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O estado documental no cinema experimental brasileiro

3. REFLEXÕES SOBRE O REAL

3.4 Para além da sala escura: a documentalidade no cinema experimental e expandido

3.4.2 O estado documental no cinema experimental brasileiro

3.4.2 O estado documental no cinema experimental brasileiro

Alguns cineastas ligados ao cinema marginal, uma das vertentes do cinema experimental brasileiro, mergulharam nas abordagens do real para produzir filmes poéticos e inventivos sobre eventos, poetas, cineastas, manifestações de cultura popular e música.

Em Experimentar o experimental, Hélio Oiticica sugere uma nova abordagem ao fazer artístico que ecoa nas propostas dos cinemas desviantes chamados de experimental, poesia, abstrato, pessoal, expandido e/ou ao vivo. Oiticica propõe aos artistas um “estado de invenção”, ou seja, “um estado de desligamento, de esvaziamento (que não significa um nada), que é a abertura para o ato expressivo enquanto ato criador” (TEIXEIRA:1999, p.33), no qual o experimental não é um objetivo a ser alcançado, mas apenas um caminho a ser percorrido no “exercício experimental da liberdade”, que não consiste na “criação de obras, mas na iniciativa de assumir o experimental” (OITICICA: 1972, on-line)78. Dessa maneira, o ato criativo liberta- se das pressões e preocupações com o mercado das artes, da necessidade de se expor em museus e galerias e da “competição de criadores de obras”, abrindo caminhos para “o consumo sem ser consumismo, indiferente à competição do eu-melhor-que-você das artes” (OITICICA:1972, on-line). Essa proposta de realização e produção sugere uma arte que se faz no inesperado, na experimentação e na observação, numa jornada que promove descobertas, aparentemente, ao acaso. Sendo assim, “a palavra experimental é apropriada, não para ser entendida como descritiva de um ato a ser julgado posteriormente em termos de sucesso ou fracasso, mas como um ato cujo o resultado é desconhecido” (CAGE apud OITICICA: 1972, on-line), que possibilita diversas descobertas. Como aponta Oiticica (1972) “os fios soltos do experimental são energias que brotam para um número aberto de possibilidades”.

O cinema marginal surgiu logo depois do golpe militar, funcionando como uma espécie de catarse contra a ditadura. Essa manifestação cinematográfica é marcada por uma ruptura com a linguagem visual recorrente do cinema comercial, por uma fragmentação da narrativa que prioriza o mostrar em vez do narrar, por meio de personagens à deriva que se constroem no presente. O deboche, a ironia e a alegoria aparecem de maneira recorrente em filmes carregados de citações em que se pega “o discurso-outro, incorporam-se às vezes pedaços inteiros do original, às vezes se reelabora a matriz deixando, no entanto, indícios claros da procedência” (RAMOS: 1987, p.133).

78 OITICICA, Helio. Experimentar o experimental. Anotações do Artista, New York. 1972.

Ligado aos movimentos da contracultura, o cinema marginal valoriza a figura do anti- herói, dos tipos desajustados, solitários que andam sempre à margem da sociedade seja no campo das artes, literatura, música ou cinema. E são essas figuras pelas quais Ivan Cardoso se interessa quando realiza seus curta-metragens retratísticos, carregados de fragmentos biográficos. Em H.O. (1979), Ivan Cardoso acompanha o processo criativo do artista Hélio Oiticica, no qual a articulação de determinados elementos imagéticos e sonoros trazem estados documentais de diferentes intensidades. Num determinado instante de H.O., tem-se um depoimento em off de Oiticica, falando sobre os Parangolés, enquanto Nildo da Mangueira dança com os mantos coloridos. Num outro trecho, ouve-se a narração de Scarlet Moon sobre conceitos que definem as relações do espectador com as obras, enquanto se assiste a imagens observativas da abertura da instalação Penetrável PN 27 “Rijanviera”, que contou com as presenças de Lígia Clark, Lygia Pape, Caetano Veloso e Wally Salomão. Pela falta de recursos e com muita engenhosidade narrativa, o que era pra ser um suposto documentário, tornou-se um filme experimental com locuções em tom radialístico, performance do personagem retratado, texto e poemas de Haroldo de Campos sob a voz de Décio Pignatari, ângulos inusitados, animações abstratas e uma montagem ágil, em que, num determinado instante, se ouve a música Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones.

Sempre fui underground, gostei de fazer as coisas diferentes. Considerava os documentários tradicionais caretas (p.154) […] um dos maiores problemas era que a obra do Hélio estava toda encaixotada. Não pude filmar a Tropicália, nem os ninhos, nem os bilaterais, nem os relevos espaciais, nem os metaesquemas, quase nada. H.O. virou mesmo um filme experimental. (CARDOSO:2008, p.240)

Além de H.O., Cardoso realizou os curtas retratísticos com pessoas que faziam parte do seu círculo de amizade: Moreira da Silva (1973), O Universo de Mojica Marins (1977), Torquato Neto – o anjo Torto da Tropicália (1992), À meia-noite com Glauber Rocha (1997) e Heliorama (2004).

Figura 63 – Frames de H.O. (1979) de Ivan Cardoso

Alguns cineastas rejeitaram os termos marginal e experimental por achá-los pejorativos, já que a palavra experimental pode estar associada à noção de experimento ou, ainda, a um cinema amador ou caseiro. A palavra marginal também deixava alguns realizadores desconfortáveis, pois denegria uma manifestação cinematográfica autoral e transgressora que buscava novas linguagens. Surgiu, então, a nomenclatura udigrudi (em referência ao cinema underground norte-americano), cinema pessoal e ainda cinema de invenção, termo emprestado pelo crítico, escritor e cineasta Jario Ferreira dos textos de Ezra Pound. Para Ferreira, “basta entender cinema onde Pound escreve literatura e/ou poesia” (FERREIRA:2016):

Se nos dispusermos a ir em busca de elementos puros em literatura, acabaremos concluindo que ela tem sido criada pelas seguintes classes de pessoas:

1. Inventores. Homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo.

2. Mestres. Homens que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores.

3. Diluidores. Homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e não foram capazes de realizar tão bem o trabalho.

4. Bons escritores sem qualidade saliente. Homens que tiveram a sorte de nascer numa época em que a literatura de seu país esta em boa ordem ou em que algum ramo particular onde a arte de escrever é saudável. Por exemplo, homens que escreveram sonetos no tempo de Dante, homens que escreveram poemas curtos no tempo de Shakespeare ou algumas décadas a seguir, ou que escreveram romances e contos, na França, depois que Flaubert lhes mostrou como fazê-lo.

5. Beletristas. Homens que realmente não inventaram nada, mas que se especializaram em uma parte particular da arte de escrever, e que não podem ser considerados grandes homens ou autores que tentaram dar uma representação completa da vida ou da sua época.

6. Lançadores de modas. Enquanto o leitor não conhecer as duas primeiras categorias, será incapaz de distinguir as árvores da floresta. Ele pode saber de que gosta. Ele pode ser um verdadeiro amador de livros, com uma grande biblioteca de volumes magnificamente impressos, nas mais

caras e vistosas encadernações, mas nunca será capaz de ordenar o seu conhecimento ou de apreciar o valor de um livro em relação a outros, e se sentirá ainda mais confuso e menos capaz de formular um juízo sobre um livro cujo autor está rompendo com as convenções do que sobre um livro de oitenta ou cem anos atrás. Ele jamais compreenderá a razão pela qual um especialista se mostra irritado com ele ao vê-lo exibir pomposamente uma opinião de segunda ou terceira mão a propósito dos méritos do seu autor favorito. (FERREIRA:2016, p.34 – 35)

Ao se apropriar dos conceitos de Pound, Ferreira ressignificou o cinema experimental brasileiro, retirando terminologias passíveis de interpretações pejorativas, valorizando uma manifestação cinematográfica que, ao romper com as regras previamente estabelecidas, aponta para novos e possíveis caminhos narrativos, que possibilitam uma oxigenação ao fazer artístico. Tudo se pode no cinema experimental, contanto que seu realizador saiba os motivos que o levaram a se lançar no vazio imprevisível da experimentação. Porém, para um inventor, esse tudo que é possível, claramente, não é qualquer coisa.

Muitos dos filmes de Ferreira experimentaram construções poéticas que atravessaram o real, apoiando-se em narrativas ensaísticas sobre personagens permeadas por diferentes níveis de documentalidade. Créditos escritos à mão numa folha de papel e lutadores de sumô demonstrando seus movimentos abrem o curta-metragem Antes que eu me esqueça (1977), de Jairo Ferreira, que segue com poetas, como Claudio Willer e Roberto Piva, recitando os poemas de Roberto Bicelli em São Paulo. Esse sarau traz também intervenções musicais feitas por Jorge Mautner e Nelson Jacobina. As performances desse encontro poético-musical foram indexadas como documentário pelo próprio autor, que, no instante final do filme, diz em off, enquanto a câmera de Super-8 filma o espelho dando um close na própria lente: “antes que eu me esqueça, este documentário foi filmado no Teatro Célia Helena durante a festa de lançamento do livro de Roberto Bicelli em São Paulo, em dezembro de 1977”.

No ano seguinte, Jairo Ferreira realizou, em Super-8, o Horror Palace Hotel (1978), em parceria com Rogério Sganzerla, numa viagem ao 11º Festival de Brasília. Todos os convidados estavam hospedados no Hotel Nacional, onde se passa a maior parte da narrativa, e Ferreira, credenciado como jornalista da Folha de São Paulo, aproveitou a viagem para fazer seu filme. Logo nas primeiras cenas, ele entrevista José Mojica Marins, um dos personagens principais, perguntando o que significa ter o filme Ritual dos Sádicos (1970) censurado já por quase dez anos. Essa questão traz o contexto político do momento, a repressão contra a cultura e a necessidade de se fazer filmes em que o escracho, a poesia, a ruptura e a invenção consigam

encobrir as ideias tidas como subversivas, tornando-as codificadas, esquivando-se, assim, da imposição da censura.

O contexto político é uma questão fundamental para o entendimento da proliferação do cinema experimental no país. O final da década de 1960 foi um dos períodos mais conturbados das ditaduras militares instauradas no Brasil e na América Latina, e marcado pela descrença na possibilidade de revolução. Muitos combatentes, intelectuais e artistas precisaram se exilar. Ao mesmo tempo, representou um momento de ebulição da arte e cultura, em que artistas buscaram inserir atos de resistência em suas obras, maneiras de protestar contra a opressão sob a qual viviam. Entretanto, em muitos casos foi necessário adotar uma forma de expressão cifrada, simbólica, de modo a driblar a censura em vigor (RAMOS; MURARI: 2018, p.278).

Além de Mojica, o outro personagem de destaque em Horror Palace Hotel é Francisco Luís de Almeida Salles, ensaísta, crítico de cinema e um dos fundadores da Cinemateca Brasileira. A dualidade entre os dois é marcante e complementam-se; enquanto Mojica é um “gênio” bruto com frases diretas, objetivas, que estão sempre na busca de uma elaboração, Salles traz um pensamento refinado, carregado de metáforas e aforismos. Ainda participam do filme Ivan Cardoso, Elyseu Visconti e Julio Bressane.

Figura 64 – Frames de Antes que eu me esqueça (1977) e Horror Palace Hotel (1978), de Jairo Ferreira

Um outro exemplo de cineasta experimental que incorpora a documentalidade em suas obras é Arthur Omar. Com a necessidade de refletir sobre a sua produção e a dificuldade de compreender o que estava fazendo na década de 1970, quando sua referência era o cinema documental, Omar escreveu o artigo O antidocumentário, provisoriamente, publicado originalmente, em 1972, no Jornal do Brasil, mesmo ano em que lançou o curta-metragem Congo (1972). Textos e imagens em movimento promovem uma ruptura com o modelo

sociológico79, estética documental realizada naquela época no Brasil, ao questionar as relações entre ficção e realidade no documentário com base nas formas como eram praticadas.

Frente a esse campo irresistível, não existe o filme documentário como linguagem autônoma, isto é, o documentário tal como existe hoje é um subproduto da ficção narrativa, sem conter em si qualquer aparato formal e estético que lhe permita cumprir com independência seu hipotético programa mínimo: documentar [...] o cinema de ficção aperfeiçoou, com grande esforço, uma série de dispositivos estéticos visando tornar mais real o que ele queria apresentar como realidade, e o documentário, cujo desenvolvimento foi mera absorção desses dispositivos, acaba apresentando a sua realidade documental como se fosse ficção. (OMAR: 1978, p.406)

Em busca de uma documentação inovadora, Omar lança-se no território do experimental problematizando a representação, questionando seus mecanismos com a voz autoritária e didática, carregada de saber, mesclada às entrevistas voltadas para um público que, supostamente, não conhece nada sobre o assunto. Em Congo, Omar nega a própria representação abrindo espaços para uma participação ativa do espectador, que precisa relacionar os elementos sonoros e imagéticos para a produção de sentidos. Em seu artigo Antidocumentário, provisoriamente, Omar, evocando o lugar de fala e apresentando a diferença entre a voz do filme e a voz do personagem, faz questão de sublinhar: “um filme sobre o vaqueiro não é uma canção de vaqueiro, mas um discurso para quem não é vaqueiro” e, mais adiante, em seu texto, ele conclui “um vaqueiro não é o autor de um documentário, nenhum documentário é a fala de um vaqueiro, por mais que se focalize o vaqueiro e o faça falar” (OMAR:1978, p.412). Conforme aponta Silvio Da-Rin, sobre o filme Congo, “não se trata de fazer documentários, tampouco de trabalhar totalmente fora deste domínio; e sim de realizar objetos estéticos que se oponham a seus esquemas tradicionais” (DA-RIN:2004, p.188).

Quando alguém vai documentar, está bulindo numa caixa de marimbondos. Não pelo tema que escolheu, mas porque decidiu que seu gesto, que seu objeto novo depositado em circulação na cultura, seria do tipo documentário e não outro tipo qualquer disponível ou por inventar. A forma-do- documentário faz parte da cultura que documenta e não da cultura (ou do momento) documentada. (OMAR: 1978, p.416)

E assim Arthur Omar constrói sua cinematografia alinhando-se aos cineastas de invenção que aproximaram o cinema experimental do documentário por meio da

79 Modelo sociológico foi um conceito desenvolvido por Jean-Claude Bernadet para abordar os documentários realizados no Brasil nos anos 60, que traziam os modos participativo (entrevistas) e expositivo (voz de Deus), para, por meio de questões ideológicas e estética, abordar a representação do universo cotidiano e popular.

documentalidade. Em Congo, o título do filme pisca sobre um fundo branco seguido das cartelas de texto com as palavras “Teatro popular no Brasil”, “AUTO DOS CONGOS”, “CONGADA, “dramas burlescos-trágicos”, “material negro contra material branco”, “elementos ameríndios”, “sudaneses + bantus” e, assim, o filme vai desfilando uma sequência de frases que trazem informações sobre o surgimento das congadas intercaladas com pouquíssimas imagens de fachadas e salas de antigos casarões, santos, carros de bois, rostos de pessoas e fragmentos da vida rural. Dessa forma, desacreditando o documentário como reprodução do real, Omar rompe com a espetacularização das forma narrativas tradicionais para apresentar “informações não concatenadas de forma narrativa unívoca, mas dispostas caleidoscopicamente, oferecendo ao espectador múltiplas entradas e infinitas conexões significantes” (DA-RIN:2004, p.190). Das poucas imagens apresentadas no filme, nenhuma delas se refere à congada.

Figura 65 – Frames de Congo (1972) de Arthur Omar

3.4.3 Documentalidade: fragmentos do real no live cinema

Com quase duas décadas de existência explorando o território do experimental por meio de abstração, sinestesia e edição de imagens que costumam acontecer num ritmo frenético, o live cinema desloca-se, também, para as construções de realidade em ato performático, aproximando-se do documentário. Tem-se, então, um campo em formação que vem ganhando novos adeptos com trabalhos consistentes que se apoiam nas representações do real. Chamamos, aqui, de live doc o live cinema, seja ele apresentado com edição em tempo real e com música ao vivo, seja, ainda, inserido no contexto da dança, da lecture performance ou do teatro documentário. A palavra doc usada para se referir não ao documentário, mas às documentalidades que essas apresentações incorporam.

Na primeira mostra, no Brasil, que promoveu a passagem do VJ ao live cinema, chamada Red Bull Live Images (2002), o feitoamãos/F.A.Q., coletivo formado por André Amparo, André Melo, Claudio Santos, Lucas Bambozzi, Marcelo Braga, Rodrigo Minelli, Ronaldo Gino e Vítor Garcia, além de outros artistas convidados, apresentou Veja as Instruções Primeiro (2002). Com muitas imagens apropriadas de forte valor documental, a performance, conforme aponta o site da Associação Cultural VideoBrasil, funcionava como um jogo:

[...] parte da ideia de jogo, acaso, desafio, transgressão e enfrentamento. As sensações das apostas serão traduzidas para um clima eletro, a 128 BPM, com influências de punk-rock, noise e industrial, interferências ao vivo e andamento descontínuo. As imagens referenciadas no movimento caótico

urbano transformam todo o texto do jogo em objeto80

Um jogo de combinações do material de arquivo apresentado numa velocidade acelerada, com forte estética das projeções dos VJs das pistas de dança da época, porém com o diferencial ensaístico, com frases como “todos os governos têm seus dias contados”, “no man wanted”, “emergency rations” e “o fim da guerra é a revolução”, e imagens de ditadores, zonas de conflitos, muitos jornais sendo impressos, dentre outras que levavam à reflexão sobre o papel da mídia na construção de realidades e da violência do sistema capitalista.

Em 2005, o feitoamãos/F.A.Q. realizou a performance Carro Bomba no Festival VídeoBrasil. As imagens de uma Kombi explodida com muitos quilos de dinamite e filmadas em película eram manipuladas ao vivo e mescladas com imagens de telejornais que traziam notícias de ataques terroristas em uma Londres assustada, com capas de jornais sobre a Al Qaeda, notícias com as manchetes “Avós conheceram o neto na véspera dos assassinatos”,