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Logo que nasceu, Walt Whitman encontra o país em processo de expansão de seu território, após ter conquistado a independência do poder britânico, em 4 de julho de 1776. Através de guerras72, de compra de possessões73, além da invasão de áreas indígenas74, o governo estadunidense consegue estender o território original das treze colônias, na costa leste, até a costa oeste, no oceano Pacífico75.

Não somente a vida, mas a obra whitmaniana é atravessada pela Guerra Civil Americana. Em 1860, no ano mesmo em que Walt Whitman completava 41 anos de idade, Abraham Lincoln, conhecido por seu propósito abolicionista, foi eleito presidente do País, levando os estados do sul da nação a decidirem por uma guerra com objetivo separatista. Em

Drum-Taps, Walt Whitman descreveu cenas de batalha. O impressionante embate perdurou

por quatro anos (1861 – 1865)76 e findou com a vitória dos estados do norte (da União), mas trouxe consigo o infortúnio do assassinato do presidente Lincoln, uma marca presente claramente na coleção Memories of President Lincoln77. Depois da morte de Lincoln, o país assiste ainda a organização do movimento Ku Klux Klan.

Mas o século XIX não pode ser reconhecido apenas como o período da guerra e do Ku Klux Klan. É também o século que assiste a invenções que revolucionariam o mundo das comunicações e a vida da sociedade: a do telefone, por Grahan Bell (1876), a do fonógrafo (1878) e a da lâmpada, por Thomas Edison (1879). É o desenvolvimento industrial, atraindo

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Contra o México, por exemplo, entre 1846 e 1848, quando os Estados Unidos conquistaram as terras que se estendem do Texas até a Califórnia.

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Justamente no ano em que nasceu o poeta, em 181 9, a Flórida foi adquirida da Espanha.

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No período de 1850 a 1890, dizimando os indígenas.

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Como a aquisição do território do Estado do Alasca, comprado da Rússia, em 1867 (cf. Almanaque Abril 2001: 201).

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Walt Whitman assimilou muito do comportamento e do sofrimento dos combatentes porque trabalhou como enfermeiro nos hospitais de New York. (Cf. CESTRE, 1945: 90).

77 A morte do presidente é um fato que também entra na obra de William Cullen Bryant (1794-1878),

milhares de imigrantes irlandeses, europeus e escandinavos, sedentos de ascensão econômica, pela construção de ferrovias que atravessam o país de leste a oeste, mas ainda um país de forte discriminação racial. Na verdade, os Estados Unidos deixam de ser um país de artesãos e de pequenos proprietários rurais independentes para se introjetar no urbanismo e na industrialização. E foi em meio a esse contexto sociopolítico, com a contribuição dos neo- habitantes78, que a identidade norte-americana vai se delineando. Depois da Guerra Civil, os Estados Unidos entram num desenvolvimento econômico sem precedentes, gerando a idéia de que aquela era a terra de oportunidades. A ordem era para todos tornarem-se ricos!

Mas, com tanta sede os americanos se lançaram na especulação, no consumismo e no materialismo que, logo em 1871, em Democratic Vistas (cf. WHITMAN, 1995: 203-258), Walt Whitman condenou as mudanças que rapidamente dominaram a mente daquele povo, conduzido agora ao declínio dos princípios e à corrupção. As indústrias provocaram o surgimento da classe proletária, nas grandes cidades, além das favelas forçosamente formadas pelos imigrantes, pelos antigos escravos. Esses fatos não passaram despercebidos para Whitman que demonstrou preocupação com a identidade da arte americana, questionando a prática de imitar a arte européia sem configurar um rosto americano na arte.

5.1.1 A literatura dos Estados Unidos na época de Walt Whitman

Na passagem do século XVIII para o XIX, a literatura americana ainda tinha seus olhos voltados para o Classicismo das culturas grega e romana. A escrita devia ser clara, objetiva e direta. Ganharam espaço, nessa época, os ensaios, os panfletos, os jornais e a redação política79. Walt Whitman, como muitos dos escritores desse tempo, começou sua vida como jornalista. Era uma função que não exigia estudo específico, era um ofício aprendido, geralmente, a partir da tarefa de tipógrafo. Além de Whitman, William Cullen Bryant (1794- 1878), que chegou ao posto de influente jornalista, Washington Irving80 (1783-1859), que redigiu panfletos e foi editor de revistas

Duas linhas de inspiração moveram os escritores da primeira metade do século XIX, nos Estados Unidos: a primeira delas contemplou a vastidão da terra e o senso de lugar a que ela conduz, exigindo linguagem específica para exprimi- la. Não é à toa que em 1828, Noah

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A população da jovem nação cresceu sete vezes, na primeira metade do século XIX, passando de cinco milhões para trinta e seis milhões. (Cf. GRELLET, 2002: 231).

79 Em 1800, havia cerca de 200 jornais e uma dúzia de revistas, na América. (GRELLET, 2002:234).

80 Irving possui um livro cujo título é The Alhambra, coincidentemente, o título da última obra a ser publicada de

Webster publicou seu American Dictionary of the English Language, numa tentativa de descrever, purificar e padronizar a língua daquele país; a segunda linha estava voltada para os conflitos de consciência advindos de vários renascimentos religiosos responsáveis pela adesão de grande parte da população a igrejas protestantes, principalmente Metodista e Batista. Na obra whitmaniana, especificamente em Leaves of Grass (1855), pode-se constatar a presença dessa linha de inspiração, ao observar-se a relação entre o individual e o comunitário, entre a afirmação do eu e o compromisso social.

Nota-se, portanto, que a formalidade do classicismo cede lugar ao louvor dos sentimentos e das emoções, configurando a predominância do movimento Romântico, nos Estados Unidos, até o início da Guerra Civil. Ocuparam lugar de destaque a natureza selvagem e o homem primitivo, acompanhados de patriotismo e do otimismo dos Transcendentalistas81. Ralph Waldo Emerson (1803-1882) e Henry David Thoureau (1817- 1862) foram nomes de central importância do grupo transcendentalista. Emerson, altamente respeitado como pastor sábio e profeta americano, possuía estilo bastante popular nos seus pronunciamentos, destacava a potencialidade do indivíduo, num romântico individualismo que acreditava ser a alma uma entidade de caráter divino. Além de pregar a Self-Reliance, possuía uma teoria para a poesia: A poem should grow naturally and organically, like a plant,

without following rigid rules or metre, and that the poet is a divinely inspired being who perceives the spiritual in the world and can liberate men from their outworn traditions.82

(GRELLET, 2002: 246). Thoureau, por sua vez, citado por GRELLET (Ibdem: 250) como fonte de influência para Mahatma Gandhi e para Martin Luther King, era reacionário à escravidão e apelava, no âmbito da obra literária, para uma simplificação da vida, voltando-se contra o materialismo e a artificialidade da sociedade e dirigindo-se para um estado de espiritualidade. Não conheceu a popularidade como Emerson.

Foi uma época de individualistas, como Emily Dikinson (1830-1886) que, mesmo vivendo boa parte de sua vida em regime de reclusão, recusando contato com todos quantos a procurassem, não conforma sua poesia ao gosto contemporâneo de regularidade rítmica e métrica, preferindo a revolucionária assonância e o sabor de diferentes ritmos.

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Transcendentalismo é a filosofia que enfatiza a importância do espiritual sobre o que tem existência material. Valoriza o que vai além do conhecimento, da experiência e da razão do ser humano. Nos Estados Unidos, reage contra o materialismo, celebra os sentimentos, a natureza e a bondade/divindade do homem e a sua necessidade de auto-confiança. (Cf. GRELLET, 2002: 248-249).

82 [Um poema deveria crescer naturalmente e organicamente, como uma planta, sem seguir normas rígidas ou

metro, e o poeta é um ser de inspiração divina que percebe o que é espiritual no mundo e que pode libertar os homens de suas tradições completamente ultrapassadas].

Época também do inesquecível Edgar Allan Poe que, não somente nos Estados Unidos, mas ultrapassando as fronteiras geográficas rumo a Europa, foi reconhecido por Baudelaire e por Mallarmé como um precursor do Simbolismo Francês. Possuidor de um livro intitulado The Philosophy of Composition, publicado em 1846 (nove anos antes de Leaves of

Grass, de Whitman!), rejeita a idéia da inspiração romântica no ato de criação e explica como

ele elaborou The Raven, livro de poemas publicado em 1845: thinking first of the effect, then

of the sonorities that might best convey it, then of certain words, until the poem gradually emerged.83 (GRELLET, 2002: 252).

Época de profetas, como é considerado Walt Whitman que, embora não gozando sua obra Leaves of Grass da apreciação de muitos dos seus contemporâneos, provocou impacto nas gerações futuras de artistas, chegando a ser citado pelo professor da Université de Paris, Charles CESTRE (1945:193) como norteador de uma das duas correntes da renascença poética que ocorreu nos Estados Unidos, nas três primeiras décadas do século XX, a corrente chamada na língua francesa de “neo-whitmanien”, caracterizada por fazer uso da “mélopée

rythmée se ramassant en quelques mots ou s’étendant à de longues périodes, suivant les suggestions du sentiment ou du sens”84, em oposição aos « néo-traditionnels » que conservavam os gêneros e a estrutura prosódica estabelecidas.

5.1.2 A música nos Estados Unidos na época de Walt Whitman

A arte musical em terras norte-americanas pode ser tratada, dentro do período de existência de Walt Whitman (1819-1892), em duas secções: a primeira delas abrangendo o tempo anterior à Guerra Civil e a outra, o tempo posterior à Guerra.

O tempo antecedente à Guerra se caracterizou por um espírito de participação que predominava em todos quantos compareciam tanto ao teatro, como à Igreja para ouvir o sermão do pastor, como também naqueles que iam ao Broadway Tabernacle para ouvir palestras combatentes da escravidão ou um grupo de cantores de uma mesma família. Havia, portanto, uma troca fluida entre expressões de culturas diferentes. A música popular derivava da ópera, enquanto que, por outro lado, as composições eruditas usavam elementos da música folclórica.

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[pensando primeiro no efeito, então nas sonoridades que poderiam melhor transmiti-lo, então, em certas palavras até que o poema gradualmente emergisse].

84 [Canto ritmado se reduzindo a algumas palavras ou se estendendo a longos períodos, seguindo as sugestões do

Walt Whitman, que atingiu a Guerra Civil com quatro décadas de vida, foi campo fértil para assimilar esse espírito de época. Ele fez da participação a definição de sua poética:

“The reader will always have his part to do just as much as I have mine.85”. Se os artistas que

ele admirava desafiaram as fronteiras entre si e seu público, Whitman acabava de tentar destruí- las de uma vez por todas, não apenas entre ele (autor) e seu público, mas, dentro de sua obra literária, entre poesia e música, entre o falar erudito e a gíria e, até mesmo, entre religiões ou classes sociais diferentes (cf. REYNOLDS, 1996: 156). Realmente, um projeto bastante à frente da mentalidade da época.

Até a maneira de se divertir do povo americano mudou bastante depois da Guerra de Secessão. Agora, o estilo se torna impessoal, passivo. A música é “canalizada” para compartimentos separados. A máquina é quem realiza a maior parte de qualquer trabalho. A cultura se dirige para o estilo massificado. Tudo é produzido para o consumo de grande quantidade de pessoas, não importando qualquer outra característica a não ser a de consumidor.

Observa-se que as referências feitas à presença da música na vida de Walt Whitman dizem respeito principalmente ao período anterior à Guerra Civil (cf. REYNOLDS, 1996 e 2000). Van Wyck BROOKS (1954: 126) falou de uma via gem empreendida por Walt Whitman, em 1848, a dezessete estados do Sul e do Oeste da nação americana, fonte de impressões musicais, mais tarde, elementos de Leaves of Grass. Desenvolveu e absorveu idéias de concertos que assistiu, de livros que leu e criticou, de grandes cantores que ouviu. Ficou impressionado com a música e com a capacidade que ela o oferecia de atingir o público, como recurso para atrair seu leitor, trilhando um caminho de afetividade com ele, evitando colocá- lo diante de uma estrutura formal por excelência, enfim, envolvendo-o o mais possível.

Inegavelmente, a ópera penetrou a obra de Walt Whitman. FANER (1951) dedicou toda uma análise detalhada de aspectos operísticos usados pelo poeta. As árias de Rossini e de Verdi foram emoções traduzidas no seu livro de poemas, como se pode observar em “Out of the Cradle Endlessly Rocking” e em “When Lilacs Last in the Dooryard Bloom’d”, cujas passagens melódicas expressivas emocionalmente recorrem ao processo de construção operístico e ao léxico musicais.

Em New Orleans, assimilou palavras e frases em língua francesa usadas em sua obra, posteriormente. Esse uso de elementos da língua francesa era demonstração de um sentimento de admiração pela escritora francesa George Sand. A admiração por George Sand e a leitura

de suas novelas, surgidas entre 1840-1850, renderam ao artista um forte efeito brotado tanto em sua obra como em sua própria maneira de ser. O personagem Albert, que junto com Consuelo, ambos músicos, lutou por um mundo salvo, liberto, foi instrumento através do qual todos os homens e mulheres puderam falar, na obra de Sand, mostrou-se em Walt Whitman quando também ele se vestiu de trabalhador e pregou “a unidade da vida na humanidade, a

natureza humana em todas as suas fases, o passado, o presente, o futuro e as descobertas da ciência” (BROOKS, 1954: 128).

Da cultura local, Walt Whitman cultivou o amor pela música popular, através das famílias cantoras (que estavam intimamente ligadas à ópera), dos intérpretes de canções e de baladas, bem como dos negros, entoando músicas no seu estilo próprio, dado que eram de caráter simples, repetitivo, na maioria das vezes, e de natureza igualitária.

Com certeza, em New Orleans, Walt Whitman esteve em contato direto com os Negro

Spirituals, uma música originada do íntimo sofrido de pessoas retiradas de sua terra- mãe e

empurradas para a escravidão, nas terras norte-americanas. Edward G. PERRY (1970: 220), conhecido crítico musical e autor de vários trabalhos sobre o Harlem, esclarece que:

Many of these (American) people also believe that the spirituals, in their musical origin or inspiration, are based upon or derived from African rhythms or tribal songs. This, of course, is quite erroneous, since these folk -songs of the black man’s early days of plantation slavery in America contain almost nothing that is African in their origin.86

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