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1. ANÁLISE DE CAMPO EM 3 ATOS

1.1 SEQUENZE (Raimo Benedetti, 2010)

1.1.2 Primeiro Ato

A luz se acende e Benedetti manipula uma mangueira de led sobre o livro do Berio, alocado embaixo da câmera a pino. Vêm-se as imagens projetadas no telão. Sarah Hornsby entra em cena e começa a executar a Sequenza I, para flauta. Essa peça, a primeira de uma série de quatorze obras elaboradas para instrumentos solistas, foi escrita em 1958 para o flautista Severino Gazzelloni. A peça requer uma grande capacidade técnico-musical do intérprete, por conta de um minucioso “controle de densidade do percurso melódico, atribuindo três níveis (máximo, médio e mínimo) de tensão a quatro parâmetros da peça – tempo, dinâmica, alturas e morfologia” (PALOPOLI:2013, p.49). Uma das maiores dificuldades da montagem da performance Sequenze foi encontrar os músicos certos para cada uma das peças executadas e também conseguir que aceitassem participar de um projeto experimental de música instrumental contemporânea com cinema ao vivo.

No conjunto das Sequenze, há numerosos elementos unificadores, planejados ou não. O elemento mais óbvio e mais exterior é o virtuosismo. Tenho muito respeito pelo virtuosismo, ainda que essa palavra possa despertar risadinhas irônicas e possa até evocar a imagem do homem elegante e um pouco diáfano com os dedos ágeis e a cabeça oca. O virtuosismo nasce frequentemente de um conflito, de uma tensão entre a ideia musical e o instrumento, entre o material e a matéria musical. (BERIO apud PALOPOLI: 2013, p.45).

Enquanto Hornsby executa a peça, Benedetti cria uma série de grafismos ao manipular a mangueira de led diante da câmera em circuito fechado. Alterando padrões de velocidade do obturador da câmera, o artista produz borrões e rastros, concebendo abstrações que acompanham o ritmo da performance musical. Esse instante sonoro-visual dura 7’30” e encerra-se com um black out da imagem e a musicista recebendo e agradecendo os aplausos da plateia.

Figura 06 – Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010)

Ainda como parte do primeiro ato, depois do apresentação da Sequenza I, para flauta, o trabalho segue com a apresentação de trechos de imagens de arquivo sobre a vida e obra de Luciano Berio. Depois de um black out, surge a frase “LA VERA STORIA” escrita na tela e, na sequência, entra, de maneira sobreposta, uma imagem de arquivo de um concerto regido pelo próprio Berio. Segue o crédito “MUSICA DE LUCIANO BERIO” e “UN PROGRAMMA DI LUCIANO BERIO” sobre uma foto de um concerto. Um brusco movimento de zoom in e zoom out conduz para uma entrevista de Berio num estúdio em italiano, com as seguintes legendas: “Esta noite eu vou falar sobre música contemporânea”. A câmera aproxima-se lentamente em um zoom in: “Tenho convicção que amamos, estudamos, fazemos e usamos música. Mas não podemos contá-la na televisão ou nos jornais”. Percebe-se que a fala está fora de sincronia em relação à imagem, pois o som é interrompido e Berio continua articulando a boca no silêncio. A imagem é cortada para um plano próximo do compositor e a sincronia é retomada: “Penso que a música é sempre contemporânea para quem escuta. E se esta noite falo de música contemporânea”. Agora a imagem é cortada para um close de Berio manuseando um livro, enquanto se ouve “e também para convencê-los que

depende de vocês, e de nós...”. Um close do rosto de Berio é apresentado, quando se nota, mais uma vez, uma falta de sincronia entre a imagem e o som. O compositor diz: “tentar compreender esse fenômeno incrível e envolvente que é a música [...] que está em torno de nós, dentro de nós, antes e diante de nós”.

Figura 07 – Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010)

Uma frequência aguda sobrepõe-se ao final da fala de Berio e é justaposta pela imagem de arquivo de um osciloscópio, que apresenta sinais elétricos por meio de gráficos, ao som de orquestra que invade o ambiente. Planos rápidos de um maestro regendo uma orquestra toma conta da tela, seguidos da imagem do Berio já envelhecido, que diz “até o ruído pode ser considerado música até um certo ponto”. Nesse instante, Raimo Benedetti emite um som que parece concordar com o que foi dito. Segue-se por planos de curta duração de orquestras, maestros, de John Cage e do próprio Berio escrevendo e entregando partituras aos músicos. Enquanto se assiste a uma panorâmica vertical de diversos papéis colocados desorganizadamente uns sobre os outros, ouve-se a voz de Berio dizer “[...] quero convidá-los a considerar o ruído mais amigavelmente. O ruído ao fundo, não existe por si só”. Em uma outra imagem, Berio, sentado ao lado de um piano, continua dizendo: “existe a relação entre ele e algo que ele não é”. Novamente são apresentados planos rápidos de músicos executando trechos de uma das Sequenza do compositor. Sobre essas imagens vertiginosas, Berio diz “melodia, harmonia, contraponto são os pilares da música tonal”. Cortes rápidos, entre planos de músicos em ação, maestros regendo e orquestras são articulados freneticamente sem

respeitar nenhuma regra de decupagem clássica. Falsos raccords são utilizados com frequência. O ritmo da justaposição dos planos acompanha a música executada. Vozes sobrepõem-se aos instrumentos. O trecho, com duração de cinco segundos, de um coral acompanhado por harpa, bateria, trompete e trombone entra em looping e é repetido diversas vezes. As imagens e sons parecem entrar em colapso. Black out. Final do primeiro ato.

Figura 08 – Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010)

Neste instante, o público encontra-se devidamente inserido no tema desse live doc e, mesmo que ele seja leigo e não conheça quase nada do repertório clássico e contemporâneo da música erudita, já possui, no final deste primeiro ato, informações suficientes para acompanhar as próximas imagens, passagens e performances musicais. Todas as imagens armazenadas no computador do artista e utilizadas nesse primeiro bloco são found footages com selo da RAI, imagens apropriadas da Radiotelevisione Italiana. Sequenze tem como estrutura dominante o cinema do banco de dados e o cinema em circuito fechado15 para a construção e elaboração de sua narrativa de caráter documental.

15 Cinema em circuito fechado e cinema do banco de dados são categorias do live cinema que serão abordadas