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Performance para tela: os diálogos entre corpo e cinema expandido

2. NO ATO DO INSTANTE: DA PERFORMANCE À PERFORMATIVIDADE

2.2 Performance para tela: os diálogos entre corpo e cinema expandido

O experimentalismo no cinema atingiu seu auge nos anos 1920, quando artistas ligados às vanguardas europeias, como Man Ray, René Clair, Luis Buñuel e Salvador Dali, se apropriaram desse meio para criar obras que expressavam ideias, sobretudo, surrealistas e dadaístas. Ao longo dos anos 1960, o cinema mesclou-se com outras práticas artísticas, como as artes visuais, a dança, a música e, sobretudo, com a performance, instante em que a expressão Cinema Expandido (expanded cinema) começou a ser utilizada. Essa prática do cinema experimental foi marcada pelo rompimento com a sala escura, apropriando-se de novos espaços por meio de múltiplas telas, nas projeções nos corpos ou em diversos outros suportes.

Entre os artistas brasileiros, as aproximações entre cinema e artes visuais aconteceu, primeiro, com Rien que les heures, de Alberto Cavalcanti (1926), filme realizado em Paris, que apresenta, em 45 minutos, a Cidade Luz ao longo da jornada de um dia. O trabalho é considerado o percursor das Sinfonias Urbanas27. Seguindo por mesma estética, com realização em terras brasileiras, tem-se o filme São Paulo, sinfonia da metrópole (1929), dos diretores húngaros Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, que apresenta, de maneira poética, a industrialização, fatos históricos e a expansão do café na que viria a ser a maior cidade da América Latina. Porém, o primeiro filme experimental com a direção de um brasileiro feito no Brasil foi Limite, de Mário Peixoto, lançado em 1931. Filmado em Mangaratiba, no Rio de Janeiro, o filme apresenta um barco à deriva e duas mulheres e um homem que relembram o passado. A subjetividade, a simbologia e determinadas cenas surrealistas dialogam com os

27 O filme faz parte do movimento cinematográfico do final dos anos 1920, chamado Sinfonias Urbanas e dedicado

às grandes cidades. As Sinfonias Urbanas serão consideradas a gênese do documentário poético. Este assunto será tratado no 3º capítulo.

filmes europeus de vanguarda dos anos 1920. Após Limite, ficou um vazio na produção do cinema experimental brasileiro por quase 30 anos, até o surgimento do filme inaugural de um dos mais importantes cineastas brasileiros. Em o Pátio (1959), Glauber Rocha flerta com o movimento concreto para apresentar dois performers (Helena Ignez e Solon Ribeiro) numa movimentação de encontros e desencontros, carregada de simbolismos, num pátio formado por quadrados pretos e brancos, que remete a um tabuleiro de xadrez. Na cartela inicial, o trabalho já se autointitula como um filme experimental.

Após o modesto surto dos anos 1930, só trinta anos depois é que se veria a chama do experimental acender-se nas bandas de cá. Pátio (1959), o primeiro filme do cineasta-arquétipo nacional Glauber Rocha, tinha tudo para indicar a promissora carreira do artista engajado no formalismo experimental. Com sua filiação (neo)concretista, Pátio está em sintonia com as investidas inaugurais do underground, como o transe de Maya Deren (Meshes of the

Afternoon, 1943) e Sidney Peterson e James Broughton (The Potted Psalm,

1946). Pelo específico Brasil, não foi o que ocorreu, e o autor viu-se (ou fez- se?) tragado pelas ambições de transformação política e social de um país periférico (ADRIANO:2007 p.17)

Figura 19 - imagem de Limite (Mario Peixoto, 1931) e Pátio (Glauber Rocha, 1959)

A expressão Cinema Expandido apareceu com Jonas Mekas. O lituano radicado nos Estados Unidos, realizador e ativista do cinema experimental, usou o termo Cinema Expandido (Expanded Cinema) pela primeira vez no artigo On the Expanding Eye, publicado em 1964 em sua coluna Movie Journal (REES: 2011), do jornal Village Voice. Mekas apontava uma nova tendência, que observou, pela primeira vez, no Dreamachine (1962), objeto artístico criado por Brion Gysin em parceria com Ian Somerville, em que pulsações de luz eram geradas para serem apreciadas de olhos fechados. Além do Dreamachine, Jonas Mekas utilizou o termo Expanding Eye para se referir aos filmes de Robert Breer, Peter Kubelka e Gregory Markopoulos, repletos

de pulsações luminosas e desenvolvidos com interferências diretas sobre a película. Ainda em 1964, o termo Expanded Cinema passou a ser utilizado pelo autor em seus artigos, nos quais descrevia festivais, mostras e obras dos artistas que investigavam os desdobramentos do cinema no espaço em espetáculos multimídia, experimentos óticos e registros de performances projetados em múltiplas telas.

Em 1970, o pesquisador Gene Youngblood lançou o livro que se tornou referência quando se trata dessa nova forma de fazer cinema. O Expanded Cinema tem como ponto de partida uma série de artigos que o autor publicou entre 1967 a 1969 no Los Angeles Free Press. Esses artigos, organizados e agrupados, analisam e refletem tanto as diversas experiências cinematográficas que aconteciam fora da sala escura e que também se davam no âmbito do vídeo e da informática quanto as experiências híbridas, que aconteciam nas fronteiras entre diversas práticas artísticas.

Pensadores e realizadores já relacionaram, por diversas vezes, o cinema a uma metáfora do aparelho psíquico. Por exemplo, no cinema surrealista, seus realizadores consideravam-no como uma analogia aos sonhos. Assim, numa época em que se buscavam outras formas de ver e perceber o mundo, sobretudo mediante meditação e utilização de substâncias psicotrópicas que permitissem a expansão da consciência, Youngblood (1970) apontou o cinema expandido como o reflexo da consciência que se expandia naquele instante numa forma encontrada para “manifestá-la para fora da mente, na frente de seus olhos”.

Nesse mesmo ano, a performer Carolee Schneemann escreveu, para David Curtis, um dos organizadores do Underground Film Festival at the National Film Theatre, em Londres, uma carta intitulada Expanded Cinema: Free Form Recollections of New York. Nela, Schneemann apontava o momento-chave na história do cinema expandido, quando, no começo dos anos 1960, artistas e performers nova-iorquinos afastavam-se das práticas pictóricas estáticas, ocupando-se das possibilidades de mobilidade das imagens e suas características performáticas e cinéticas. Schneemann indicou os trabalhos da época que buscavam mudanças artísticas e sociais dentro de um turbilhão de atividades que apontavam para o início do cinema expandido. Eram eles: Robert Whitman e suas peças de teatro com projeção de slides; as apresentações dos dançarinos da Judson Church; os happenings de Allan Kaprow e Claes Oldenburg; e as performances do Fluxus, sobretudo, de La Monte Young, Yoko Ono e Nam June Paik.

Carolee Schneemann desenvolveu, ainda, diversos trabalhos performáticos que incluíam a exibição de slides e filmes experimentais projetados sobre o corpo da artista. Para ela, o Cinema Expandido podia ser considerado, também, uma forma de “teatro cinético” (kinetic theatre).

Os trabalhos performáticos de Carolee Schneemann, que combinavam projeções no ambiente e no corpo, partiram em direção à performance.

Como, inicialmente, a exibição das imagens em movimento acontecia em película, o que tornava tudo muito caro, os monitores de televisão (TV) tornaram-se uma alternativa. Muitas vezes eles foram utilizados como objetos escultóricos, reorganizados pelo espaço, acoplados ao corpo e relacionando-se com outras manifestações artísticas. Assim, a televisão deixou o ambiente em que foi concebida e seguiu os passos do cinema desviante. Ao se transformar em objeto de instalação em museus e galerias e, muitas vezes, incorporada à performance, tornou-se expandida. Seria natural que a televisão, que crescia em popularidade e audiência, seguisse a trilha do cinema em busca de uma expansão buscando reinvenção e ressignificação de seu uso. Segundo Youngblood (1970), em 1948, aproximadamente 200.000 lares americanos assistiam a um dos 15 canais de TV. Em 1958, o número saltou para 520 emissoras, que veiculavam conteúdos para 42 milhões de lares. Dez anos depois, esse número dobrou. Artistas como Nam June Paik, criticando esse fenômeno de massa, propuseram uma série de trabalhos que reinventavam a caixa retangular da TV de tubo, intervindo drasticamente na recepção do sinal dos programas gerados pelas emissoras.

Em TV Bra for Living Sculpture (1969), o artista sul-coreano desenvolveu um tipo de sutiã feito de vinil, com pequenos monitores de TV colocados sobre os seios da musicista Charlotte Moorman, enquanto ela executava uma peça musical no violoncelo. O som produzido por Moorman era filtrado e modulado por um sintetizador, que intervinha diretamente no sinal ao vivo de TV recebido nos pequenos monitores. O som processado causava ruídos e interferências nas imagens da “TV sutiã".

Figura 20 - TV Bra for Living Sculpture de Nan June Paik e Charlotte Moorman (1969)

No campo das artes, em diálogo com o cinema expandido brasileiro, Hélio Oiticica desenvolveu a série Penetráveis, realizando instalações em que o visitante vivenciava experiências sensoriais voltadas aos cinco sentidos (paladar, olfato, visão, tato e audição). De acordo com a pesquisadora Christine Mello (2010), os Penetráveis partiram de uma “uma proposta imersiva, com ambiente de trocas e de reconfiguração constante de significados”. Em 1967, Oiticica montou o PN3 – Penetrável Imagético, instalação em que, no final de um ambiente imersivo e labiríntico, disponibilizou uma TV sintonizada numa rede aberta. Deslocando o contexto tradicional da televisão, comumente alocada nos lares, Oiticica alinhou- se a uma série de artistas ao contestar “a maneira passiva tradicional de assistir à televisão, criando novas possibilidades de contato com o meio televisivo e novas possibilidades de fruição” (MELLO: 2010, p.24).

Em parceria com Neville D’Almeida, Helio Oiticica criou também uma série de propostas chamadas Cosmococa – programa in progress, que consistiam em uma nova forma de arejar e recriar a linguagem cinematográfica dentro de ambientes sensoriais que rompessem com a apatia e a inércia das salas de cinema. Nelas, a imagem em movimento era recriada com imagens estáticas de sequências de slides de fotos de personalidades maquiadas com cocaína e acompanhadas por uma densa montagem sonora. Os ambientes de projeção foram preparados para receber o público, que pôde interagir com os elementos dispostos no espaço, como redes, colchonetes, lixas de unha, balões e até uma piscina, na qual o público podia nadar aos sons e imagens das Cosmococas. Os Quasi-Cinemas, criados na parceria de Oiticica com Neville, geraram cinco blocos, batizados de CC1 Trashiscapes, CC2 Onobject, CC3 Maileryn, CC4

Nocagions e CC5 Hendrix War. A série foi influenciada pelas slide-performances do cineasta underground norte-americano Jack Smith e pelo filme experimental Mangue-Bangue, de Neville D’Almeida.

Figura 21 - Imagens da Cosmococa 5 - Hendrix War (1973)

O tempo presente ocasionado pelas transmissões ao vivo aproximou a televisão e, consequentemente, o meio videográfico das artes performáticas, sobretudo com o surgimento dos primeiros equipamentos de registro para uso pessoal, como a câmera Portapak, da Sony, lançada em 1967. Ao contrário dos primórdios do vídeo, outros meios, como o filme, o disco, a fotografia, já surgiram contendo traços do passado, em que o registro partiu de algo que acontecera num tempo distinto da exibição.

A performance, na sua instância efêmera, ao incorporar o meio videográfico (que também possui a efemeridade na sua origem), encontrou novas possibilidades para se perpetuar por meio de registros de ação e também pelas obras que são feitas especialmente para a câmera. O foco desses registros passa a ser o artista e sua relação com o corpo.

Em 1973, a artista e bailarina Ana Lívia Cordeiro realizou, no Brasil, o M 3x3, uma coreografia gravada no estúdio com os equipamentos da TV Cultura de São Paulo. O trabalho, que é o pioneiro da videodança e da videoarte no Brasil, trouxe uma complexa coreografia num cenário concretista em que o figurino se confundia com o fundo preto e branco e os movimentos das bailarinas eram articulados em gestos rápidos e precisos.

Figura 22 – M 3x3 de Ana Lívia Cordeiro (1973)

No ano seguinte, a partir de um convite feito a um grupo de artistas brasileiros para participarem de uma mostra de videoarte na Filadélfia, o vídeo passou a ser efetivamente utilizado como um meio de expressão estética no campo das artes. Com a ajuda do diplomata e documentarista Jom Tob Azulay, que colocou seu equipamento à disposição, foi possível que os artistas Sônia Andrade, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado e Anna Bella Geiger pudessem participar do evento. Em Passagens #1 (1974), Anna Bella Geiger percorreu três escadarias de diferentes locais no Rio de Janeiro, sempre de costas, com registros intercalados em planos gerais, médios e closes. Era como se Geiger, num esforço repetido e constante, continuasse caminhando sem chegar a um ponto final.

Perguntaram-me a razão do meu interesse em usar o vídeo e respondi que me interessava trabalhar com VT como um rascunho; ou às vezes como imagem que se presta a redundância (era a possibilidade do looping) às vezes como discussão da arte, ou do espaço e por vezes não me interessava absolutamente usar o VT no meu trabalho. (GEINGER: 2003, p.75).

Nessa relação entre corpo e câmera, Letícia Parente, que foi aluna de Anna Bella Geiger, realizou, em 1975, uma obra radical. Em Marca Registrada, a artista bordou, na planta de seu pé, a frase “Made in Brasil”. O vídeo, com a câmera feita também por Jom Tob Azulay28,

28 Jom Tob Azulay, responsável pelas imagens das primeiras videoartes no Brasil, aponta as relações e diálogos

entre documentário e performance nos enquadramentos precisos e narrativas estruturadas dos registros de ações para telas. Em 1977, Azulay dirigiu o filme Doces Bárbaros, que acompanhou a turnê do grupo formado por Maria Bethânia, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa.

é um plano sequência em close, com 10 minutos de duração. O rosto de Letícia Parente não é mostrado em nenhum instante, e sua ação nos leva a pensar em uma opressão social, política e cultural da época.

Figura 23 – Passagens #1 (Anna Bella Geiger, 1974) e Marca Registrada (Letícia Parente, 1975)

Jom Tob Azulay, cineasta brasileiro que acabara de voltar de uma temporada em Los Angeles, trazendo um equipamento Sony-Matic/ portable videocorder, foi contatado e se dispôs a gravar nossas primeiras experiências…Num mesmo dia do segundo semestre de 1974 foram gravados os vídeos de Geiger (Passagens), Andrade (sem título) e o meu (You Are

Time). Algum tempo depois Azulay registou Versus, vídeo de Ivens

Machado. Estes foram os vídeos brasileiros que integraram a Video Art americana. (COCCHIARALE: 2003, p.62)

Esse confronto entre o dispositivo videográfico e o corpo do artista apareceu no Brasil também numa outra chave, mais próxima das propostas de Paik, entre as quais estava a fusão da TV de tubo ao corpo do performer. Na série Videocriaturas, exibida pela primeira vez ao público durante uma apresentação de uma orquestra no Festival de Inverno de Campos do Jordão, em 1981, Otavio Donasci criou um humano com cabeça de TV, que se desdobrou, posteriormente, em diversos outros experimentos. Aos poucos, as Videocriaturas migraram para o teatro, em leituras dramáticas como a de O Homem e o Cavalo, de Oswald de Andrade, feita pelo Teatro Oficina (1982), e em peças como Viagem ao Centro da Terra (1992) e A Grande Viagem de Merlin (1994), realizadas em parceria com o diretor Ricardo Karman.

A ideia básica da videocriatura era criar um híbrido, uma espécie de cyborg, metade gente e metade máquina, utilizando um monitor de televisão colocado, através de armações de ferro, em cima de um ator escondido sob mantos pretos. A tela de monitor, ligada a um gravador de vídeo por cabos ou por transmissão sem fio, nos mostrava a imagem de um rosto recitando

monólogos ou dialogando ao vivo com o público ou com outras videcriaturas. A tela era, portanto, a cabeça do ator e ficava fixa sob seu corpo, enquanto este atuava no espaço cênico. O resultado era uma espécie de Mr. Hyde ou monstro de Frankenstein, que circulava pela cena arrastando seus cabos e atormentando os espectadores. Tudo bastante low tech, feito com equipamentos domésticos de vídeo e recursos artesanais, improvisado à maneira brasileira, com os conhecimentos de eletrônica que Donasci foi adquirindo na prática. (MACHADO: 2003, 38)

Figura 24 – Videocriaturas (iniciou em 1981) de Otavio Donasci

No começo dos anos 1980, o aparelho de TV também invadiu os espaços de entretenimento. Foi nos clubes noturnos que nasceu o VJ – primeiro, vídeo jockey e, depois, visual jockey –, figura da noite que incorporou a novidade, a efemeridade, o imediatismo e o risco da edição de imagens ao vivo às produções de imagens expandidas. Abria-se um novo espaço para divulgar uma série de produções independentes, que eclodiram nas grandes cidades.

Durante os últimos dias da era Disco, olhando para o futuro, diversos clubes de Nova Iorque como o Peppermint Lounge, instalaram monitores de TV e começaram a exibir vídeos autorais e undergrounds como parte da sua decoração […] O clube Peppermint Lounge de Nova Iorque tornou-se uma espécie de Universidade do VJ, treinando equipes de vídeo para uma nova

forma de arte29. (SPINRAD, 2005, p.21)

29 During this “Last Days of Disco” era, forward-looking New York dance clubs such as the Peppermint Lounge

installed vídeo monittors and began playing inderground vídeo mixes as part of their décor [...] New York’s Peppermint Lounge club became a sort of “VJ University”, training the vídeo staff in the young art form. (SPINRAD, 2005, p.21)

Em 1981, surgiu, em Nova Iorque, a MTV, um canal voltado a videoclipes. Muitos daqueles artistas que experimentavam possibilidades audiovisuais nas pistas de dança foram atraídos pelas propostas inovadoras do canal, tornando-se criadores e editores de instigantes vinhetas e apresentadores da emissora. A sigla VJ, numa alusão ao DJ (Disc Jockey), foi cunhada para designar os apresentadores dos clipes da MTV. Logo em seguida, essas duas letras passaram a ser utilizadas como referência a todos aqueles que produziam imagens nos clubes noturnos e, posteriormente, para designar os duos de música eletrônica.

As experimentações audiovisuais dos VJs no contexto da música eletrônica levaram à criação de uma prática conhecida por scratch video. Em 1985, o coletivo inglês Gorilla Tapes criou o Death Valley Days, um vídeo feito a partir de scratches30 de imagens documentais veiculadas em programas de TV e das quais se apropriavam para propor novas leituras em tons de sátira e crítica política. O vídeo, com 21 minutos de duração, traz uma musicalidade nos discursos que têm sequências de frases repetidas para reafirmar, de maneira irônica, as relações afetivas entre os líderes conservadores Ronald Reagan e Margaret Thatcher. O Death Valley Days passou a ser distribuído de maneira independente em cópias de VHS.

Figura 25 – Montagem com capa do VHS do Death Valley Days (1985) do coletivo Gorilla Tapes seguido de frames retirados do vídeo

Trabalhos como esse ajudaram a fomentar e ampliar a cena das edições de imagens em tempo real e, com o crescente interesse do público, foram realizados programas de TV, DVDs e festivais em torno dessa prática artística. O Mixmasters foi um programa noturno veiculado

30 Técnica desenvolvida pelos DJs a partir de movimentos realizados rapidamente sobre o disco de vinil para a

na ITV do Reino Unido que durou de 2000 a 2005. O programa tinha duas entradas de dez minutos de duração com apresentação de DJs de gravadoras independentes seguidos por animações e efeitos visuais psicodélicos criados por VJs. A série, que chegou a reunir em torno de 400 artistas de diversas partes do mundo, foi lançada, posteriormente, em DVD. Entre 2005 e 2007, o Addictive TV organizou o festival Optronica, que promoveu a cultura digital por meio de instalações interativas, performances de VJs, DJs, cineastas e músicos. Ao longo desses dois anos, muitas apresentações de VJs aconteceram em salas de cinema, nas quais o público assistia às projeções com atenção, diferente das dispersões de um show ou de uma pista de dança. Esse momento representou uma volta à contemplação da imagem numa busca pela legitimação dessa nova forma de arte. Ali, apresentaram-se, dentre outros, o cineasta Peter Greenaway e músico Karl Bartos (Kraftwerk), que ajudaram, de uma certa maneira, a redefinir a cena, que passou a ser chamada de live cinema ou performances audiovisuais.

No Brasil, a cena dos VJs começou, praticamente, mais de década e meia depois do seu surgimento em Nova Iorque, porém a passagem para o live cinema aconteceu, aproximadamente, na mesma época em que se deu no circuito internacional. Influenciado pelas projeções de um show do Kraftwerk no Free Jazz (1998), em São Paulo, Alexis Anastasiou começou a projetar, no ano seguinte, nas festas de Brasília. No Rio de Janeiro, o diretor de videoclipes Jodele Larcher também se aventurou pelas pistas de dança, cortando e mixando imagens, algo muito próximo ao que já fazia na direção de programas ao vivo de TV, como nas transmissões do Rock in Rio para a TV Globo. E, em São Paulo, Ricardo Lara, sob a alcunha de VJ Spetto, desenvolveu o primeiro programa brasileiro de manipulação de imagens,