmando que, “como na literatura, os ensaios fílmicos nos ajudam a entender que o assunto é o que importa ao próprio assunto”66. E nisso reside algo cativante do filme- ensaio, pois ele costuma atrair o interesse de seus espectadores não pelo assunto de que costuma tratar, mas pela maneira como o aborda, na tentativa de – em vez de informar, como num