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Do live cinema ao live doc : performatividades e documentalidades

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE ARTES

RODRIGO CORRÊA GONTIJO

DO LIVE CINEMA AO LIVE DOC

PERFORMATIVIDADES E DOCUMENTALIDADES

CAMPINAS 2019

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DO LIVE CINEMA AO LIVE DOC

PERFORMATIVIDADES E DOCUMENTALIDADES

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Multimeios

ORIENTADOR: FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA

Este trabalho corresponde à versão final da tese de doutorado defendida pelo aluno Rodrigo Corrêa Gontijo e orientado pelo Prof. Dr. Francisco Elinaldo Teixeira

CAMPINAS 2019

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Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Gontijo, Rodrigo,

1974-G589d GonDo live cinema ao live doc - performatividades e documentalidades / Rodrigo Corrêa Gontijo. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

GonOrientador: Francisco Elinaldo Teixeira.

GonTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Gon1. Arte e cinema. 2. Performance (Arte). 3. Recursos audiovisuais. 4. Cinema experimental. I. Teixeira, Francisco Elinaldo, 1954-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: From live cinema to live doc - performativity and documentality Palavras-chave em inglês:

Art and motion pictures Performance art Audio-visual materials Experimental films

Área de concentração: Multimeios Titulação: Doutor em Multimeios Banca examinadora:

Francisco Elinaldo Teixeira [Orientador] Hermes Renato Hildebrand

André Luiz Olzon Vasconcelos Marcus Vinicius Fainer Bastos Sergio Roclaw Basbaum

Data de defesa: 29-08-2019

Programa de Pós-Graduação: Multimeios

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-9154-5863 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/1177520800387401

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RODRIGO CORRÊA GONTIJO

ORIENTADOR: FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA

MEMBROS:

1. PROF. DR. FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA

2. PROF. DR. ANDRÉ LUIZ OLZON VASCONCELOS

3. PROF. DR. HERMES RENATO HILDEBRAND

4. PROF. DR. MARCUS VINICIUS FAINER BASTOS

5. PROF. DR. SERGIO ROCLAW BASBAUM

Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros da Comissão Examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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Ao CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que por meio da bolsa de doutorado tornou possível esta pesquisa.

Ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), por proporcionar meu crescimento como pesquisador.

Ao meu orientador Francisco Elinaldo Teixeira, por acreditar neste trabalho.

Aos professores Marcus Bastos e Matteo Bonfitto pelas relevantes considerações durante a qualificação.

À pesquisadora alemã Cornelia Lund, da Universidade de Hamburgo, pelas valiosas conversas sobre performances audiovisuais.

Aos artistas entrevistados Raimo Benedetti, Manuel Pessoa de Lima e Fernão Ciampa pela disponibilidade e generosidade no compartilhamento de seus trabalhos.

Ao Sergio Basbaum, Dudu Tsuda e Victor Leguy pelas trocas e parcerias artísticas que compartilham fragmentos do real.

Ao amigo Regis Rasia pelos inúmeros textos, dicas e por compartilhar do entusiasmo pelo filme-ensaio e cinema experimental.

À André Olzon, Patrícia Moran, Priscylla Betim pelas marcantes conversas sobre filme-ensaio, documentário e imagens de arquivo que ajudaram a nortear os rumos desta pesquisa.

À Rosagella Leote por me apresentar à performatividade e documentalidade quando estas ainda nem tinham nome.

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Um campo artístico pode ser delimitado – por críticos, pesquisadores ou pelos próprios artistas – pela regularidade de trabalhos atravessados por formas comuns de apresentação, interpretação e produção de narrativas. Esta pesquisa mapeia, sistematiza, analisa e reflete sobre trabalhos geralmente definidos como performances audiovisuais e propõe deslocá-los para o que esta tese demarca como live doc – ou documentalidade ao vivo –, derivação do cinema expandido atravessada simultaneamente por uma dimensão documental e outra performática.

Desde o início dos anos 2000, observa-se a intensificação do surgimento de trabalhos de live cinema, lecture performance, teatro documentário que passam a incorporar fragmentos do real – condensados no conceito de documentalidade – apresentados em ato performático, de onde se deriva a ideia de performatividade. Esses dois conceitos são fundantes para compreender o live doc.

Para delimitar o campo de live doc, optou-se por analisar três performances de live cinema desenvolvidas por artistas brasileiros: Sequenze (Raimo Benedetti, 2010), Are We Doing Right? Remix (Embolex, 2013) e O Pianista Fracassado (Manuel Pessoa de Lima, 2018). Estes trabalhos ajudam a compreender a ideia de live doc de maneira mais ampla, suas especificidades e particularidades. Realizou-se também um recorte histórico do cinema fora da sala escura e a identificação de trabalhos que mesclam imagem em movimento, sons e performance. Esse percurso apresenta como a performance rapidamente se aproximou do cinema experimental e do cinema expandido, e como, a partir dela, chega-se no conceito de performatividade. Em relação ao conceito de documentalidade, parte-se da investigação da problemática da representação do real no documentário, abordando as características do filme-ensaio, para se chegar à documentalidade, ou seja, ao estado documental de determinados trabalhos artísticos.

Por fim, a pesquisa aponta como as relações entre performatividade e documentalidade podem produzir variações nas articulações de sentido promovidas pelas inflexões do real. Também proponhoPropõe-se também caminhos de reflexão para se pensar a relação do público com o live doc, na qual a singularidade da experiência desafia a ideia de reprodutibilidade do cinema.

Palavras-chave: performance audiovisual; documentalidade; performatividade; cinema expandido.

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An artistic field can be delimited - by critics, researchers or by the artists themselves – by the regularity of works crossed by common forms of presentation, interpretation and production of narratives. This research maps, systematizes, analyzes and reflects on works generally defined as audiovisual performances and proposes to move them to what this thesis demarcates as live doc - or live documentality -, derivation of the expanded cinema crossed simultaneously by a documentary and other performative dimension .

Since the beginning of the 2000s, we have witnessed the intensification of the emergence of live cinema, lecture performance, documentary theater that incorporate fragments of real - condensed here into the documentality concept - presented in a performance act, from which the idea of performativity. These two concepts are fundamental to understanding the live doc.

To delimit the field of live doc, we analyze three live cinema performances developed by Brazilian artists: Sequenze (Raimo Benedetti, 2010), Are We Doing Right? Remix (Embolex, 2013) and Failed Pianist (Manuel Pessoa de Lima, 2018). These works help to understand the idea of live doc more broadly, its specificities and particularities. There was also a historical approach of the expanded cinema and the identification of works that mix moving images, sounds and performance. This course presents how performance quickly approached the experimental cinema and expanded cinema, and its derivation to the concept of performativity. With regard to the concept of documentality, we start with the investigation of the problematic of the representation in documentary, approaching the characteristics of the film-essay, in order to arrive at documentality, that is, the documentary state of certain artistic works.

Finally, this research points out how the relations between performativity and documentality can produce variations in the articulations of meaning promoted by the inflections of the real. It also proposes ways of reflecting about the relation of the public with the live doc, in which the singularity of the experience defies the idea of the reproducibility of the cinema.

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Figura 01 - Frames de Re-Publica (Henrique Heber, Lucas Abreu e Rodrigo Gontijo, 2001) Figura 02 - Frames de Na Profundeza das Aparências (dir. Juliana Caetano e Rodrigo Gontijo, 2003)

Figura 03 - Frames do registro de Porque nunca me tornei um(a) dançarino(a) (Núcleo Artérias, 2004)

Figura 04 - Equipamentos que integram a trakitana de Raimo Benedetti Figura 05 - Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010) Figura 06 - Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010) Figura 07 - Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010) Figura 08 - Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010)

Figura 09 - Frames do registro de Are we doing right? Remix (Embolex, 2013) Figura 10 - Frames do registro de Are we doing right? Remix (Embolex, 2013) Figura 11 - Frames do registro de Are we doing right? Remix (Embolex, 2013) Figura 12 - Frames do registro de CalArts Audiotion part 1

Figura 13 - Frames do registro de O Pianista Fracassado (Manuel Pessoa de Lima, 2018) Figura 14 - Frames do registro de O Pianista Fracassado (Manuel Pessoa de Lima, 2018) Figura 15 - Frames do registro de O Pianista Fracassado (Manuel Pessoa de Lima, 2018) Figura 16 - David Tudor durante a apresentação de 4’33” (1952) de John Cage e 18 Happenings in 6 Parts (1959) de Allan Kaprow

Figura 17 – Notícia sobre a Experiência nº2 (1931) publicada em 09 de junho de 1931 no jornal O Estado de São Paulo e registro da Experiência nº3 (1956), de Flávio de Carvalho

Figura 18 – Parangolé (1964), de Hélio Oiticica, e Divisor (1968), de Lygia Pape Figura 19 - imagem de Limite (Mario Peixoto, 1931) e Pátio (Glauber Rocha, 1959) Figura 20 - TV Bra for Living Sculpture de Nan June Paik e Charlotte Moorman (1969) Figura 21 - Imagens da Cosmococa 5 - Hendrix War (1973)

Figura 22 – M 3x3 de Ana Lívia Cordeiro (1973)

Figura 23 – Passagens #1 (Anna Bella Geiger, 1974) e Marca Registrada (Letícia Parente, 1975)

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Tapes seguido de frames retirados do video

Figura 26 – Frames de entrevistas em Sequenze e Are We Doing Right? Remix

Figura 27 – Imagens das obras Sky TV (1966), de Yoko Ono e TV Buddha (1974), de Nam June Paik

Figura 28 – Imagens das cenas em circuito fechado em Sequenze

Figura 29 – Imagens de Blowjob (1964), de Andy Warhol e La région centrale (1971), de Michael Snow

Figura 30 – Negativos de Arnulf Rainer (1960), de Peter Kubelka e T.O.U.C.H.I.N.G. (1968), de Paul Sharits

Figura 31 – Frames de Studie nº5 (1930), de Oskar Fischinger e Begone Dull Care (1949), de Norman McLaren

Figura 32 – Imagens de Catalogue (1961) de John Whitney

Figura 33 – Instante generativo em Sequenze com performance de Andréa Kaiser Figura 34 – Cena Liberte-se do ego em O Pianista Fracassado

Figura 35 – Formação do ideograma Ma

Figura 36 – trecho inicial de Lecture on Nothing (1959), de John Cage

Figura 37 – 21.3 (Robert Morris, 1964) e How to Explain Pictures to a Dead Hare (Joseph Beuys, 1965)

Figura 38 - Descolonizando o Conhecimento (Grada Kilomba, 2015) e Pixelated Revolution (Rabih Mroué, 2012)

Figura 39 – Imagens de O Livro (Veronica Stigger), A caixa preta (Diana Klinger), Na terra prometida (Ilana Feldman)

Figura 40 – Imagens de Confissões de um Bolsista CAPES (2016), de Manuel Pessoa de Lima Figura 41 – Registro do protótipo do cinematógrafo de arduíno e trecho de Cinema das Atrações (2013), de Raimo Benedetti

Figura 42 - Apresentação do single “The Robot” (1978), da banda alemã Kraftwerk Figura 43 – Frame do registro de We Doing Right? Remix (2013) do Embolex

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Figura 45 – Frame do registro de Sequenze (2010), de Raimo Benedetti Figura 46 – Nanook (1922) e Moana (1926) de Robert Flaherty

Figura 47 – Crônica de um Verão (1960) de Jean Rouch e Edgar Morin e Primárias (1960) de Robert Drew

Figura 48 – Parte superior: O homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1930), A Chuva (Joris Ivens, 1929);

Parte inferior: Window Water Baby Moving (Stan Brakhage, 1959), Walden – Diaries, Notes and Sketches (Jonas Mekas, 1969)

Figura 49 – Frames de Inflation (Hans Richter, 1928)

Figura 50 – Frames de O homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929) Figura 51 – Frames de Cartas da Sibéria (Chris Marker, 1957)

Figura 52 – Frames de Santiago (2007) e No Intenso Agora (2017), de João Moreira Salles Figura 53: This is Spinal Tap (1984), de Rob Reiner e Brothers of the Head (2005), de Keith Fulton e Louis Pepe

Figura 54 - Recife Frio (2009), de Kleber Mendonça Filho (acima) e O Sanduíche (2000), de Jorge Furtado (abaixo)

Figura 55 - November (2004) acima e Lovely Andrea (2007) abaixo, de Hito Steyerl

Figura 56 – Imagens das instalações 24 Hour Psycho (Douglas Gordon, 1993) e Schizo (Christoph Draeger,2001)

Figura 57 – Frame de Je vous salut, Sarajevo (Jean-Luc Godard, 1993) Figura 58 – Imagem da instalação Interface (Harun Farocki, 1995)

Figura 59 – Frame de Why I never became a dancer (Tracey Emin, 1995) Figura 60 – Imagens de The Sound os Silence (Alfredo Jaar, 2006)

Figura 61 – Imagens de Os Raimundos, os Severinos e os Franciscos (1998), de Maurício Dias e Waslter Riedweg

Figura 62 – Imagens de Sérgio e Simone (2014), de Virgínia de Medeiro, apresentado na 31ª Bienal de São Paulo

Figura 63 – Frames de H.O. (1979) de Ivan Cardoso

Figura 64 – Frames de Antes que eu me esqueça (1977) e Horror Palace Hotel (1978), de Jairo Ferreira

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de feitoamãos/F.A.Q.

Figura 67 – Frames de Mate Ka Moris (2005), de Rodrigo Gontijo e Dudu Tsuda Figura 68 – Imagem de Latitude [31o10N/121o28E]

Figura 69 – Imagem de Futu Manu (2014) de Rodrigo Gontijo, Sergio Basbaum e Wilton Azevedo

Figura 70 – Imagens de Pixelated Revolution (2012), de Rabih Mroué Figura 71 – Imagens de House in Ásia (Agrupación Señor Serrano, 2014) Figura 72 – Imagens de Campo Minado (2016) de Lola Arias

Figura 73 – Frames do registro de Are We Doing Right? Remix (2013) Figura 74 – Frames do registro de Sequenze (2010)

Figura 75 – Frames do registro de Sequenze (2010)

Figura 76 – Frames do registro de O Pianista Fracassado (2018)

Figura 77 – Imagens das peças Repetição. História(s) do Teatro (2018), Compaixão. A história da metralhadora (2016), Cinco peças fáceis (2016) de Milo Rau

Figura 78 - O agora que demora – nossa Odisseia II (2019) de Christiane Jatahy

Figura 79 – 48_48 (2019) de Letícia Kamada, Lígia Kamada, Pablo Casella, Pipo Pegoraro, Rodrigo Gontijo, Tayná Ibanez e Victor Leguy

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INTRODUÇÃO

O mapeamento de um campo artístico como jornada do artista-pesquisador ... 14

1. ANÁLISE DE CAMPO EM 3 ATOS ... 24

1.1 SEQUENZE (Raimo Benedetti, 2010) ... 28

1.1.1 Prólogo ... 31

1.1.2 Primeiro Ato ... 32

1.2 ARE WE DOING RIGHT? REMIX (Embolex, 2013) ... 36

1.2.1 Sequência 02 - Belo Monte ... 39

1.3 O PIANISTA FRACASSADO (Manuel Pessoa de Lima, 2018) ... 43

1.3.1 Primeiro Ato ... 46

1.3.2 Segundo Ato ... 48

2. NO ATO DO INSTANTE: DA PERFORMANCE À PERFORMATIVIDADE 2.1 Ser, fazer, mostrar: caminhos históricos e conceituais da performance ... 50

2.2 Performance para tela: os diálogos entre corpo e cinema expandido ... 58

2.3 Live Cinema, Live Images, Performances Audiovisuais ... 70

2.3.1 Cinema do Banco de Dados ... 73

2.3.2 Cinema em Circuito Fechado ... 74

2.3.3 Cinema Generativo ... 76

2.4 Convergências entre o live cinema e a lecture performance ... 80

2.5 Performatividade: a potência do ato no live doc ... 91

3. REFLEXÕES SOBRE O REAL 3.1 A problemática da representação ... 102

3.2 Filme-ensaio: a experiência como irradiação do real ...112

3.3 Estados e qualidades documentais: da leitura documentarizante à documentalidade ...125

3.4 Para além da sala escura: a documentalidade no cinema experimental e expandido ... 135

3.4.1 A documentalidade no cinema de exposição ...135

3.4.2 O estado documental no cinema experimental brasileiro ...146

3.4.3 Documentalidade: fragmentos do real no live cinema ...153

Considerações Finais ...170

Referências Bibliográficas ...180

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INTRODUÇÃO

O mapeamento de um campo artístico como jornada do artista-pesquisador

O ponto de inflexão

O ano era 2005. O ponto cartográfico, a casa noturna paulistana Blen Blen, localizada na Zona Oeste da cidade. Junto ao amigo e parceiro de criação Dudu Tsuda, abrimos naquela noite o show do músico pernambucano Junio Barreto1, com uma performance audiovisual chamada Mate Ka Moris (Rodrigo Gontijo e Dudu Tsuda, 2005), expressão que em tétum, a principal língua falada no Timor-Leste, significa vida ou morte, lema dos guerrilheiros que lutaram pela independência desse país. Os elementos narrativos foram construídos a partir do material bruto (imagens e entrevistas) gravado por mim durante o período em que morei em Timor-Leste, e com imagens de arquivo produzidas pelo jornalista inglês e ex-correspondente da BBC Max Stahl, que cedeu imagens do massacre de Santa Cruz2 e da violência das milícias no dia em que a independência do país foi anunciada oficialmente pela ONU, em 1999.

Mate Ka Moris tinha 15 minutos de duração. As imagens – depoimentos de guerrilheiros, cenas de conflitos armados, testemunhos de sobreviventes do massacre – eram editadas por mim em tempo real, enquanto Tsuda criava a trilha sonora ao vivo, a partir de sons retirados do próprio material manipulado e que criavam uma paisagem sonora sombria. Lembro-me de perceber o público abismado com a intensidade das imagens e dos depoimentos. Em um espaço dedicado à música brasileira, de confraternização, de alegria, o trabalho que propusemos como abertura do show caminhava na direção oposta, sem qualquer preparação, introdução, mediação. De repente, ligávamos o projetor e a intensidade se espalhava; muitos pareciam não entender o que estava acontecendo e ficavam surpresos. Esse inusitado do acontecimento parecia modular a relação daqueles sujeitos com o aqui e agora, trazendo outra dimensão para a condição original, ao mesmo tempo em que eles mesmos se projetavam para essa dimensão a partir das reações e emoções inesperadas que nossa performance parecia despertar. Criamos um documentário expandido a partir de uma performance de live cinema, mas na época não tínhamos ideia do que estávamos fazendo. Tudo era muito novo naquele

1 Conseguimos este espaço de apresentação já que Dudu Tsuda também tocava na banda de Junio Barreto.

2 Em 12 de novembro de 1991, o exército da Indonésia abriu fogo contra uma manifestação pacífica timorense

em prol da independência, matando 398 pessoas. O massacre foi filmado pelo jornalista Max Stahl e as imagens chamaram a atenção da comunidade internacional para as atrocidades que aconteciam naquele território ocupado, abrindo assim o processo de independência que aconteceria oito anos mais tarde.

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contexto artístico-urbano: performances audiovisuais que se misturavam com cinema expandido, com a poesia, dança, música, projeções de VJs; manifestações que não raro aconteciam em casas noturnas da região central São Paulo, ou em espaços abertos, com artistas de vários lugares do país.

A experiência que criamos com Mate Ka Moris tirava o público da zona de conforto do ambiente esperado, imergindo os espectadores, sem qualquer aviso prévio, em um país asiático alheio à realidade brasileira salvo pelo compartilhamento da língua portuguesa, acometido por violências simbólicas, sociais e políticas, a partir de imagens e sons ao vivo. Esse procedimento criava uma dobra no próprio acontecimento do show de Junio Barreto, estabelecendo outras ligações de referência entre corpos e espaço, expandindo e criando outras potências naquele ponto cartográfico que em princípio se propunha a outro tipo de experiência (a casa noturna, um bairro boêmio da cidade mais rica do país, um show de música brasileira, a confraternização e a alegria da noite). O empresário de Junio Barreto, Glauber Amaral, ainda assim, gostou muito do trabalho e nos convidou para abrir o show durante toda sua temporada no Blen Blen, sempre às sextas, por três meses. Aceitamos. Foram apenas três apresentações, até que em uma noite, no caminho de volta à casa, fui assaltado e levaram meu laptop com todo o material que utilizávamos na performance.

Essa fatalidade revelou-se, paradoxalmente, o fim e o começo de uma mesma jornada, um ponto de inflexão: o fechamento de um ciclo de experiências que havia vivido no mundo das artes visuais e performáticas – passando pelo documentário, pela performance, pela dança e pelo cinema expandido desde 2003 –, e o início de uma etapa que me levaria a experimentar em um campo artístico ainda sem nome, e que hoje, como pesquisador, proponho como live doc – ou documentalidade ao vivo –, uma derivação do live cinema que incorpora simultaneamente uma dimensão documental e outra performática.

A jornada

Histórias de pessoas sempre me fascinaram, poder compartilhá-las, ainda mais. Depois de morar um ano em São Luís como fotógrafo, em 1999, percebi que o documentário poderia ser um caminho para partilhar o que havia visto e escutado em comunidades de pescadores e quilombolas do estado do Maranhão. Foi assim que decidi voltar para São Paulo, ingressar em uma segunda faculdade e me aprofundar nesse campo para começar a produzir meus próprios trabalhos.

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No primeiro ano, realizei, em parceria com colegas do curso, um documentário mais experimental, a partir de entrevistas com transeuntes na Praça da República, em São Paulo, sobre o tema da cidadania. Na época, a amiga e professora Rosangella Leote – quem me orientou ao longo da graduação – havia me apresentado o curta Parabolic People (1990), da cineasta brasileira Sandra Kogut, pelo qual eu tinha um grande encantamento. A linguagem me parecia arrojada e alinhada com a ideia de diversidade: uma multiplicidade de janelas simultâneas davam voz a várias pessoas incentivadas a falar o que quisessem em frente à câmera. Insisti aos meus colegas do grupo que nosso Re-Pública tivesse aquela mesma estética, cuja polifonia permitiria que nossos personagens falassem simultaneamente e se expressassem pelos quinze minutos dedicados ao trabalho. A insistência por esse procedimento de montagem me rendeu o apelido de Kogut na graduação. Brincadeiras à parte, esse nosso trabalho venceu o FEST NET, um festival de vídeos universitários financiado pela NET, operadora de TV a cabo.

Figura 01 – Frames de Re-Publica (Henrique Heber, Lucas Abreu e Rodrigo Gontijo, 2001)

A repercussão dentro do curso foi grande, e logo apareceram convites para participar de outros projetos. Em 2003, o então colega de curso e hoje artista plástico Rodrigo Garcia Dutra convidou-me para projetar vídeos em uma casa noturna que seria inaugurada em pouco tempo. Dutra estava montando um coletivo de projeção de imagens para atuar no espaço, e aceitei a empreitada. O local se chamava Vegas, e viria a fazer parte, nos anos 2000, do circuito de clubes descolados do Baixo Augusta, região da cidade de São Paulo cuja marca registrada, há décadas, é a diversidade.

Assim nasceu o coletivo Supergás. Durante um ano, mergulhamos no universo do cinema experimental, dos filmes de terror, e das ficções científicas lado B dos anos de 1950 e 1960 para criar nossas projeções – imagens recortadas, com cores alteradas, saturadas, aceleradas ou em reverso, embaladas por músicas de electro rock nas noites de sexta.

Uma noite, desci da cabine de projeção para pegar uma bebida e perguntei para uma pessoa o que achava da projeção e a resposta foi: “Que projeção? Onde?”. Naquele momento

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percebi que o que fazíamos era pouco visto, funcionava apenas como uma pulsação de cores para animar o ambiente.

Em 2003, ingressei na iniciação científica. Meu tema era videoarte, que tem como uma de suas características a hibridização da linguagem do cinema com outras artes visuais. Em parceria com Juliana Caetano, desenvolvemos um projeto de documentário em diálogo com a videoarte, no qual forma e conteúdo estivessem necessariamente relacionados. Chegamos no tema da transexualidade: corpos híbridos cujo gênero, sexo e sexualidade se combinam de diferentes formas para além da condição física e reprodutiva. Entrevistamos travestis de São Paulo e procuramos abordar a questão do preconceito. Convidei Rodrigo Garcia Dutra, idealizador e criador do coletivo Supergás, parceiro das projeções na noite, para montar o filme. Decidimos por uma forma também híbrida, que misturasse linguagem documental e procedimentos da videoarte, como sobreposições, estruturas poéticas, justaposições carregadas de metáforas, uma dimensão sonora que trouxesse outras leituras para as imagens. O trabalho foi premiado no Noia – Festival do Audiovisual Universitário, na Mostra Internacional de Vídeo de Santo André, e também selecionado para a mostra competitiva do Festival Mix Brasil.

Figura 02 – Frames de Na Profundeza das Aparências (dir. Juliana Caetano e Rodrigo Gontijo, 2003)

Levamos as imagens produzidas neste documentário, misturadas às de performances das travestis, para as festas do Vegas, que começaram a ganhar visibilidade. Durante este período, o coletivo Supergás foi convidado para participar de outros eventos de música eletrônica, como Skol Beats, e festas como as da São Paulo Fashion Week.

A crise se instaurava: qual caminho seguir? O da abordagem do real, mergulhando em vidas desconhecidas, convivendo com pessoas fascinantes, transformando histórias em narrativas audiovisuais, ou o caminho das projeções de imagens em tempo real, da pesquisa de linguagem, das possibilidades de trazer imagens e composições visuais no instante do

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acontecimento? Essa crise, no entanto, representava o início das aproximações entre estes dois territórios em minha trajetória.

Essas inquietações me levaram a filmar performances e videodanças para projetar na noite. A manipulação dessas imagens em tempo real foi a forma que encontrei, naquele momento, de trazer corpos em movimento, desconstruir estes movimentos ao vivo, e criar possibilidades de movimentação para além do próprio corpo. Esses experimentos de linguagem vieram também com o cansaço da noite. Não demorou para que abandonasse a carreira de VJ e passasse a me dedicar ao documentário.

No último ano da faculdade, inscrevi-me no processo seletivo de um projeto que levava estudantes universitários para dar aulas de português no Timor-Leste, voluntariamente, durante quatro meses. Via ali a possibilidade de mergulhar no documentário, viver e registrar histórias de um país bem distante do Brasil e cujo processo de independência coincidentemente eu acompanhava desde a década de 1990, depois de ter participado, em uma livraria, de uma palestra sobre o tema com o militante timorense e vencedor do prêmio Nobel da Paz, José Ramos-Horta. Não tinha equipamentos. Consegui da TV PUC uma câmera mini-DV emprestada, uma verba para comprar fitas e várias horas (na verdade, meses) de ilha de edição para montar o trabalho na volta. Em contrapartida, o canal entraria como produtor do projeto. Durante os quatro meses no Timor, atuei como professor, tive a oportunidade de conhecer de perto a realidade de um país recém-independente, massacrado pela Indonésia, cheio de pessoas com narrativas e testemunhos sobre o sofrimento ao qual foram submetidas. Viajei por diversos pontos da ilha com os colegas do projeto e famílias dos estudantes, reencontrei o então ministro das Relações Exteriores, José Ramos-Horta, que havia conhecido naquela palestra no Brasil, por acaso, nos anos de 1990. Joguei futebol com o presidente Xanana Gusmão, com quem fiz uma longa entrevista, acompanhei o trabalho de uma médica espanhola que atendia professores portugueses.Voltei ao Brasil com muitas histórias para contar e quarenta horas de imagens3. Foram meses de edição, transcrevendo entrevistas, selecionando imagens, tentando construir um roteiro. Trabalho árduo e solitário na sala de edição da TV PUC.

Para ganhar a vida e cobrir as dívidas da viagem, comecei a gravar espetáculos de teatro e dança. Do registro, fui apresentado por Raimo Benedetti (que tem um dos trabalhos analisados nesta tese) ao Núcleo Artérias e logo convidado para atuar como performer e

3As imagens obtidas nesta viagem renderam alguns projetos posteriores de documentário, um filme-ensaio,

performances de live doc e instalações de arte. Detalhes de alguns destes projetos serão abordados no terceiro capítulo Reflexões sobre o real.

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videoartista nesta companhia de dança contemporânea que surgia. Documentarista, artista visual: outra vez me via entre esses dois universos. Foi então nesse grupo, o Núcleo Artérias, derivado da Companhia Nova Dança e dirigido por Adriana Grechi, que pela primeira vez subi no palco como performer. Dançava com uma câmera na mão, produzindo imagens em circuito fechado e controlando outras previamente gravadas, colocando em prática a experiência adquirida como VJ. Nosso primeiro trabalho foi inspirado na obra da artista inglesa Tracey Emin chamada Why I never became a dancer (1995). Em um filme de curta duração, a artista britânica resgata traumas do passado trazidos por uma locução em off em primeira pessoa. Parte realizado em Super8 e parte em Hi8, é um exemplo de documentário performativo4 que acontece no âmbito das artes visuais, também chamado de documentário expandido.

O projeto Porque nunca me tornei um(a) dançarino(a) parte deste filme e incorpora outros elementos. Trazíamos uma dimensão documental para a cena, com o áudio dos depoimentos dos próprios performers sobre traumas de suas vidas e as imagens projetadas como se fossem reconstituição destas memórias – material que produzi a partir de viagens à cidade natal de cada artista integrante do grupo. A performance e o campo do documentário se aproximavam em um mesmo território, e intuitivamente começava a incorporar essa simultaneidade em meus trabalhos5.

Figura 03 – Frames do registro de Porque nunca me tornei um(a) dançarino(a) (Núcleo Artérias, 2004)

Pouco depois de Por que nunca me tornei um(a) dançarino(a) ganhar prêmios e circular pelo interior do estado de São Paulo, eu terminava de montar o curta documentário O escasso

4 Esta categoria de estratégia de abordagem do real foi proposta pelo pesquisador norte-americano Bill Nichols e

será aprofundada na terceira parte da tese.

5O espetáculo foi selecionado pelo Festival Cultura Inglesa para ser montado e, depois da estreia, ganhamos um

prêmio da Caravana Teatral do Sesi para circular com ele em várias cidades. Recebeu críticas positivas da imprensa e de pesquisadores em dança, e no início de 2005 foi premiado pela APCA (Associação Paulista dos Críticos de Artes) na categoria Dança – Pesquisa de Linguagem.

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ar de uma ilha6, sobre o Timor-Leste. O material bruto usado para produzir este filme foi o mesmo usado em Mate Ka Moris e os procedimentos do Mate Ka Moris, parecidos com os que utilizava no Núcleo Artérias. O ano era 2005.

O campo do live doc ou documentalidade ao vivo

Desde esses tempos, tenho percebido o surgimento de trabalhos de performance e cinema expandido que se estruturam a partir de discursos e asserções sobre o mundo. Nos últimos anos, têm sido também mais recorrentes7. Por outro lado, nessa trajetória de criação de trabalhos e eventos relacionados ao cinema expandido, participação em festivais de artes visuais e congressos acadêmicos como professor e pesquisador na área de cinema, deparei-me com poucas pesquisas e publicações sobre essa derivação do cinema expandido que incorpora dimensões documentais em ato performático.

O desenvolvimento da presente pesquisa se dá a partir dessa lacuna, em um esforço de sistematizar o campo do live doc, definir e destrinchar conceitos a ele relacionados, e em segundo plano, propor caminhos de reflexão sobre suas possíveis origens, as formas particulares como nele acontece a relação com o público e com a problemática da representação do real.

No resultado da pesquisa, aponto o deslocamento de alguns trabalhos de live cinema – de forma geral, relacionados ao cinema-matéria, cinema subjetivo e cinema do corpo8 – para discussões que problematizam as inflexões do real. Ao olhar para questões consideradas documentais, estes trabalhos produzem diferentes formas de discurso sobre pessoas, eventos, instituições e até sobre si, com narrativas autorreferenciadas, entrecortadas por dimensões autobiográficas e autorretratísticas.

O território nesta tese denominado live doc – em que o cinema expandido carrega consigo elementos documentais e é apresentado em ato performático – abarca trabalhos não

6 Em agosto de 2005, esse filme ganhou os prêmios de Melhor Documentário e Melhor Vídeo no 13º Gramado

Cine Vídeo, que acontece junto ao Festival de Cinema de Gramado.

7 Como em qualquer campo artístico, a regularidade de trabalhos desenvolvidos com as mesmas características,

em um determinado momento, passam a ser agrupados por pesquisadores ou críticos, que apontam para o surgimento de um gênero, território ou movimento. Esse agrupamento também pode ser dar por manifestos, em que os próprios artistas declaram sua existência.

8 Categorias propostas por André Parente (2000) para definir o cinema experimental. Cinema-matéria são os

filmes abstratos, cinema subjetivo se refere aos filmes surrealistas e de vanguarda e cinema do corpo são os filmes que imprimem uma outra temporalidade aos corpos registrados, trazendo, muitas vezes, uma dimensão cerimoniosa e ritualística.

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apenas de performances audiovisuais e live cinema, mas também nos diálogos estabelecidos com a lecture performance e o teatro documentário. Entretanto, as análises qualitativas para definição do campo foram feitas a partir do live cinema, território mais familiar e que condensa características e conceitos também possíveis de serem aplicados nas outras áreas mencionadas.

A pesquisa

O presente trabalho se divide em cinco partes. Na Introdução, narro como, em minha trajetória de artista-pesquisador, encontrei indícios que me levaram a propor a delimitação conceitual do campo live doc.

Em seguida, no primeiro capítulo intitulado Análise de campo em três atos, busco compreender e demarcar o campo live doc, visualizando-o de perto, destrinchando-o, identificando-o, para depois, mais adiante na tese, problematizá-lo por meio de conceitos-chave. É nesse capítulo que também evidencio a metodologia utilizada: análise fílmica dos trabalhos selecionados, realização de entrevistas com os artistas criadores desses trabalhos, e conceituação a partir de bibliografia específica do campo das artes, da performance, do cinema e do cinema expandido. Para delimitar o campo, optei por analisar qualitativamente três performances de live cinema desenvolvidas por artistas brasileiros: Sequenze (Raimo Benedetti, 2010), Are We Doing Right? Remix (Embolex, 2013) e O Pianista Fracassado (Manuel Pessoa de Lima, 2018). Estes trabalhos, até aqui alocados no campo das performances audiovisuais, ajudam a compreender a ideia de live doc de maneira mais ampla, suas especificidades e particularidades. Além disso, baseado no conceito de “descrição densa” proposto por Clifford Geertz (1989), incorporo às análises minhas impressões e anotações da época em que assisti aos trabalhos, além de trechos de entrevistas com cada um dos artistas – nas quais abordei questões referentes ao contexto em que a obra foi realizada, motivações pessoais, formas de financiamento e como compreendem a dimensão documental em seus trabalhos.

Em No ato do instante: da performance à performatividade, segundo capítulo da tese, defino o que é performance e live cinema e proponho um recorte histórico do cinema fora da sala escura; identifico alguns trabalhos que mesclam imagem em movimento e performance; e também discuto a lecture performance a partir da obra O Pianista Fracassado, abordando outras referências neste tema. Esse percurso – no qual passo ainda pelo happening, anterior à performance, e olho para experiências no Brasil a partir dos anos de 1930 como as de Flávio

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de Carvalho, Hélio Oiticica e Lygia Pape – mostra como a performance rapidamente se aproximou do cinema experimental e do cinema expandido, e como a partir dela chego no conceito de performatividade, trazendo autores como Erika Fischer-Lichte e Josette Féral, entre outros.

No terceiro capítulo, Reflexões sobre o real, debruço-me sobre a problemática da representação do real no campo do cinema, e em particular no campo do documentário, a partir das reflexões de Bill Nichols em diálogo com Roman Jakobson. Também abordo as características do filme-ensaio a partir dos conceitos de Timothy Corrigan, Francisco Elinaldo Teixeira e Jean-Pierre Gorin. Esse percurso, assim como no capítulo anterior sobre a performance, permite chegar ao conceito de documentalidade, ou seja, o estado documental de determinados trabalhos de arte a partir das propostas da pesquisadora e artista alemã Hito Steyerl.

Os capítulos dois e três abordam, portanto, os conceitos-chave que proponho como fundamentais para a delimitação do campo: performatividade e documentalidade. Ambos conceitos, aplicados simultaneamente, permitem um recorte de análise que enfatiza a intersecção entre cinema expandido, performatividade e documentalidade, própria do live doc. Ao adicionar o sufixo “idade” aos conceitos de performatividade e documentalidade – os dois eixos constitutivos da definição de live doc –, a palavra se torna um substantivo feminino abstrato que remete a uma qualidade, estado, situação ou quantidade. Neste caso, o sufixo expressa a ideia de estado ou qualidade de performance; ou estado ou situação documental9.

Em relação à denominação do campo live doc como documentalidade ao vivo, ressalto ainda o diálogo teórico que estabeleci sobre esse conceito com Cornelia Lund. A pesquisadora alemã, reconhecida no campo das performances audiovisuais e no live cinema, desenvolve uma recente pesquisa sobre live documentary, ou documentário ao vivo. A aproximação de nossas pesquisas se dá pela identificação deste novo campo, pelo diálogo entre live cinema e performatividade, porém com diferenças terminológicas e portanto conceituais em relação às abordagens do real nele incorporadas. Essa proximidade também reafirma a proposta desta tese e a insere em um contexto mais amplo e atual de construção de conhecimento sobre práticas audiovisuais contemporâneas10.

9O conceito da performatividade venho trabalhando desde o mestrado, para compreender as performances de live

cinema. Quanto à documentalidade, aproximei-me desse conceito em 2018, ao apresentar uma pesquisa sobre live doc no congresso AsAECA (Asociación Argentina de Estudios sobre Cine y Audiovisual), na Universidad

Nacional del Litoral em Santa Fé na Argentina. Participavam da mesma mesa pesquisadores chilenos da Pontificia Universidad Catolica del Chile que me apresentaram este conceito.

10Participando de uma mesa em um evento de arte e tecnologia no Teatro Centro da Terra, conheci Cornelia Lund,

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Por último, nas Considerações finais, retomo o percurso traçado para se chegar ao live doc, mapeio alguns trabalhos recentes apresentados em São Paulo e que coincidem no tempo com a elaboração da última parte da tese, e aponto nessas obras como as relações entre performatividade e documentalidade podem produzir variações nas articulações de sentido promovidas pelas inflexões do real. Também proponho caminhos de reflexão para se pensar a relação do público com o live doc, na qual a singularidade da experiência desafia a ideia de reprodutibilidade e torna-se fundamental para a realização da obra.

problemas internos na instituição à qual estou vinculado. Conhecer outra pesquisadora que também se debruça sobre este tema reafirma a pertinência das hipóteses defendidas nesta tese.

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1. ANÁLISE DO CAMPO EM TRÊS ATOS

Para compreender e demarcar o território do live doc, visualizando-o de perto, destrinchando-o, identificando-o, comparando-o com outras áreas do audiovisual e, assim, problematizá-lo nos capítulos seguintes, optou-se, nesta tese, pela delimitação do campo por meio da análise de três performances de live cinema desenvolvidas por artistas brasileiros. Esses trabalhos, alocados no campo das performances audiovisuais, ajudarão a compreender o campo de maneira mais ampla, suas especificidades e particularidades com apoio nos conceitos levantados. Gerar classificações torna-se necessário, justamente, para que se possa identificar uma atividade contemporânea do cinema expandido que leva para fora da sala escura determinados padrões e gramáticas preestabelecidas no documentário, no filme-ensaio, nos filmes com narrativas em primeira pessoa, mesclando-os com os campos da performance e das artes cênicas. Como dizia Agamben, “a terminologia é o momento poético do pensamento” (AGAMBEN: 2009, p.27).

As obras aqui selecionadas possuem características que tencionam e questionam a linguagem predominante do live cinema, apontando para outros processos que se estruturam “a partir” e “através” de histórias reais, com uma voz que declara, afirma, confirma algo sobre o mundo: seja a existência de uma pessoa, seja um evento, uma instituição ou mesmo o retrato de vida do próprio artista. São ações que se instauram no tempo da apresentação, no momento em que a narrativa acontece diante da plateia. Essas performances audiovisuais, nas quais o cinema expandido se instaura no tempo presente com uma voz assertiva sobre o mundo, têm se tornado recorrentes no live cinema, no teatro documentário ou, ainda, na palestra performática (lecture performance). Em todos esses âmbitos, o cinema expandido desenvolve-se com aspectos desenvolve-semelhantes e elementos similares, o que nos leva a indagar sobre a existência de um novo território que se configura, ou seja, uma prática artística que se forma e que incorpora, em sua estrutura, uma dimensão documental-performativa-ensaística.

Em Sequenze (2010), tem-se a biografia do compositor italiano Luciano Berio abordada de forma inusitada. Raimo Benedetti conduz o espectador por uma jornada composta por imagens de arquivos, narrações, câmera em circuito fechado e músicos executando partituras em cena. Are We Doing Right? Remix (2013), do coletivo Embolex, é uma performance audiovisual gerada a partir de imagens captadas para um documentário que discute o papel das ONGs em algumas partes do mundo. O que se vê é um trabalho de montagem apuradíssimo em múltiplas

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telas mapeadas com acompanhamento musical ao vivo. E, em O Pianista Fracassado (2018), Manuel Pessoa de Lima discute o fracasso em ser pianista, executando músicas clássicas complexas, enquanto o público é atravessado por imagens de entrevistas, aulas de piano, vídeos de autoajuda e luzes vermelhas que cintilam ao som de composições eletrônicas. Os três trabalhos foram vistos ao vivo em diferentes contextos e produzidos na última década; além disso, todos eles têm a música como elemento fundamental em suas narrativas. Sequenze e O Pianista Fracassado falam sobre músicos, na terceira e na primeira pessoa respectivamente, e trazem a música erudita ao vivo além da representação visual do som em determinados instantes da narrativa. Are We Doing Right? Remix tem sua montagem organizada com base em estruturas sonoras e estruturada como se fosse uma partitura musical, em que o ritmo, o tempo, a cadência e o andamento são incorporados no lugar do pensamento tradicional, que estabelece relações entre planos e cenas.

Para analisar as estruturas imagéticas das três performances, o percurso escolhido foi o da análise fílmica. De posse dos registros de cada uma das apresentações, os trabalhos foram vistos e revistos, e algumas cenas foram selecionadas e decompostas em seus elementos constitutivos. Nos capítulos seguintes, ao examinar tecnicamente os trechos mais relevantes de cada live doc, suas características serão analisadas visando à interpretação, reflexão e elaboração de conceitos que fundamentem a constatação da existência deste campo. A forma como os elementos separados e destacados se conectam e se associam para o surgimento de significantes será investigada com apoio em dois eixos primordiais: a performatividade e a documentalidade.

A análise vem relativizar as imagens “espontaneistas” demais da criação e da recepção cinematográfica. Estamos cercados por um dilúvio de imagens. Seu número é tão grande, estão presentes tão “naturalmente”, são tão fáceis de consumir que nos esquecemos de que são o produto de múltiplas manipulações, complexas, às vezes muito elaboradas. O desafio da análise talvez seja reforçar o deslumbramento do espectador, quando merece ficar maravilhado, mas tornando um deslumbramento participante. (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ: 2014, p.13)

A proposta metodológica de análise fílmica aqui empregada tem como fundamento os livros Ensaio sobre a análise fílmica (Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété, 2014) e Lendo as imagens do cinema (Jullier Laurent e Michel Marie, 2009) e apoia-se na experiência por mim adquirida na investigação, observação e realização de performances audiovisuais desde 2004. Partindo de procedimentos analíticos e fenomenológicos, o procedimento de análise foi realizado com base em três elementos constitutivos do live doc: cênico, visual e sonoro, com

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ênfase nos dois primeiros que correspondem a minha área de atuação. Cada um desses três fundamentos foram dividido de acordo com os parâmetros abaixo:

A - ELEMENTOS CÊNICOS

A.1 - Performer: ação, posição em cena, movimentação

A2 - Cenário: quantidade e posição das telas, elementos cênicos, figurino. B – ELEMENTOS VISUAIS

B1 - Numeração do plano, duração em segundos

B2 - Elementos visuais representados - movimentos dos personagens e da câmera B3 - Escala dos planos, incidência angular, profundidade de campo

B.4 - Montagem: cadência, pulsação, ritmo, alternâncias de velocidade; janelas, sobreimpressão, incrustação; por raccords, métrica, intelectual, vertical.

C – ELEMENTOS SONOROS

C1 – Paisagem sonora: diálogo, ruído, música; intensidade, continuidade e ruptura sonora C2 - Sons e imagens em ato performático: sincronismo, assincronismo e relações sinestésicas C.3 - Sons do filme: diegéticos ou extradiegéticos.

Ao decompor, descrever e analisar as imagens projetadas, corre-se o risco de reduzir o estranho ao familiar, reconduzindo o encantamento a um lugar conhecido. Na busca por mais camadas, na intenção de resgatar um espaço de invenção nesse terreno movediço e irregular, ainda no campo das análises, buscou-se uma aproximação com o conceito de descrição densa, de Clifford Geertz, que alterna o conteúdo expresso nas imagens com o fluxo de discursos adquiridos e com a minha experiência como artista que atua, há uma década e meia, no live cinema. Foi nessa contraposição entre a própria experiência e a cena que está sendo estudada que surgiram questões consideradas pertinentes para serem desvendadas. Entrevistas com realizadores, movimentos em cena, repetições de ações, elementos destacados para a construção de narrativas, gestos, espaços em que as obras foram apresentadas e formas de financiamento serviram de subsídio para a formulação de uma análise e interpretação sobre o discurso promovido por cada uma das performances audiovisuais assim como para a compreensão de uma cena.

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O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados - é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar linhas de propriedade, fazer o censo doméstico [...] escrever seu diário. Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escritos não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado. (GEERTZ: 1989, p.20)

A importância dessa combinação de metodologias de análise é tornar o discurso das performances audiovisuais elementos pesquisáveis, ou seja, tornar essas apresentações um campo fértil para uma investigação empírica. São diversas linhas de forças que atravessam a formação desse campo, e apenas algumas delas são apreendidas para, após uma análise fílmica-performativa e uma descrição densa, se produzir elementos que possam ser interpretados em uma perspectiva entre as várias outras possíveis. Uma análise no campo das performances audiovisuais sempre será incompleta, porque é impossível esgotar todos os elementos que dela fazem parte, porém os elementos aqui levantados nos conduzem para algumas reflexões que se desdobram nas relações entre o ato performático e a problemática da representação, como serão tratados nos capítulos adiante.

A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos completa. É uma ciência estranha, cujas afirmativas mais marcantes são as que têm a base mais trêmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado é intensificar a suspeita, a sua própria e a dos outros, de que você não o está encarando de maneira correta. Mas essa é que é a vida do etnógrafo, além de perseguir pessoas sutis com questões obtusas (GEERTZ: 1989, p.39).

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1.1 SEQUENZE (Raimo Benedetti, 2010)

Raimo Benedetti cursou Cinema na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e, desde os anos de 1990, trabalha como videoartista com grupos de teatro e dança, criando videocenários e montando produções cinematográficas. Em 1995, trabalhando para a Cia. Nau de Ícaro, companhia que mescla as linguagens do circo, do teatro e da dança, desenvolveu um objeto que batizou de trakitana, uma espécie de table top11 artesanal e que se tornou sua marca registrada. Em 1999, foi convidado pelo MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) para dar a oficina Vídeo Experimental. Nesse momento, começou a incorporar outros hardwares à trakitana para registrar as ações performativas dos alunos. Esse curso migrou para seu ateliê, o fundo de uma casa em reforma na Vila Madalena, onde aconteceram algumas edições com experimentos para grupos reduzidos.

Retornando às experiências pessoais, em 2002, fui apresentado a Raimo Benedetti por uma amiga que havia trabalhado com ele num filme que estava montando sobre o Manuelzão (personagem que inspirou diversos contos de Guimarães Rosa). Fui então fazer o curso de vídeo experimental num desses grupos reduzidos em seu ateliê. Lá, criamos um trabalho que consistiu numa ação em que deitávamos e rolávamos com vários objetos sob uma câmera zenital (a pino) presa no teto, conectada a um VHS que gravava toda a ação. Logo na sequência, as imagens eram tocadas pelo player de VHS, e o sinal era enviado para um monitor, que tinha uma câmera apontada para sua tela, a qual gravava o resultado final. Ao mesmo tempo, enquanto um participante da oficina controlava a velocidade das imagens no VHS, outro mexia no parâmetro das imagens do monitor (contraste, brilho, saturação) e um terceiro acessava os controles de efeito (shutter e trail12) da câmera. Enquanto isso, um músico tocava uma trilha sonora, que criava o clima do evento. Tudo feito de improviso no calor do momento; as ações performativas diante da câmera transformavam-se em ações performativas de uma edição feita sem cortes, apenas com alterações de velocidade, acelerações e reversos da imagem, com os efeitos do monitor e também com os efeitos da câmera. Um happening da imagem realizado intuitivamente, sem roteiro ou combinações previas, produziu resultados inesperados, cheios

11 Segundo a dicionário de vídeo do site Play de Prata, table top é um “equipamento em forma de mesa onde são

filmados os desenhos animados, stop-motions, etc. A câmera filma de cima para baixo e sobre a mesa, podendo

ser transparente e/ou giratória.” Disponível em: <http://www.playdeprata.com.br/dicionario-de-videos/> Acesso

em 03 abr. 2019.

12 Shutter e Trail eram efeitos disponíveis no menu das câmeras de mini-DV que alterava a velocidade da imagem,

deixando-a mais luminosa e “arrastada” (no caso do primeiro) por conta da abertura do diafragma e mais rastreada (no caso do segundo).

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de interferências, ruídos e sobreposições derivadas de um estética analógica em plena era da revolução digital.

Figura 04 - Equipamentos que integram a trakitana de Raimo Benedetti

Esse curso, além de acontecer no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e em seu próprio ateliê, teve lugar também na Fundació la Caixa (Espanha), Instituto Tomie Othake, MIS, Festival Motomix, unidades do SESC e em algumas Universidades.

Cada trabalho realizado por suas turmas com esse processo de performance, com vídeo e trakitana, é considerado, pelo próprio Benedetti, uma peça de arte. Uma coletânea de 30 experimentos, intitulada Vídeo Experimental (2016), foi lançada comercialmente em DVD com 60 minutos de duração e distribuída pela Lume Filmes. Portanto, sua experiência como professor-artista, conduzindo o aluno por um processo de experimentação no campo da imagem em movimento, tornando-se um facilitador do fazer artístico, carregou toda uma forma didática, porém nada óbvia para suas apresentações.

Sequenze foi realizado por meio do edital Rumos Cinema e Vídeo – Linguagens Expandidas, do Itaú Cultural, e estreou em 24 de novembro de 2010, e foi reapresentada em algumas outras ocasiões. A performance de live cinema incorpora informações documentais, imagens de arquivo, imagens abstratas e gráficas que representam determinados padrões sonoros com imagens em circuito fechado e apresentações de músicos ao vivo. Todos esses elementos colocam quem assiste em contato com a vida e a obra do compositor italiano Luciano Berio (1965 – 2003).

Eu gosto especialmente dos autores que têm muito rigor nos seus trabalhos. Eu gosto dos cineastas experimentais que facilitam a minha viagem dentro de

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suas obras. No McLaren, isso é muito evidente, num filme só com linhas, ele apresenta a primeira e aí você pega o interesse por aquela linha que se desdobrará em duas, depois virarão quatro e dezesseis e depois trinta e quatro. Ele vai criando um desenvolvimento da sua lógica de trabalho e você vai acompanhando esse desenvolvimento. Eu gosto da experimentação quando se dá nesse tipo de configuração expressiva. E o documentário virou, no

Sequenze, uma potente ferramenta neste sentido (entrevista com Raimo

Benedetti13).

Sequenze é um espetáculo roteirizado, com entradas e saídas bem demarcadas e com poucos espaços para a improvisação, respeitando o ambiente de música erudita, ou seja, é um espetáculo para sala escura, palco italiano e ambiente silencioso. A partitura da performance é seguida rigorosamente em todas as apresentações, assim como são executadas as partituras para voz, flauta e trombone pelos músicos do espetáculo. Apesar de o trabalho fazer parte do universo da música erudita, ele traz uma visualidade e informação que conduzem os espectadores por recortes da vida de Luciano Berio. Como Benedetti tem uma formação de montador de filmes, Sequenze possui uma estrutura semelhante à de um concerto, com todos os protocolos e formalidades. A obra começa com o próprio Benedetti surgindo no palco com um caderno-partitura nas mãos. Ele é recebido pelos aplausos do público, desce do palco, caminha até sua estação de trabalho e abre o caderno-partitura, apresentando, diante de uma câmera em circuito fechado, os créditos iniciais. Dali em diante, tem-se a apresentação de três peças de Berio na íntegra: Sequenza I, para Flauta (1958), Sequenza III, para Voz (1965) e Sequenza V, para Trombone (1965), entrecortadas por imagens de arquivo e manipulações de objetos diante da câmera ao vivo. A relação de Raimo Benedetti com a música erudita torna-se evidente, pois ele compreende muitos de torna-seus códigos e recria-os em sua performance, amplificando, assim, as percepções da escuta e da visão.

Na apresentação do Itaú Cultural, as três peças eruditas foram executadas pelos solistas James Strauss (flauta), Andréa Kaiser (voz) e Carlos Freitas (trombone). Mas, em uma remontagem que aconteceu em 25 de novembro de 2016 no Festival Música Estranha, o flautista foi substituído por Sarah Hornsby. A narração foi da artista Lenora de Barros, com entrevistas de Luciano Berio (arquivo) e do compositor e pesquisador Flo Menezes (imagens gravadas).

13 Entrevista concedida por BENEDETTI, Raimo. Data: abril. 2019. Entrevistador: Rodrigo

Gontijo. São Paulo. Formato: mp3. Duração: 38 min. A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo desta tese.

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A ideia de mixar manipulação de imagens ao vivo com performance “in loco” de três das Sequenze com as imagens pré-editadas conferiu ao trabalho um sentido plural e simultâneo, tridimensional e polifônico, que teceu um construto quase “isomórfico” com a noção mesma da “polifonia latente” nas

Squenze, sem que tenha havido, no entanto, previsibilidade na interatividade

entre o sonoro e o visual (FLO MENEZES14).

1.1.1 Prólogo (início até 2’40”)

Raimo Benedetti sai da coxia e entra em cena calçado com tênis vermelho e vestido com calça social preta, camisa branca de mangas curtas e uma gravata avermelhada e bem fina. O figurino do performer tem uma aparência retro, que lembra um personagem dos anos 1960. Em suas mãos, segura um caderno. De pé, na boca de cena, o artista recebe os aplausos da plateia. Raimo desce do palco, posiciona-se diante de seus equipamentos, que estão organizados na lateral, e abre o caderno diante de uma câmera em posição zenital, conectada em circuito fechado, com as imagens sendo projetadas diretamente no telão. A primeira imagem que aparece é a capa do caderno, em que se lê a palavra SEQUENZE escrita à mão e com letras maiúsculas. Ele vai manipulando o caderno, virando as páginas, nas quais surgem os créditos da performance, cada um em uma folha: “baseado na obra de Luciano Berio”, “criação: Raimo Benedetti”, “solistas: Sarah Hornsby, Andréa Kaiser, Carlos Freitas”, “incipit, sequentia, sequentiarum, qua esta musica, musicarum, secundum lucianum”. Nesse instante, ouve-se uma narração em off com a voz da artista Lenora de Barros, que diz “aqui começa a sequência das sequências, que há música das músicas, segundo Luciano”. O off é, portanto, a tradução dos escritos em latim. As páginas são viradas diante da câmera em circuito fechado: “versos de Edoardo Sanguinetti”, “interpretados por Lenora de Barros”, “participação especial: Flo Menezes”, “produção: Mariana Bonfanti” e, por fim, surge uma foto de Luciano Berio.

Raimo escreve, na lateral da foto, os anos de nascimento e morte do músico (1925 – 2003). E a narração em off continua: “e aqui começa o teu desejo, que é o delírio do meu desejo. Música é o desejo dos desejos”. A luz se apaga. Um assistente entra em cena, coloca uma estante de partitura, preparando o início do primeiro ato.

14 Trecho retirado do site de Raimo Benedetti. Disponível em: <www.raimobenedetti.com>. Acesso em 24 maio

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Figura 05 – Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010)

1.1.2 - Primeiro Ato (2’41 – 13’)

A luz se acende e Benedetti manipula uma mangueira de led sobre o livro do Berio, alocado embaixo da câmera a pino. Vêm-se as imagens projetadas no telão. Sarah Hornsby entra em cena e começa a executar a Sequenza I, para flauta. Essa peça, a primeira de uma série de quatorze obras elaboradas para instrumentos solistas, foi escrita em 1958 para o flautista Severino Gazzelloni. A peça requer uma grande capacidade técnico-musical do intérprete, por conta de um minucioso “controle de densidade do percurso melódico, atribuindo três níveis (máximo, médio e mínimo) de tensão a quatro parâmetros da peça – tempo, dinâmica, alturas e morfologia” (PALOPOLI:2013, p.49). Uma das maiores dificuldades da montagem da performance Sequenze foi encontrar os músicos certos para cada uma das peças executadas e também conseguir que aceitassem participar de um projeto experimental de música instrumental contemporânea com cinema ao vivo.

No conjunto das Sequenze, há numerosos elementos unificadores, planejados ou não. O elemento mais óbvio e mais exterior é o virtuosismo. Tenho muito respeito pelo virtuosismo, ainda que essa palavra possa despertar risadinhas irônicas e possa até evocar a imagem do homem elegante e um pouco diáfano com os dedos ágeis e a cabeça oca. O virtuosismo nasce frequentemente de um conflito, de uma tensão entre a ideia musical e o instrumento, entre o material e a matéria musical. (BERIO apud PALOPOLI: 2013, p.45).

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Enquanto Hornsby executa a peça, Benedetti cria uma série de grafismos ao manipular a mangueira de led diante da câmera em circuito fechado. Alterando padrões de velocidade do obturador da câmera, o artista produz borrões e rastros, concebendo abstrações que acompanham o ritmo da performance musical. Esse instante sonoro-visual dura 7’30” e encerra-se com um black out da imagem e a musicista recebendo e agradecendo os aplausos da plateia.

Figura 06 – Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010)

Ainda como parte do primeiro ato, depois do apresentação da Sequenza I, para flauta, o trabalho segue com a apresentação de trechos de imagens de arquivo sobre a vida e obra de Luciano Berio. Depois de um black out, surge a frase “LA VERA STORIA” escrita na tela e, na sequência, entra, de maneira sobreposta, uma imagem de arquivo de um concerto regido pelo próprio Berio. Segue o crédito “MUSICA DE LUCIANO BERIO” e “UN PROGRAMMA DI LUCIANO BERIO” sobre uma foto de um concerto. Um brusco movimento de zoom in e zoom out conduz para uma entrevista de Berio num estúdio em italiano, com as seguintes legendas: “Esta noite eu vou falar sobre música contemporânea”. A câmera aproxima-se lentamente em um zoom in: “Tenho convicção que amamos, estudamos, fazemos e usamos música. Mas não podemos contá-la na televisão ou nos jornais”. Percebe-se que a fala está fora de sincronia em relação à imagem, pois o som é interrompido e Berio continua articulando a boca no silêncio. A imagem é cortada para um plano próximo do compositor e a sincronia é retomada: “Penso que a música é sempre contemporânea para quem escuta. E se esta noite falo de música contemporânea”. Agora a imagem é cortada para um close de Berio manuseando um livro, enquanto se ouve “e também para convencê-los que

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depende de vocês, e de nós...”. Um close do rosto de Berio é apresentado, quando se nota, mais uma vez, uma falta de sincronia entre a imagem e o som. O compositor diz: “tentar compreender esse fenômeno incrível e envolvente que é a música [...] que está em torno de nós, dentro de nós, antes e diante de nós”.

Figura 07 – Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010)

Uma frequência aguda sobrepõe-se ao final da fala de Berio e é justaposta pela imagem de arquivo de um osciloscópio, que apresenta sinais elétricos por meio de gráficos, ao som de orquestra que invade o ambiente. Planos rápidos de um maestro regendo uma orquestra toma conta da tela, seguidos da imagem do Berio já envelhecido, que diz “até o ruído pode ser considerado música até um certo ponto”. Nesse instante, Raimo Benedetti emite um som que parece concordar com o que foi dito. Segue-se por planos de curta duração de orquestras, maestros, de John Cage e do próprio Berio escrevendo e entregando partituras aos músicos. Enquanto se assiste a uma panorâmica vertical de diversos papéis colocados desorganizadamente uns sobre os outros, ouve-se a voz de Berio dizer “[...] quero convidá-los a considerar o ruído mais amigavelmente. O ruído ao fundo, não existe por si só”. Em uma outra imagem, Berio, sentado ao lado de um piano, continua dizendo: “existe a relação entre ele e algo que ele não é”. Novamente são apresentados planos rápidos de músicos executando trechos de uma das Sequenza do compositor. Sobre essas imagens vertiginosas, Berio diz “melodia, harmonia, contraponto são os pilares da música tonal”. Cortes rápidos, entre planos de músicos em ação, maestros regendo e orquestras são articulados freneticamente sem

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respeitar nenhuma regra de decupagem clássica. Falsos raccords são utilizados com frequência. O ritmo da justaposição dos planos acompanha a música executada. Vozes sobrepõem-se aos instrumentos. O trecho, com duração de cinco segundos, de um coral acompanhado por harpa, bateria, trompete e trombone entra em looping e é repetido diversas vezes. As imagens e sons parecem entrar em colapso. Black out. Final do primeiro ato.

Figura 08 – Frames do registro de Sequenze (Raimo Benedetti, 2010)

Neste instante, o público encontra-se devidamente inserido no tema desse live doc e, mesmo que ele seja leigo e não conheça quase nada do repertório clássico e contemporâneo da música erudita, já possui, no final deste primeiro ato, informações suficientes para acompanhar as próximas imagens, passagens e performances musicais. Todas as imagens armazenadas no computador do artista e utilizadas nesse primeiro bloco são found footages com selo da RAI, imagens apropriadas da Radiotelevisione Italiana. Sequenze tem como estrutura dominante o cinema do banco de dados e o cinema em circuito fechado15 para a construção e elaboração de sua narrativa de caráter documental.

15 Cinema em circuito fechado e cinema do banco de dados são categorias do live cinema que serão abordadas

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